Política pura, deputada eleita há 27 anos seguidos, a biografia de Ana Catarina Mendes confunde-se com o seu percurso no PS e no Parlamento. Começou o caminho com uma guerra fratricida em que perdeu a JS por um voto para a opositora, mas singrou no partido e foi assumindo cargos de responsabilidade maior até chegar ao Governo.
Eternamente incluída nas listas de potenciais sucessores a António Costa, a socialista que faz parte da coordenação política do Governo tem uma boa notícia — sobe finalmente a ministra — e outra má — a pasta dos Assuntos Parlamentares pode ficar facilmente esvaziada num contexto de maioria absoluta. O desafio será provar que, como Santos Silva nos tempos de Sócrates, consegue tornar este papel mais do que um ponto de ligação entre o Parlamento e o Governo e não perde peso político com isso — e tem duas pastas extra para a ajudar nessa missão.
Qual é o currículo?
É praticamente todo político. Eleita sem interrupções no Parlamento desde os 22 anos, Ana Catarina Mendes é advogada de profissão, tendo-se licenciado em Direito na Universidade de Lisboa e começado o mestrado em Novas Fronteiras do Direito. De resto, todo o seu percurso se faz na área que conhece melhor: na política.
Qual é o percurso político?
Desde 1995 que a biografia de Ana Catarina Mendes, nascida em 1973, se confunde com o seu percurso político. Percebe-se olhando para os seus registos na Assembleia da República: desde a VII legislatura, que arrancou nesse ano, que é ininterruptamente eleita deputada pelo círculo de Setúbal, sendo que com a conhece aponta, ainda nova, a inspiração que encontrou José Barros Moura (na altura vice-presidente da bancada do PS) e o trabalho como braço direito de Francisco Assis (líder parlamentar entre 1997 e 2002).
Mas, na verdade, a história política de Ana Catarina Mendes começa na JS e deixou marcas. Foi, aliás, protagonista do último grande confronto na juventude do PS. Aconteceu em 2000: um conflito aceso que dividiu a jota, que opunha a jovem candidata Ana Catarina à candidata (agora deputada e ex-secretária de Estado) Jamila Madeira e que acabou com uma disputa voto a voto em que Jamila derrotou Ana Catarina por um voto. Ainda houve reclamação – o voto que decidia a eleição não seria válido, argumentava o lado derrotado – mas sem sucesso.
Não foi, no entanto, por essa derrota precoce que Ana Catarina Mendes deixou de assumir progressivamente maior protagonismo dentro do PS, alcançando alguns dos cargos mais altos dentro do partido. Localmente, foi líder tanto da concelhia de Almada como da federação distrital de Setúbal – uma federação que hoje em dia é liderada pelo irmão e secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes (que, como já chegou a contar numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, se filiou primeiro na jota).
Particularmente relevante foi, no entanto, o momento em que, no Governo da geringonça, foi escolhida para número dois do partido, ou seja, como secretária-geral adjunta, tornando-se a chefe do aparelho socialista. Na altura já se especulava que poderia subir ao Governo, especulação que se adensou em 2019, mais uma vez sem efeito: nessa altura, a socialista acabaria por ser escolhida para suceder a Carlos César na liderança da bancada parlamentar do PS, tendo assim liderado o grupo parlamentar na fase final da geringonça (que formalmente já não existia).
Foram, de resto, vários os embates públicos com PCP e sobretudo Bloco de Esquerda, a quem dirigiu por várias vezes intervenções duras a partir do púlpito no Parlamento. Chegou a admitir não ter “querido acreditar” quando Costa lhe falou pela primeira vez na solução da geringonça, mas acabou a elogiar os méritos dessa arquitetura parlamentar.
Na bancada é apontada uma dificuldade acrescida destes anos: Ana Catarina Mendes passou quase todo o tempo como líder parlamentar em pandemia, o que significa que durante boa parte destes meses foi confrontada com um Parlamento a funcionar a meio gás ou mesmo em serviços mínimos, através apenas da Comissão Permanente. Mesmo assim, deixou trabalho feito com a aprovação da lei do teletrabalho (o trabalho é, de resto, uma das áreas em que se especializou) e da lei de bases do clima.
Ainda assim, nos anos como líder parlamentar, as opiniões na bancada dividiram-se entre quem gostou do estilo de uma líder “trabalhadora”, “leal”, e quem a considera demasiado “obediente” e alinhada com as vontades de António Costa.
