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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

100 anos de história do PCP: para onde vai o comunismo?

Talvez estes longos 100 anos justifiquem que se pergunte porque é que o PCP é como é. Mas primeiro alguém terá de responder a outra pergunta: o que é o PCP? Um ensaio de Adelino Cunha.

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Porque é que o PCP existe como sempre tem existido ao longo destes 100 anos? Porque é que o PCP continua a ser o derradeiro partido puramente marxista-leninista da Europa? É mais fácil fazer perguntas do que ensaiar respostas, mas uma parte das explicações reside na sua notável singularidade. Em primeiro lugar, o sindicalismo revolucionário das suas origens representa o espaço vital de toda a acção política: a rua. Depois, a construção de uma memória comum baseada no tempo longo que tem permitido superar os desafios do tempo curto da história: exclui as dissidências. Por último, o facto de o PCP ser portador da uma interpretação própria do modelo ideológico baseado na luta concreta em Portugal: e assim sobreviveu tanto ao eurocomunismo como à extinção da União Soviética. Se for agora perguntado se continuará assim, se o PCP resistirá à conversão em comunismo de entretenimento das sociedades pop, teremos de aguardar pelos próximos 100 anos.

Quando o androide David (Michael Fassbender) confronta o pai Peter Weyland (Guy Pearce) com as suas limitações orgânicas, a máquina está apenas a antecipar que ultrapassou as barreiras da humanidade: “Tu procuras o teu Criador e eu estou a olhar para o meu. Tu vais morrer. Eu não”. É essa a sua singularidade. David sabe que um dia deixará de ser propriedade e essa liberdade significará a conquista do seu livre arbítrio (“Alien Convenant”, Ridley Scott, 2017).

Dito de outra forma, se as máquinas forem sendo libertadas pelas limitações biológicas dos homens, o que nos dizem estes primeiros 100 anos do Partido Comunista Português (PCP)? Poderá ser assim perguntado, que há coisas que os comunistas pensam que estão a decidir quando a decisão é do próprio Partido?

Talvez seja essa singularidade do centenário que permite ao PCP apoiar um governo socialista sem que a sua direcção tenha sido sujeita a julgamentos por desvios de direita (como na década de 60) ou sequer reaberto combates internos entre renovadores e ortodoxos (da viragem para o milénio).

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Talvez sejam as notáveis características pessoais de Jerónimo de Sousa neste contexto histórico concreto que garantem que o PCP nunca deixará de ser aquilo que tem sido: porque este secretário-geral é portador genuíno da credencial da pureza operária que (por exemplo) faltou a Carlos Carvalhas (quando assumiu a sucessão de Cunhal entre Dezembro de 1992 e Novembro de 2004).

A falta dessa credencial serviu de pretexto para ser travado na aproximação aos socialistas e pelo aceleramento do seu afastamento, mas foi precisamente a origem social e a diferente perspectiva cultural que permitiu a Carvalhas saber aguentar a duríssima crise do PCP com a própria modernidade (e que arrastou o comunismo na Europa).

Talvez estes longos 100 anos justifiquem que se pergunte porque é que o PCP é como é. Mas primeiro alguém terá de responder a outra pergunta: o que é o PCP?

Levar a revolução ao máximo

O sucesso existencial explica-se muito mais pela capacidade de o PCP interpretar e adaptar-se à realidade do que por combates parciais (ganhos ou vencidos) ou resultados eleitorais avulsos. É a perspectiva do tempo longo, ou seja, a perspectiva de que o PCP existia antes de existir o próprio PCP, que parece justificar este sucesso existencial.

É por aqui que podemos começar: pela construção da consciência colectiva da máquina.

Quando as ideias marxistas começaram a entrar em Portugal (trazidas pelos ventos da revolução leninista de 1917) entraram para levar a revolução ao máximo, na medida em que a esperança concreta resultante do sucesso bolchevique acelerou a urgência de criar uma força revolucionária imediatista em Portugal.

