Pareciam “muitas lâmpadas a estalar”. O som, que só o silêncio de uma procissão prestes a começar deixou que fosse ouvido, era um prenúncio da tragédia que estava prestes a assolar mais uma vez o Largo da Fonte, na freguesia do Monte, no Funchal. O “estalar” vinha “lá de cima”. “Por cima da fonte onde se encontra a imagem de Nossa Senhora do Monte, algo caía”. Foi assim que as testemunhas ouvidas pelo Ministério Público (MP) recordaram os momentos que antecederam o acidente.
Uma delas recorda-se de estar junto à igreja a aguardar a saída da procissão e de ouvir “um barulho de algo a rachar”. Olhou para cima e viu um ramo “a rachar por três vezes”. “A árvore vai cair!”, gritou. Não houve tempo para fugir. Nem mesmo para quem ouviu o alerta. Segundos depois, “um chapéu imenso” caiu sobre a multidão.
15 de agosto de 2017 era o dia da Assunção de Nossa Senhora, também conhecido por Dia de Nossa Senhora do Monte, padroeira da Região Autónoma da Madeira. Era também o dia da maior festa religiosa da Madeira. Ao meio-dia, quando centenas de pessoas aguardavam a passagem da procissão no Largo da Fonte, o carvalho de 148 anos e com 10,4 toneladas caiu e atingiu várias pessoas: 13 morreram e 49 ficaram feridas.
A “maldição” da Nossa Senhora das Babosas. “Isto é ela a dizer que quer voltar para a sua casa”
Dias depois, muito se especulou sobre de quem era o terreno onde estava plantado o carvalho. Queria saber-se a quem estava atribuída a manutenção da árvore e de quem era, no fundo, a responsabilidade pela tragédia. Para conseguir perceber isso, o MP teve de recuar mais de 100 anos. Desde essa altura, o terreno foi sendo aumentado e alterado, com anexações de parcelas — algumas delas feitas sem registos. Mas a investigação que durou mais de um ano permitiu concluir que ele correspondia antigamente ao chamado Passal do Pároco da Igreja do Monte mas foi “cedido há mais de 100 anos pela Paróquia à Câmara Municipal do Funchal para servir de jardim público”.
Apesar de não existir um registo predial que comprove a propriedade do terreno, a ata da sessão camarária em que foi aprovada a proposta de cedência do terreno, as notícias publicadas à data e o simples facto de, desde essa altura, o espaço ter sido “tido por todos, incluindo o próprio município, como pertencente à área do Parque Leite Monteiro, e por este mantido e conservado para uso e fruição públicos”, foram suficientes para concluir: “Era ao Município do Funchal que competia controlar e eliminar as fontes de perigo para pessoas que circulassem ou permanecessem no Largo da Fonte”.
Foram assim constituídos três arguidos: Paulo Cafôfo, presidente da Câmara do Funchal; Idalina Perestrelo, a vice-presidente do município a quem estavam atribuídos, entre outros, o Pelouro do Ambiente Urbano, Espaços Verdes e Espaços Públicos, o Pelouro da Gestão Ambiental e o Pelouro da Conservação da Natureza e tinha também a tutela do Departamento do Ambiente; e Francisco Andrade, engenheiro agrónomo e chefe da Divisão de Jardins e Espaços Verdes Urbanos (DJEVU) do Município do Funchal.
O MP acabou por não acusar Paulo Cafôfo por considerar que “o autarca havia delegado as competências destes espaços em outros elementos da equipa”. Foram, por isso, acusados os restantes arguidos. Idalina Perestrelo é ouvida no Tribunal do Funchal esta sexta-feira às 14h30 — hora para qual está marcada a primeira audição da fase de instrução. Francisco Andrade é ouvido a 11 de outubro à mesma hora.
Ainda assim, um dos familiares das vítimas, que perdeu o marido e o filho, não concorda com o despacho de arquivamento em relação a Paulo Cafôfo e pediu no início de novembro do ano passado a abertura de instrução, como noticiou o Público: “Havia e há factos e direito que, por igual e até por maioria de razão, fundamentam a responsabilidade penal desse outro arguido Paulo Cafôfo para ter sido também e igualmente acusado, pois sobre ele nunca deixou de recair o especial dever de cuidado e a obrigação de zelar pela boa saúde da árvore ou carvalho em causa”.
