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Auto-retrato do artista (não faz parte da exposição)
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Auto-retrato do artista (não faz parte da exposição)

Auto-retrato do artista (não faz parte da exposição)

A peregrinação interior de José Escada

Uma magnífica exposição no Museu Gulbenkian, oportunidade rara para ver a originalidade estética de um artista precocemente desaparecido. Até 31 de Outubro.

Tomando um verso de Fernando Pessoa como título, “Eu não evoluo, viajo”, inaugurou-se na Fundação Calouste Gulbenlkian a primeira exposição retrospectiva “em contexto museológico” da obra do pintor José Escada, falecido em 1980. Depois de em finais de 2014, após quatro anos de investigação biográfica e identificação de quadros dispersos, idêntica mostra ter sido dedicada a António Dacosta, temos agora a oportunidade de ver panoramicamente a pintura dum artista plástico precocemente desaparecido cuja ausência das paredes de museus nacionais e outros sublimou ainda mais a sua originalidade estética, fazendo lembrar — com as devidas e evidentes proporções — o que durante décadas havia ocorrido com Amadeo de Souza-Cardoso, que se sabia que tinha existido, mas de quem não se podia ver quase nada do que havia feito…

Armando Jorge Caseirão apresentou em 2006 à Faculdade de Belas-Artes de Lisboa uma tese de doutoramento sobre o pintor, que dez anos depois ainda permanece inédita, mostrando quão distraídos, negligentes ou, no mínimo, subsídio-dependentes são os editores portugueses. Mas o seu “contributo” para um catálogo raisonée, os numerosos dados por esclarecer ou actualizar e, enfim, o espectro incompleto dos contactos que fez deixaram ainda um grande trabalho de pesquisa pela frente, que agora parece estar plenamente concretizado, quanto é possível afirmá-lo.

Dois factores parecem ter “acelerado” a abertura desta exposição: o subtil alerta da Galeria Roque, de Lisboa, que no fim de 2014 mostrou persistentemente — durante quatro meses — quadros de José Escada, numa exposição denominada “Um príncipe fora do tempo”; e a saída de Isabel Carlos da direcção do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, cuja obsessiva e exclusiva “agenda contemporânea” (um logro que sai caro…) travou os projectos em curso dos historiadores de arte ao serviço daquela fundação, como sucedeu, entre outros, a Rita Fabiana, curadora desta retrospectiva.

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A gravidade dessa obstacularização pode ser entendida se atendermos ao facto de que, para levar a bom porto uma exposição deste calibre dedicada a um artista cuja maior evidência ocorreu há cinquenta anos e distribuiu por amigos a larga maioria dos seus trabalhos (como é bem o caso de José Escada), o tempo corre a desfavor de quem precisa de recriar quanto possível esse universo pessoal para atingir a identificação e localização das obras a expor ou analisar. A cada trimestre que passe, aumenta drasticamente o risco de ser menor o número daqueles ainda sobreviventes capazes de prestar informações valiosas, reenviando para outros ainda, em idênticas circunstâncias. Para mais num caso assim, entra pelos olhos adentro de qualquer um (que os tenha de facto) a emergência dum trabalho pró-memória que salvaguarde a história da arte e seus protagonistas, cujos meandros não poderão nunca vir a ser capazmente descobertos em catálogos e periódicos antigos ou em papéis guardados em gavetas que ninguém abre ou cujo valor pouco entende, por mais que tais documentos possam ajudar-nos e ajudam. Onde se paralisa a acção imediata, seria preciso atribuir meios reforçados diante deste aqui e agora alarmante. Mas não: a “ditadura do contemporâneo” faz tábua-rasa desse bom senso essencial, ao mesmo tempo que retira das paredes dos museus as obras dos artistas das gerações anteriores, como se eles fossem resquícios dum passado irrelevante.

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A criação e a decoração

“Pintor cristão”, como uma vez se autodenominou, José Escada estudou em Belas-Artes depois de ter frequentado a Escola António Arroio. A sua adesão ao Movimento de Renovação da Arte Religiosa — com apenas 19 anos de idade — foi a primeira das suas participações em grupos estéticos de especial relevância; o segundo foi o parisiense KWY, objecto duma exposição histórica no Centro Cultural de Belém, em 2001.