A realização do II Congresso (Maio de 1926) antecipa o mergulho do PCP na ilegalidade. Na imagem: uma tipografia ilegal, ilustrada por José Dias Coelho

A fundação da Federação Maximalista Portuguesa (em 1919) constitui a primeira tentativa de organizar os operários em estruturas políticas inspiradas pela revolução russa e tendencialmente afastadas das dinâmicas puramente sindicais, ou seja, o embrião de um (necessário) partido forjado para representar na plenitude as ideias marxistas (ainda que debilmente dominadas) e liderar a luta imediata pela sua concretização como regime político.

É exactamente nesta fase embrionária que o PCP se começa a distinguir de todos os outros partidos comunistas europeus: nasce das tensões (das contradições) entre sindicalistas revolucionários, anarquistas e sindicalistas anarquistas. Nasce na vulcanização dos sindicatos. A marginalização atípica dos socialistas explica-se facilmente: pouco restava do socialismo republicano, descredibilizado e sem capacidade atractiva para activistas que pretendiam intervir na sociedade com a legítima expectativa de uma mudança radical. O PCP nasce nos sindicatos e essa marca continua a ser distintiva 100 anos depois da fundação (e expurgada a deriva anarquista).

Por um lado, esse nascimento fica marcado pelas (incontornáveis) fragilidades ideológicas dos fundadores devido ao limitado impacto do marxismo entre os intelectuais portugueses e da escassez de fontes de informação e de divulgação. Por outro lado, devido às crescentes reservas manifestadas pelos anarquistas quanto à formação de um partido político inspirado por uma revolução que na Rússia eliminava os anarquistas e superava os sindicatos.

Foram estas sucessivas fusões e cisões atómicas que deram origem ao big bang.

A fundação do PCP (em 6 Março de 1921) representa a necessidade de ir além do espírito sindicalista e maximalista da época e atribuir um novo significado à radicalização política, isto é, a necessidade de um partido que incorporasse os valores bolchevistas e assumisse a organização política do proletariado para uma tomada violenta do poder para lá dos sindicatos (de onde emerge).

O PCP nasce assim do impulso de uma dúzia de revolucionários e (acima de tudo) de sindicalistas revolucionários que consideravam a revolução em Portugal inevitável. Esta natureza fortemente sindicalista e revolucionária manifestar-se-á nas sucessivas crises que marcam os primeiros tempos e que se traduziu no reiterado esforço de teorização desenvolvido entre congressos.

A intervenção da Internacional Comunista (através de Humbert Droz) no I Congresso (Novembro de 1923) entregou o poder nominal a Carlos Rates na expectativa de superar as divergências internas através da constituição de uma primeira estrutura partidária e da definição de uma orientação política (que fosse além das “Bases Orgânicas Provisórias” e do “Manifesto ao País”, ambos de 1921), mas tanto o carácter da nomeação como as características do nomeado revelaram-se um fracasso.

A realização do II Congresso (Maio de 1926) antecipa o mergulho do PCP na ilegalidade, tendo ficado marcado por uma certa mutação da matriz original, no sentido em que se verifica um certo esgotamento geracional que se traduz em práticas políticas mais próximas dos tradicionais movimentos de propaganda e menos de um partido.

A superação das dificuldades deste período deve ser tributada à capacidade intelectual de Bento Gonçalves para teorizar o marxismo e proceder depois à sua estruturação ideológica (ao mesmo tempo que reorganizou estruturas internas para tornar o PCP numa força revolucionária consequente).

O efervescente ecossistema político e social da I República foi inspirando com naturalidade uma geração de jovens comunistas que buscavam uma transformação profunda da sociedade portuguesa, mobilizados pela esperança concreta do sucesso ideológico do comunismo na União Soviética e animados por uma mudança radical forçada pela luta de classes.

É o mestre que mobiliza uma nova geração de jovens revolucionários e que força a necessária transformação leninista do PCP, isto é, a ruptura com a hegemonia anarco-sindicalista. A Conferência de 1929 entra na história do comunismo em Portugal como aquilo que (oportunamente) Domingos Abrantes classifica como uma passagem do “acto” ao “processo”.

