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João Pedro Pincha/Observador

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Batalha naval: quem manda na ria em Cabanas de Tavira?

Cabanas de Tavira, no Algarve, não é a Sicília, mas a guerra que opõe os barqueiros tem contornos de filme 'gangster'. Os turistas passam ao lado da querela, mas a população nem por isso.

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Cabanas for dreams

A malta do grupo columbófilo não quer chatices. O tempo está esquisito, céu nublado e sol forte, onde se está bem é debaixo de uma sombra e, mesmo assim, é impossível evitar que a roupa se cole ao corpo. Por isso, a malta do grupo columbófilo quer mais é que os deixem em paz, que não os metam em guerrinhas, que os deixem estar à sombra da grande árvore a falar. Sobre pombos, quem sabe. Para falar sobre barcos é ir lá abaixo, dizem-nos. Nos barcos é que andam todos de candeias às avessas uns com os outros, aqui não se aprende nada sobre isso.

São três e pouco da tarde e realmente o calor é tanto que só apetece recolher a uma sombra, beber um sumo das boas laranjas algarvias e não fazer nada. Uma série de gente deve ter pensado o mesmo, ou as esplanadas da marginal de Cabanas de Tavira não estariam tão bem compostas a esta hora. Nota-se pouco movimento, apesar disso. Um carro para lá, um barco para cá e pouco mais. Nas barracas dos pescadores também não há grande animação. Foi ali que a malta do grupo columbófilo disse que era melhor ir primeiro. De facto, quem melhor para falar de barcos do que pescadores?

— Então pode-me dizer o que é que se passa aí nos barcos?

— Epá, anda ali uma loucura. Ainda ontem ou anteontem houve aí um acidente que meteu feridos e tudo. A gente estava à espera que isso acontecesse. Podia ter sido uma grande tragédia, se o barco entra com a proa no outro…

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O pescador que abordamos tem “nome de santo”, como o próprio diz, mas de santo terá pouco. Na língua de João Baptista há sempre uma piada mais ou menos reproduzível para contar e um fado dos antigos para entreter. São aqueles de que mais gosta e que sabe trautear melhor. Na cara, uma barba de profeta esconde dois olhos muito azuis e é garantia de muitas memórias do mar. O que se passa em Cabanas, explica, é que ninguém se entende sobre os barcos. Os barcos, os barcos… Estamos sempre a ouvir falar dos barcos e ainda não percebemos o que se passa. “Este cais aqui é para os pescadores e para o pessoal que tem barcos os pôr na água. Só podem fazer isso aqui, além não podem”.

João Baptista entretém-se a fazer pequenas esculturas com aquilo que o mar dá

João Pedro Pincha/Observador

Além é no centro da terra, atravessada a marginal cheia de bares, restaurantes e bares disfarçados de cafés. Além é onde há:

1) um cais de madeira com um cartaz que grita “TRANSPORTE PÚBLICO PARA A PRAIA”;

2) uma rampa de cimento, sem grandes condições.

É aqui que está o busílis. Tanto desta rampa como do cais saem barcos para a ilha mesmo em frente, que tem uma praia. Na rampa, os passageiros e os barqueiros são obrigados a usar um colete salva-vidas. No cais, não. Um e outro distam menos de cinquenta metros.

Mapa-Cabanas

Cabanas de Tavira é uma praia essencialmente familiar. As suas águas calmas e geralmente muito quentes atraem sobretudo casais com crianças, de uma classe média que não está para aturar as confusões de Albufeira, Armação e Monte Gordo, cujas torres se veem daqui e são exemplos do crescimento imobiliário desenfreado que Cabanas nunca teve. Os que já vêm para aqui há mais anos costumam deixar as cadeiras e os chapéus de sol na praia de um dia para o outro, para não terem de os transportar no barco, que é a única forma de chegar à ilha. Alguns desses, mais antigos, ainda se lembrarão de quando não havia — nem eram precisos — barcos para atravessar a Ria Formosa. Bastava passar a pé quando a maré estava baixa. Depois, a pretexto de salvar os bivalves, a ria foi dragada, ganhou a profundidade que tem hoje e vieram os barcos. A princípio eram os pescadores que levavam os banhistas nos botes de madeira, mas depois a atividade foi-se profissionalizando e chegámos ao que há hoje: três empresas e dois barqueiros independentes fazem a travessia de duzentos metros de um lado ao outro. A viagem demora menos de quarenta segundos e custa setenta e cinco cêntimos.

Marginal de Cabanas. Ao fundo, à direita, o bar da praia, já na outra margem da Ria Formosa

João Pedro Pincha/Observador

Conhecer Costa

— Leva aí umas ostras, pá.

Desta vez não pode ser, João Baptista, fica para a próxima. Deixamos o pescador de olho azul junto às barracas de madeira e aos tesouros dados pelo mar. Conchas, búzios, estrelas e uma miríade de objetos compõem um museu improvisado e curioso, que o santo abre aos que estejam na disposição de lhe dar dois dedos de conversa.