Colaboração crítica ou gráfica numa publicação estudantil, Ver, ou em revistas de católicos como Testemunho, Graal, Encontro e Búzio, ou Folhas de Poesia, foram a par duma exposição colectiva de estudantes no Centro Nacional de Cultura, de conhecida inspiração monárquica e católica, ou duma outra, que inaugura a Galeria Pórtico, mas também de trabalhos sobre uma Anunciação do pintor primitivo-quinhentista Gregório Lopes ou da intervenção plástica no altar da igreja paroquial de Santo António de Moscavide, em 1956, para a qual também desenhou o vitral Estrela da Manhã. Nesse mesmo ano, enquanto lecciona cerâmica decorativa com Manuel Cargaleiro, expõe a convite do Hot Clube, num concurso sobre jazz “visto por artistas modernos”, que teve catálogo prefaciado por Sena da Silva, e colabora com Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral no pioneiro Bloco de Águas Livres, em Lisboa, com um esgrafito de consideráveis dimensões. Em 1958, José Escada realiza onze painéis a esgrafito dedicados a São Bernardo e um fresco sobre a Ressureição para a capela do Hospital de Setúbal, e no ano seguinte, em Bissau, executa três murais em esgrafito e um fresco de grandes dimensões para a Associação Industrial e Comercial.

Este pendor decorativo para um artista plástico que privilegiará quase sempre pequenos formatos teve ainda expressão na tapeçaria de Portalegre Ondas (1958), no quadro São Jorge e o Dragão para a igreja da Mina do Lousal, em Grândola (1961) e no quadro Joie de Vivre para a fábrica holandesa Turmac Tobacco Company, sob convite da Fondation Europeénne de la Culture (1960).

A falta de meios próprios, o término das bolsas da Gulbenkian e o insucesso "comercial" criaram sérias dificuldades ao pintor, que em galerias de Londres, Munique, Baden-Baden, Lisboa e Rio de Janeiro (1965) tentará encontrar soluções salvíficas que não aparecem.

Um manifesto de católicos progressistas contra a repressão policial, que José Escada levou com Gonçalo Ribeiro-Telles ao gabinete de Salazar, em Abril de 1959, acabaria por motivar, directa ou indirectamente, a sua saída para Paris, em Janeiro do ano seguinte, apoiado numa bolsa de estudos da Fundação Gulbenkian, que teria como tutores Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. Apesar dum mandato de captura emitido em Fevereiro, Escada voltou em Dezembro a Lisboa, com João Vieira, para montar sem incómodos e inaugurar a exposição do Grupo KWY na Sociedade Nacional de Belas-Artes, a qual será apresentada a Paris na primavera do ano seguinte e a Bolonha no final de 1962.

A falta de meios próprios, o término das bolsas da Gulbenkian e o insucesso “comercial” criaram sérias dificuldades ao pintor, que em galerias de Londres, Munique, Baden-Baden, Lisboa e Rio de Janeiro (1965) tentará encontrar soluções salvíficas que não aparecem. Amigos dos círculos católicos progressistas, com o generoso António Alçada Baptista em destaque (e, mais tarde, a julgar pela ficha das obras, coleccionadores como Manuel de Brito, que na Galeria 111 fez uma exposição de Escada em 1966), terão sido decisivos em ocasiões em que a simples sobrevivência não estava assegurada.

Curioso é notar — e sublinhar — que, num gesto de inegável simbolismo, Escada ofereceu a Alçada as duas ilustrações que fez para a edição da antologia de relatos de naufrágios História Trágico-Marítima, que Fernando Ribeiro de Mello lhe encomendou em 1972, e que Sophia de Mello Breyner Andresen, também conhecida militante católica progressista, e campeã do snobismo burguês, lhe concedeu ilustrar reedições de A Noite de Natal (Ática, 1972), e especialmente de O Cristo Cigano (Moraes, 1978) e do belíssimo Coral (Portugália, 1979), estes dois num período em que Escada já se confrontava com uma grave crise de turberculose, com dois internamentos no Caramulo, e também escreverá para o catálogo da exposição na Galeria de São Mamede, em 1979.