São os segundos depois do big bang comunista.

O PCP começara por ser criado em cima do cadáver do socialismo descredibilizado, utilizando a energia revolucionária dos anarco-sindicalistas para depois operacionalizar (também) a sua neutralização através da consolidação do sindicalismo com propósito. É um processo acidentado de passagem gradual desta consciência política acumulada para o mundo concreto. Um processo de aprendizagem cumulativa que foi criando a consciência da máquina (que depois se há-de manifestar para lá do desaparecimento biológico dos homens).

Podemos agora falar no inobservável (na metensomatose?) quando dizemos que o PCP desenvolveu uma consciência própria?

Líderes que foram sendo

O intenso trabalho organizativo e de formação ideológica dos quadros comunistas desenvolvido pelo secretário-geral Bento Gonçalves permitiu que o PCP superasse o “provincianismo anarco-sindicalista” e assegurasse a sua consolidação ao ritmo dos tambores marxistas-leninistas: quadro teórico clarificado, organização interna definida, plano de implementação (tendencialmente) nacional e orientação política clara. O que dependeu fortemente da preservação da genética operária assegurada por Bento Gonçalves, Francisco de Paula Oliveira (Pavel) e José de Sousa.

O efervescente ecossistema político e social da I República foi inspirando com naturalidade uma geração de jovens comunistas que buscavam uma transformação profunda da sociedade portuguesa, mobilizados pela esperança concreta do sucesso ideológico do comunismo na União Soviética e animados por uma mudança radical forçada pela luta de classes.

Esta importantíssima fase de recrutamento marcou todo o período que se prolongou até à grande reorganização de 1940-41 e deve-se em grande medida ao poder de atracção de operários, estudantes e jovens burgueses (em processo de conversão ao comunismo) exercido pela Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas e pelas organizações periféricas (Socorro Vermelho Internacional, Liga dos Amigos da União Soviética, Liga Contra a Guerra e o Fascismo, Grupos de Defesa Académica).

É nesta fornalha revolucionária que se vão forjando as grandes figuras do comunismo português e que em circunstâncias diferentes haverão (nas décadas que estão por vir) de exercer formal ou informalmente o poder do secretário-geral (que será preso em 1935 e deportado para morrer no Tarrafal em 1942): Pavel, Júlio Fogaça e Álvaro Cunhal.

A (segunda) prisão de Fogaça no Verão de 1942 permitiu que Cunhal se reposicionasse na reorganização e assumisse o poder com uma orientação (convicção) política baseada no levantamento nacional

Divulgacao

Primeiro, Pavel, cujo percurso exige um estudo biográfico sério que se projecte além do lugares-comuns que se foram enquistando nos estudos sobre o PCP. Sabe-se que acompanhou Bento Gonçalves desde cedo e que se projectou como um dos quadros mais promissores deste geração, tendo acabado por se tornar representante junto de Moscovo e do movimento comunista internacional. Já as circunstâncias do seu afastamento (depois da prisão de Bento Gonçalves) e posterior condenação ao exílio no México continuam por esclarecer.

Depois, Fogaça, que começa por rumar a Moscovo com o secretário-geral para participar no VII Congresso da Internacional Comunista (em 1935) para depois executar em seu nome a reorganização do início da década de 40. Preso e desterrado para o Tarrafal (por duas vezes), assumirá o poder na década de 50 para ser depois acusado de uma viragem à direita que conduziu à sua exclusão do PCP e respectivo apagamento histórico.

Por fim, Cunhal, o sucessor formal de Bento Gonçalves como secretário-geral do PCP (a partir da reunião do Comité Central de Março de 1961) após um longo conflito com Fogaça e um período prisional que quase o condenou (também) ao esquecimento. A continuidade em liberdade exigiu uma passagem para o exílio que cortou com a história comunista de preservar a direcção no interior ao longo de 60 anos.

Pavel, Fogaça e Cunhal destacam-se numa ínclita geração de comunistas que em momentos diferentes asseguraram a continuidade do PCP como único partido organizado no combate ao Estado Novo e preservaram a sua existência orgânica para lá das divergências estratégicas.