Para quem a considera uma “criação” do líder, uma curiosidade: em 2020, substituiu Jorge Coelho no programa Quadratura do Círculo (antes na SIC, agora na TVI, na versão Circulatura do Quadrado) – um lugar de comentador que Costa já tinha ocupado antes de liderar o PS.
Além de deputada municipal, chegou a especular-se, nas últimas eleições autárquicas, que seria a grande aposta do PS para conquistar a câmara de Setúbal ao PCP. A conclusão foi, no entanto, que não seria benéfico o partido perder uma peça de primeira linha parlamentar no combate autárquico; avançou o deputado Fernando José e Ana Catarina, numa solução de compromisso e numa tentativa de somar peso ao ticket autárquico, foi candidata à Assembleia Municipal (ambos os órgãos foram ganhos pelos comunistas).
Qual é a experiência na área de governação?
A experiência, olhando para o currículo, é evidente: Ana Catarina Mendes termina os 27 anos seguidos de experiência parlamentar com uma passagem direta para o ministério dos Assuntos Parlamentares, pelo que lhe valerá o conhecimento que tem do Parlamento e também das outras bancadas. É, evidentemente, uma promoção – mas uma promoção que, apontam vários dirigentes socialistas, deixa a desejar.
Quais os desafios?
Começa-se mesmo por aí: o desafio maior será provar a utilidade e autonomia do cargo, num Governo de maioria absoluta em que o Executivo não terá grande necessidade de negociar com outras bancadas em pastas específicas ou na aprovação de Orçamentos do Estado, por exemplo. Talvez por isso esta quarta-feira, minutos depois de ter sido oficializada a nova posição que ocupará no Governo, tenha insistido por várias vezes em apontar para uma legislatura em que o “diálogo” entre partidos será essencial.
Os mais céticos ironizam: o cargo pode transformar-se numa espécie de “pombo correio” entre o Governo e o Parlamento, sem substância política real, e em comparação com as tarefas que os outros nomes falados para a sucessão no PS receberam – Pedro Nuno Santos com a pesada pasta das Infraestruturas e da Habitação, Mariana Vieira da Silva promovida a número dois do Governo, Fernando Medina tem as Finanças – o cargo é menos preponderante.
Mas quem trabalha diretamente com Ana Catarina aponta as vantagens do seu perfil para o lugar – um perfil “moderado, pouco arrogante, de diálogo”. Até por oposição ao outro sucessor mais apontado para a liderança do PS, Pedro Nuno Santos, ironizam: “Com uma maioria absoluta e um estilo mais arrogante…”.
Além disso, quem defende as virtudes do lugar argumenta que são os líderes que fazem os lugares, recordando o exemplo de Augusto Santos Silva, que foi ministro dos Assuntos Parlamentares na maioria absoluta de José Sócrates e nem por isso perdeu peso político. Pode ser uma pasta em que não existe obra para apresentar; mas há uma afirmação do ponto de vista institucional e um reconhecimento de 27 anos de trabalho parlamentar.
Para compor o cargo, Ana Catarina Mendes será também ministra Adjunta e com pastas específicas: Igualdade e Migrações por um lado, Juventude e Desporto por outro. Isto poderá ajudar a concretizar mais uma pasta que a maioria absoluta poderia ajudar a esvaziar. Sendo que em 2022 se assinala o ano europeu da juventude e é preciso preparar a candidatura conjunta com Espanha à organização do Mundial de futebol de 2030, e que a pasta das migrações é particularmente importante no momento que a Europa atravessa, a nova ministra terá outras áreas concretas de que se ocupar.
Que polémicas tem no seu percurso?
Não é exatamente um currículo recheado de polémicas. Ainda assim, há meses, a discussão sobre a sucessão no PS animou quando Ana Catarina Mendes criticou na televisão, na Circulatura do Quadrado, o outro possível sucessor Pedro Nuno Santos. O ministro tinha criticado a Ryanair, que acusava de praticar “sistemáticos atos hostis” contra a TAP; Ana Catarina respondeu aconselhando menos atitudes “truculentas” e mais “recato, sensatez, bom senso nestas reações” dada a “responsabilidade acrescida” que o papel de ministro impõe.
A reação ainda valeria uma crítica na bancada parlamentar socialista: o deputado e dirigente Ascenso Simões questionaria a “dupla função” de comentadora e líder parlamentar, num e-mail enviado à bancada (com que vários pedronunistas concordaram), argumentando que “quando não existe o peso da idade e décadas de experiência política que sempre concede autoridade, [isso] pode levar-nos a imprudências”.