Entre Paris e a liberdade

Ainda assim, creio que a grande figura de referência para José Escada — sobretudo a partir do seu regresso a Portugal, no fim de 1972 — terá sido o poeta e pintor surrealista Mário Cesariny de Vasconcellos, a quem dedica o seu Auto-Retrato de 1972 (para mais, pintado no mesmo ano de Auto-Retrato no atelier, oferecido à sua própria mãe, e dum retrato do próprio Cesariny), invocando “imensas razões”, entre as quais, além da luminosa genialidade desalinhada, haverá que contar a afirmação firme duma homossexualidade todavia estigmatizada por lei e condenada a ultrajes policiais (e lembre-se que o “processo” de Cesariny ocorreu em Paris, num período em que Escada aí morava também). Aliás, a sua rápida “decadência e queda” tóxica pode ser aproximada da de Nuno Bragança (1929-85), um outro católico esquerdista de especial valor para quem “as grandes conquistas de Abril” de 1974 foram rapidamente truncadas, e de algum modo também ao injusto “apagamento” do poeta e filósofo M. S. Lourenço (1936-2009), que só reaparece na cena portuguesa em 1990, através duma fabulosa coluna d’O Independente, “Os Degraus do Parnaso”, que, feita livro, logo lhe rendeu um prémio literário, e para quem Escada desenhara em 1960 a capa dum livro de poesia “surrealizante”, O Desequilibrista.

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Os anos de Paris, apesar da precaridade material, foram de busca estética e oficinal intensa, com o aparecimento das prodigiosas metamorfoses simétricas que da bidimensionalidade de tinta-da-china, ponta de feltro, grafite e aguarela sobre papel passaram à tridimensionalidade do recorte sobre cobre, alumínio, zinco, acetato de celulose, folha de flandres e papel de diferentes cores, como em Les 5 signes, um pequeno livro de artista pop up de 1966. Noutro ciclo de trabalhos, de meados dessa década, a tinta-da-china sobre papel, figurinhas negras quase caligráficas, dispostas numa superfície clara quase liquefeita, parecem deslocar-se em estreitos canais, ao sabor de subtis balanços cíclicos. Mais tarde, em 1971-73, surgem conglomerados de cordas, ou amarras, um dos quais intitulado O espírito não descerá sem a canção — que não ficaria mal como título geral desta exposição retrospectiva. José Escada parece desenvolver então uma pintura confessional, de alguém que se reconhece envolvido em amarras que cingem o seu corpo político, ofendido pelo preconceito à liberdade sexual, como em L’Homme enchaîné (oferecido no Natal de 1972 a Maria Nobre Franco, 1936-2015) e num quadro do ano seguinte, que representa um homem nu segurando grades.

Rita Fabiana preferiu destacar este aspecto, expondo desenhos eróticos de corpos entrelaçados e retratos de amigos ou parceiros do pintor de finais da década de 1970, talvez para sublinhar — e bem — que a liberdade almejada pela luta política de José Escada não havia trazido até então o pleno reconhecimento do livre-arbítrio individual e da intimidade de cada um como a prova provada duma sociedade efectivamente liberal. Mas isso pesa um pouco na parte final da exposição, contradizendo a “multiplicidade do visível” detectada por Sophia e a magnitude de alguns quadros do ano da morte do pintor, em particular aquele em que, junto à capela de Santo Amaro e acocorado debaixo duma oliveira centenária, José Escada se representa observando de cigarro aceso e cajado em riste, na companhia dos seus adorados cães, o mistério da noite e o treluzir urbano da outra banda (n.º 189, catálogo p. 204: óleo sobre platex, 46 x 38 cm).

O catálogo (264 pp., 35 €) é muito valorizado pela inclusão da crítica de arte de José Escada, algumas entrevistas-conversas com Rui Mário Gonçalves e outros textos.

O melhor que o visitante desta magnífica exposição pode desejar é cruzar-se nela com Lurdes Castro — a única artista sobrevivente do KWY —, que não esteve na inauguração e que certamente vai vê-la com os seus olhos refulgentes de alegria e ternura, pela presença intensa do seu tão inconfundível amigo.

Exposição no Museu Gulbenkian até 31 de Outubro; das 10h às 18h, encerra às terças; bilhetes a 5 euros.

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