Muito do que aconteceu nas longas décadas da clandestinidade resultou directamente dos conflitos que surgiram entre as reorganizações de 1929 e 1940-41 e continua a ser mais aquilo que se desconhece de alguns processos de apagamento do que o contrário.

A fornalha revolucionária que forjou as grandes figuras do comunismo da década de 30 (Manuel Guedes, Joaquim Gomes, Sérgio Vilarigues, Pedro Soares, Jaime Serra, Francisco Miguel) foi também a fornalha que consumiu alguns dos jovens mais promissores do comunismo português. Fosse em circunstâncias imediatas (como Pavel e Carolina Loff) ou em conflitos posteriores nascidos neste período (caso de Júlio Fogaça) e que se projectaram para a década dos revolucionários profissionais.

Muito do que aconteceu nas longas décadas da clandestinidade resultou directamente dos conflitos que surgiram entre as reorganizações de 1929 e 1940-41 e continua a ser mais aquilo que se desconhece de alguns processos de apagamento do que o contrário.

A consciência colectiva

A segunda reorganização resultou da iniciativa dos veteranos liderados por Bento Gonçalves no Tarrafal, tendo sido inicialmente executada no terreno por Fogaça e depois concluída pelo próprio Cunhal. Pode parecer bizarro, mas todos os participantes neste processo estavam a defender a mesma coisa quando pareciam defender coisas diferentes: defendiam uma certa construção mental a que chamavam PCP.

A questão estava (como continua a estar) na realidade material.

A reorganização corresponde à profissionalização do PCP através da criação de um exército clandestino de revolucionários profissionais que se entregaram incondicionalmente à luta clandestina durante décadas (Carlos Costa, Guilherme da Costa Carvalho, António Dias Lourenço, José Magro, Cândida Ventura, Georgette Fereira, Carlos Brito, Aida Magro, Domingos Abrantes, Maria Alda Nogueira, Octávio Pato, Maria da Conceição Matos, entre dezenas de outros).

A acumulação dessas experiências de vida e de morte constituiu-se (até hoje) como a consciência do herói colectivo (a consciência do Partido).

O processo beneficiou da oportunidade resultante da Amnistia dos Centenários (1140-1640). O Estado Novo colocou em liberdade dezenas de presos políticos e o regresso ao interior de vários tarrafalistas traduziu-se na reorganização do PCP: “Então, camaradas, é agora que vamos trabalhar?”. A ânsia de Joaquim Pires Jorge antecipa o conflito que haveria de provocar uma profunda cisão no PCP: “O que é que encontrámos do Partido? O Avante! não se publicava. A organização estava muito enfraquecida. Em 1940 reunimo-nos e decidimos avançar com a reorganização do Partido”.

Cunhal regressou de Paris (a 30 de Abril de 1974) com Domingos Abrantes e Conceição Matos e saltou directamente para cima de uma chaimite para dar início ao frenético processo revolucionário

Fernando Farinha

Júlio Fogaça chamou Américo Sousa, José Gregório, Manuel Guedes, Militão Ribeiro, Pedro Soares, Joaquim Pires Jorge e Sérgio Vilarigues: “Destacados e firmes dirigentes, que além do mais davam cumprimento às decisões e orientações tomadas para o efeito no Campo do Tarrafal, onde se encontrava elevado número de dirigentes do Partido, incluindo o seu secretário-geral Bento Gonçalves, a quem coube papel determinante na fixação dos objectivos a atingir com a reorganização”, explica Domingos Abrantes.

Estes veteranos chegavam do desterro para reconstruir o PCP de Bento Gonçalves e eliminar os dirigentes em funções responsabilizados pelo refluxo agudo registado na segunda metade da década de 30, e também (claro) por terem favorecido uma infiltração policial que comprometera toda a estrutura clandestina (um argumento recorrente nos conflitos internos).

Não era a verdade toda, mas uma importante parte dela.