Queixas eram feitas há anos. Mas arguidos não terão tomado medidas devido ao “custo da tarefa”
A queda de ramos de árvores, especialmente dos plátanos que ali existem, era uma realidade e um tormento para quem ali vivia. Pelo menos uma casa e um café já tinham até ficado parcialmente destruídos. “Há vários relatos históricos da queda de árvores no Jardim do Monte, facto que era do conhecimento da Câmara e dos arguidos”, segundo refere a acusação. Havia inclusivamente uma injunção interposta em tribunal por um morador “contra o anterior executivo”. As queixas da população eram constantes e “foram a despacho por parte da arguida Idalina que assim tomou conhecimento das mesmas e que as encaminhou para o arguido Francisco Andrade”, diz o MP.
Na sequência da queixa interposta em tribunal cerca de um ano antes da tragédia, os arguidos solicitaram um parecer apenas relativo aos plátanos do Largo do Monte ao Instituto das Florestas e Conservação da Natureza — que “sugeriu que se deveria considerar uma análise mais rigorosa recorrendo a uma entidade externa que procedesse a diagnósticos biomecânicos e análises de risco”. “Os arguidos ignoraram tal parecer“, acusa o MP.
A investigação recolheu provas de que Francisco Andrade, na sequência do parecer, terá informado Idalina Perestelo que não havia a necessidade de realizar “podas radicais naquelas árvores”. As razões? Por serem “exemplares notórios” e por “razões técnicas que não explica mas que têm que ver não com a sanidade das árvores mas sim com a dificuldade e custo da tarefa“.
Além destas provas, o MP entende que os arguidos estavam “cientes de que eram frequentes os relatos de quedas de pernadas e grandes ramos das árvores centenárias do Parque” e não foram tomadas “quaisquer medidas que pudessem preservar a segurança” da população. Os procuradores notam até que algumas dessas quedas chegaram a ser relatadas na comunicação social.
Podridão e cogumelos deveriam “ter chamado a atenção”, mas não chamaram
A árvore era um carvalho-alvarinho. Caiu de uma altura de mais de 8,50 metros. Segundo um relatório pericial solicitado pelo DIAP, era uma árvore centenária com 148 anos, media mais de 29,8 metros de altura e tinha um peso estimado de mais de 10 toneladas, medindo apenas 0,97 centímetros no perímetro da sua base. O carvalho encontrava-se “muito inclinado para o lado do Largo da Fonte, por causa da competição com as outras árvores pela luz” — o que, considera o MP, “é um fator estranho que deveria ter chamado a atenção”.
Além disso, o tronco do carvalho tinha “extensas áreas desprovidas de casca” que tornavam visíveis “tecidos mortos, sintomático da falta de saúde da árvore”. Mais: “Junto ao local por onde a árvore partiu” havia cogumelos de “dimensões razoáveis para a espécie” — o que “indicava, ao observador atento, que a árvore em questão estava podre“.
Assim, o MP não percebe como é que as árvores do Largo da Fonte “não estavam sinalizadas como árvores de risco”. Em vez disso, não eram observadas por alguém “entendido no assunto”, “não eram recolhidas nem analisadas quaisquer amostras”. “Os jardineiros na dependência hierárquica dos arguidos e destacados para o local, os quais são analfabetos, não têm formação técnica ou profissional nessa área e não sabem identificar quaisquer sinais de maleita nas árvores do jardim”, aponta o MP, explicando que os mesmos se limitavam a varrer, a aparar os arbustos, a remover o lixo.
Ainda assim, foi o facto de esta ser uma tragédia anunciada que mais chocou o MP. Apenas cinco meses antes da tragédia, um ramo de grandes dimensões tinha caído no Largo da Fonte. “Um dia destes há uma tragédia e ninguém é responsável”, dizia à data o morador e autor da queixa em tribunal, o portal Funchal Notícias, aquando da notícia da queda de um ramo, cinco meses antes do acidente.