A dinâmica do conflito centrava-se na neutralização de Vasco de Carvalho, Francisco Sacavém e Cansado Gonçalves e dos seus elementos mais próximos através da sobreposição de uma estrutura política em permanente acção de desgaste. Chegou-se à extravagância da circulação de dois Avante! por iniciativa das direcções antagónicas (em luta pelo reconhecimento da legitimidade) e responsáveis pela publicação de folhetos de destruição mútua que acabaram nas mãos da PIDE.

A direcção capitulou no Verão de 1941 e o Avante! anunciou as respectivas irradiações “por actividade desagregadora e provocatória”. Terminada a reorganização iniciada no Outono do ano anterior, Júlio Fogaça, Manuel Guedes e Militão Ribeiro assumiram o secretariado, tendo contado com o apoio próximo de José Gregório e Joaquim Pires Jorge.

E Álvaro Cunhal? Esperou. Apenas isso: soube esperar.

A pena do apagamento

A (segunda) prisão de Fogaça no Verão de 1942 permitiu que Cunhal se reposicionasse na reorganização e assumisse o poder com uma orientação (convicção) política baseada no levantamento nacional, isto é, rejeitando e combatendo a política de transição pacífica. O regresso de Fogaça à liberdade em 1945 resultou num inevitável conflito entre ambos. Cunhal conseguiu fazer vencer a sua estratégia de tomada de poder, mas acabou por ser preso em 1949, abrindo assim caminho para Fogaça recuperar a sua ideia de transição democrática e pacífica (contextualizada nas dinâmicas da Segunda Guerra e da Coexistência Pacífica).

Estes ciclos de poder e contra-poder entre ambos foram sempre variando com os tempos intermitentes de liberdade e de prisão.

Todos os dirigentes que haviam apoiado Fogaça na transição pacífica foram sendo perdoados e reintegrados na estratégia da insurreição popular armada. É provável que a sua prisão em Agosto de 1960 tenha facilitado a imposição do Rumo à Vitória como estratégia para o derrubamento do Estado Novo, mas foi a condenação de Fogaça ao esquecimento que melhor traduziu o regresso àquilo que o PCP era desde 1921 e que não podia deixar de ser com Cunhal.

Quando os comunistas discutiam as ideias conflituantes de Cunhal e de Fogaça pareciam estar a discutir as fronteiras do poder temporal, mas por detrás das dimensões estratégicas discutiam a sua fundamentação ideológica na história do PCP, ou seja, qual dos rivais melhor interpretava a construção mental a que chamavam PCP. Não era um problema de realidade (porque os mesmos dirigentes apoiaram coisas diferentes em diferentes momentos), mas sim do livre arbítrio de uma máquina que também já ultrapassara as limitações biológicas de Peter Weyland.

Talvez por isso mesmo, quando fugiu de Peniche em Janeiro de 1960 (com Joaquim Gomes, Jaime Serra, Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, Guilherme Carvalho, José Carlos e Francisco Martins Rodrigues), e pouco tempo depois se exilou na União Soviética com a família (companheira, filha e cunhada), Cunhal sentia-se portador de toda a força necessária para acusar Fogaça de ter protagonizado um perigoso desvio de direita por acreditar numa transição pacífica que dispensava a insurreição popular armada.

Esgotara-se a paciência de Cunhal para mais divergências sobre aquilo que lhe parecia essencial (sacralizar definitivamente a estratégia para a tomada violenta do poder) quando o Estado Novo se afundava no pântano da guerra em África.

Todos os dirigentes que haviam apoiado Fogaça na transição pacífica foram sendo perdoados e reintegrados na estratégia da insurreição popular armada. É provável que a sua prisão em Agosto de 1960 tenha facilitado a imposição do “Rumo à Vitória” como estratégia para o derrubamento do Estado Novo, mas foi a condenação de Fogaça ao esquecimento que melhor traduziu o regresso àquilo que o PCP era desde 1921 e que não podia deixar de ser com Cunhal.

A história do PCP entre a aprovação do “Rumo à Vitória” (no VI congresso realizado em Kiev) e o 25 de Abril de 1974 é em grande medida a biografia pessoal de Álvaro Cunhal no exílio e dos colectivos de comunistas que se instalaram nos países satélites da União Soviética (esse grande jardim exterior que era a Europa de Leste).

Em finais de 1961, Cunhal inicia a revogação da memória de Fogaça com “O Desvio de Direita nos anos 1956-1959”, para logo depois recuperar o rumo estratégico baseado na queda violenta do regime: “Em vez de insistir na possibilidade e proximidade da solução pacífica por ‘desagregação irreversível’ do regime, o Partido deve apresentar ao povo português e às forças democráticas, como caminho para o derrubamento do fascismo, o levantamento nacional”.

Foi precisamente a origem social e a diferente perspectiva cultural que permitiu a Carvalhas saber aguentar a duríssima crise do PCP com a própria modernidade (e que arrastou o comunismo na Europa)

TIAGO PETINGA/LUSA

Cunhal estava a ser aquilo que sempre foi (um revolucionário) porque Cunhal sentia-se o genuíno sucessor de Bento Gonçalves.

O sucesso desse levantamento nacional (combatido por Fogaça) dependeria da organização de “manifestações de massas” e teria de contar com “uma parte das Forças Armadas”, ou, pelo menos, teria de contar com alguma “neutralidade” de sectores importantes. É uma linha que será escrita por outras palavras no 25 de Abril, mas que confirma aquilo que Cunhal antecipara: sem a força das armas não haveria como derrubar o Estado Novo.

Todo este realinhamento estratégico ocorre com Cunhal no exílio e Fogaça esquecido na prisão (foi deixado para trás na fuga colectiva de Caxias de 1961 protagonizada por Francisco Miguel, José Magro, Guilherme da Costa Carvalho, António Gervásio, Domingos Abrantes e Ilídio Esteves), mas sem que essas extravagâncias do comunismo português colocassem em causa a consciência colectiva do PCP.

O PCP no exílio

A presença da direcção no exílio (e a existência de colectivos de exilados na União Soviética, Checoslováquia e Roménia) forçou uma certa viragem narrativa na história do comunismo português e a desconstrução do posicionamento teórico relativamente ao seu significado.

Álvaro Cunhal admitiu circunstancialmente a existência de dirigentes no exterior quando utilizou a expressão interior do país, embora se referisse a essa circunstância de exílio como um recuo táctico para defender o Partido. Na abordagem que concebeu para minimizar essa realidade de facto, a ideia do recuo significava suspender uma actividade partidária específica por um período de tempo limitado, tendo em conta a necessidade de preservar a estratégia global.

O recuo táctico era admissível perante ofensivas significativas da repressão, ou seja, a constatação das circunstâncias concretas da luta no interior justificava o exílio político por um determinado período como táctica defensiva, tendo em consideração a necessidade de preservar os grandes objectivos estratégicos para a tomada do poder.

Trata-se de uma teorização que Cunhal desenvolveu com cautela, recusando admitir explicitamente a existência de exilados comunistas. As suas reservas decorrem da conjugação de várias circunstâncias.

O discurso contra a recente adesão de Portugal à CEE tentava redirecionar a energia revolucionária contra a restauração do grande capitalismo monopolista, mas os dias no comunismo eram outros: eram os dias de chumbo trazidos pela nomeação de Mikhail Gorbachev para secretário-geral do PCUS.

Esta realidade surgiu como consequência da sua própria saída para a União Soviética (com a companheira, a filha e a cunhada) e o seu reconhecimento constituía potencialmente uma fragilidade, isto é, um líder revolucionário ausente da luta concreta (quando o PCP se debatia com as suas próprias limitações quanto ao número de militantes e de quadros envolvidos na luta diária).

Há uma outra dinâmica silenciosa que se vai desenrolando: o exílio de mais de uma dezena de filhos de dirigentes clandestinos para uma escola internacionalista na União Soviética (em Ivanovo). O que implicou a saída das suas famílias quando ainda eram crianças, tendo ficado isolados até ao 25 de Abril. Voltaram depois do 25 de Abril de 1974 (mas alguns rapidamente retornaram à União Soviética por considerarem essa a sua verdadeira casa).

Cunhal regressou de Paris (no dia 30 de Abril de 1974) com Domingos Abrantes e Conceição Matos e saltou directamente para cima de uma chaimite que o esperava no aeroporto para dar início ao frenético processo revolucionário.

A reedição da coreografia da chegada de Lenine do exílio haveria de alimentar o imaginário comunista até ao 25 de Novembro e prolongar-se até à definitiva consolidação democrática com a extinção do Conselho da Revolução em 1982 e a eleição presidencial de Mário Soares em 1986 (em 1988, Cunhal anunciará no XII Congresso que o processo revolucionário acabara, mas a revolução estava “inacabada”).

O discurso contra a recente adesão de Portugal à CEE tentava redirecionar a energia revolucionária contra a restauração do grande capitalismo monopolista, mas os dias no comunismo eram outros: eram os dias de chumbo trazidos pela nomeação de Mikhail Gorbachev para secretário-geral do PCUS.

O comunismo acabou?

Pode um “buuu!” mudar o curso manso da história? Terá aquela vaia de Dezembro de 1989 decretado o fim de Nicolae Ceausescu (o penúltimo ditador a cair no jardim exterior soviético) e acelerado a queda inglória do mundo comunista? Os operadores da televisão pública devem ter achado que sim, porque acataram as ordens dos serviços secretos para desviarem as câmaras da praça central de Timisoara onde tudo se passava, mas continuaram a emitir as vaias em directo.

Os historiadores não sabem (porque não podem) responder às questões colocadas, mas sabem que os 3 minutos do último discurso do ditador romeno mudaram imensa coisa num período em que não existiam redes sociais para propagar rapidamente aquela brecha: não era apenas o muro de Berlim que caía (depois de a Polónia ter iniciado o seu próprio destino), era todo o império que ficava nu para lá do rio Elba (até só sobrarem a Roménia e a Albânia).

Era toda a ideia de comunismo que parecia estar a cair quando Cunhal sobe à tribuna do XIII Congresso do PCP (Maio de 1990): “Perante um tão profundo abalo e tão graves derrotas do mundo socialista, para onde vai o mundo?”.

O que Cunhal está a perguntar é se “o comunismo acabou”.

Acabara na Europa de Leste, estava a acabar em África, acabara certamente na própria União Soviética com a implosão das nacionalidades.

Talvez sejam as notáveis características pessoais de Jerónimo de Sousa neste contexto histórico concreto que garantem que o PCP nunca deixará de ser aquilo que tem sido

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

De certa forma, sim, o comunismo acabou, mas porque acabaram os partidos comunistas (foi a sua interpretação que desapareceu).

É também verdade que o fim da União Soviética arrastou uma certa perspectiva de apocalipse cósmico, mas aquilo que Cunhal queria realmente alertar era para a perigosidade de “deitar fora o menino com a água do banho”: os comunistas com o comunismo.

Então o comunismo não acabou?

O discurso de Gorbachev nas Nações Unidas em 1988 libertara os países satélites da submissão à teoria da soberania limitada (se calhar) não tanto como penhor de um (inexistente) plano genuíno de democratização, mas para promover uma profunda reestruturação económica da União Soviética dentro dos limites dos socialismo (recuperando fôlego para investir na indústria de armamento e simular recuperar algum do tempo perdido na corrida com Ronald Reagan).

O Exército Vermelho deixava de ser penhor armado dos regimes comunistas que há muito haviam perdido a sua eventual base social de apoio.

Porque é que a União Soviética se desmoronou de imediato como um castelo de cartas quando o regime estava estabilizado e parecia capaz de se perpetuar? Talvez possa ser explicado com duas palavras: glasnost e perestroika, e ainda uma terceira, se for permitido, o poder de dizer o indizível (o poder da palavra).

Foram as palavras que demonstraram que o envelhecimento das lideranças políticas tinham degenerado na própria senilidade do regime e que a motivação ideológica já se tinha esgotado (o socialismo já tinha chegado). Foram as palavras que denunciaram o poder das elites (nomenklatura) e o peso brutal de uma máquina burocrática do tipo feudal.

Sim, foram as palavras que demonstraram o fracasso da economia planificada (como método de legitimação) e que fizeram Gorbachev subir ao púlpito das Nações Unidas em 1988 para seduzir para cá do rio Elba: a promessa de uma transformação democrática que tinha na sua verdadeira motivação a incapacidade de gerar riqueza para continuar a suportar o fardo do investimento militar e a factura da segurança da fronteira externa (onde assentava o prestígio mundial do império).

Terá Gorbachev sido o anjo da morte que fez soar as trombetas do apocalipse comunista?

Talvez.

Talvez o comunismo tenha mesmo acabado com a extinção dos partidos comunistas e a falência dos planos quinquenais e os saltos em frente, mas o mundo singular do PCP não acabou porque é um mundo que possui características distintivas dentro do movimento comunista internacional.

A singularidade do comunismo português é um mantra que ultrapassa largamente o espírito das épocas porque nunca se deixou cristalizar na utopia e no dogma soviéticos. É uma singularidade que decorre da profunda portugalidade do PCP (sem nunca ter deixado de ser internacionalista).

O PCP sobrevive porque (sem ter caído em vácuos ideológicos) consegue renovar-se em ciclos fechados (dentro de si mesmo) e renovar-se com a disciplina férrea dos centenários.

Não existem (porque não podem existir) certezas fundamentadas sobre esta metensomatose, mas o conforto interpretativo parece favorecer a ideia de que a experiência individual de cada homem e de cada mulher acumuladas ao longo destes primeiros 100 anos permitem que o PCP exista para lá do tempo atómico.

Os comunistas foram educados a acreditar numa certa perspectiva da realidade baseada numa longa história de combate e numa bolha de valores sólidos que dificilmente permite avaliar formas diferentes de fazer as coisas quando essas coisas (o mundo) estão identificadas desde 1921.

É também por isso que o PCP continua a sobreviver às narrativas de catástrofe (incluindo a grande derrocada 1989-1991 e a morte de Cunhal em 2005) e assim resistir à sensualidade do capitalismo tecnológico do novo milénio.

Quando se deixou perguntado o que é o PCP, deve agora ser dito que a natureza original do comunismo português começa com a originalidade do seu processo fundacional e consolida-se depois nas décadas da ilegalidade que forjaram uma mentalidade colectiva em toda a glória e sofrimento de um Partido clandestino e periférico.

A singularidade do comunismo português é um mantra que ultrapassa largamente o espírito das épocas porque nunca se deixou cristalizar na utopia e no dogma soviéticos. É uma singularidade que decorre da profunda portugalidade do PCP (sem nunca ter deixado de ser internacionalista). A singularidade tornou-se consciência activa (a couraça) de uma máquina que sobreviveu à morte do velho comunismo soviético para depois superar o próprio fim da história.

Ainda que temperado com fidelidade a Moscovo nas grandes questões que se colocaram dentro do movimento comunista internacional, o PCP (sem nunca ter caído na tentação do eurocomunismo) teve sempre a sua própria interpretação do modelo marxista-leninista baseada na luta concreta em Portugal.

Se for agora perguntado se continuará assim, se o PCP resistirá à conversão em comunismo de entretenimento das sociedades pop, teremos de aguardar pelo próximos 100 anos de uma máquina programada para “uma realidade que corresponde a uma concepção de princípio leninista e que a prática revolucionária moldou e transformou em cultural partidária tão naturalmente assumida como o ar que se respira” (“Momentos de vida e luta do PCP – 1921-2006”).

Adelino Cunha é historiador, professor associado da Universidade Europeia, investigador do IHC da Universidade NOVA de Lisboa, autor das biografias “Júlio de Melo Fogaça” e “Álvaro Cunhal – Retrato Pessoal e Íntimo” e da história do PCP no exílio “Os Filhos da Clandestinidade”.

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