Seguimos, marginal fora, pelo passadiço de madeira construído em 2009. Como a dita guerra parece ser essencialmente um desentendimento entre os barqueiros da rampa e os do cais, vamos em busca de um dos operadores da rampa, conhecido como o Cabaneiro.

— Boa tarde, o senhor é que é o Cabaneiro?

Não é. O homem que temos à frente é Marco Costa, a segunda pessoa de olhos azuis que encontramos nesta terra. De indisfarçável sotaque nortenho, este homem baixo mas grande é o dono da Marnereu, empresa que está visível aos consumidores através da marca CostaBoat, dedicada a passeios de barco na Ria Formosa, a serviços de aqua-táxi e ao transporte de pessoas entre Cabanas e a praia. Meia dúzia de palavras bastam para perceber que Marco Costa é um homem insatisfeito. “Tudo o que se passa aqui é uma ilegalidade”, dispara. E o alvo dele é concreto, tem um nome. Chama-se Manuel Macieira Coelho, é o empresário que tem as duas concessões da praia de Cabanas e, além disso, um serviço de barcos para a ilha. Estes operam no cais de madeira da vila e, lá, os passageiros não são obrigados a usar colete salva-vidas. Isso e o facto de a empresa de Macieira Coelho vender bilhetes de ida e volta (ao contrário dos outros barqueiros, que só vendem para uma viagem) faz com que muitos banhistas prefiram aqueles barcos.

O enredo complica-se, então. Isto não é apenas uma guerra entre os barqueiros que são obrigados a usar coletes e os outros. É, segundo Marco, uma querela entre duas formas de ver o mundo: a que admite concorrência entre empresas e a que quer dominar o mercado através de uma posição monopolista. “Como é que se vai dizer a um indivíduo ‘olhe, aqui tem de usar colete’ quando logo à frente não usam? A ideia é afastar os que têm de usar coletes”. E, diz Costa, está tudo a ser orquestrado por Macieira Coelho.

Antes de irmos mais longe nestas acusações, explique-se que o uso de coletes salva-vidas é uma obrigação legal para todas as embarcações marítimo-turísticas. Isto é, aquelas que fazem passeios na Ria Formosa e fora dela. Acontece que há barcos com esta categoria que também fazem a ligação para a praia: são os que trabalham na rampa. As embarcações de tráfego local, que têm apenas um percurso e dele não podem fugir, não estão obrigadas a uso de coletes. É o caso dos barcos de Macieira Coelho, que trabalham no cais de madeira.

Em primeiro plano, a fila de passageiros na rampa. Ao fundo pode ver-se o cais de madeira

João Pedro Pincha/Observador

O monopólio

A tarde avança a passo lento e há como que uma modorra a pairar no ar. O passadiço de madeira tem pouca gente, os bares ainda não ganharam animação e o quiosque onde Marco Costa vende passeios na ria só vai tendo procura de vez em quando. A menos de um metro, o quiosque de um concorrente está vazio, não há lá ninguém para convencer os turistas a ir ver os golfinhos, os flamingos ou as outras belezas naturais da zona. O homem do Norte de olho azul vai-se entretendo a explicar como vê tudo isto. O que Macieira Coelho quer é, acusa, “eliminar aquela parte ali, acabar com a rampa”. Assim, consegue “eliminar toda a concorrência e ficar rei e senhor: duas concessões na praia e o transporte todo para lá”.

Parece um plano diabólico. Ainda por cima, como Marco juntou todos os operadores da rampa numa contestação oficial ao uso dos coletes, conta-nos que agora não o deixam em paz. “Aqui isto é do além. Eu sou mais perseguido do que um bandido. Tive um agente da Polícia Marítima a fiscalizar-me um barco três vezes no mesmo dia”. E os outros, não são fiscalizados? Não, afirma Costa, que só vê um fim para esta história. “É abrir um concurso público nacional ou internacional, trazer uns barcos como deve ser e pronto”.

Em Cabanas, entre barqueiros e moradores, são várias as pessoas que nos dizem que a Docapesca, que é a entidade que manda nos portos, nos cais e na ria, já prometeu várias vezes que ia lançar o tal concurso para decidir de uma vez por todas quem pode transportar pessoas para a praia. Enviámos 15 perguntas à Docapesca sobre este assunto a 12 de agosto, ainda estamos à espera de resposta.

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A carta

Conversa acabada com Costa e parece que a história já não está longe do fim. Com alguma sorte, depois de feitas as entrevistas que ainda faltam, talvez dê para ficar todo o dia seguinte a destilar numa esplanada. Eis que o destino tem outros planos. Chega-nos um e-mail à caixa de correio com o seguinte assunto: “Operadores marítimo-turísticos de Tavira descontentes”. Lá dentro, vem uma carta endereçada a 15 entidades, incluindo dois ministros, o presidente da câmara de Tavira, o comandante geral da Polícia Marítima, o comandante do porto, o Turismo de Portugal, a Autoridade para as Condições do Trabalho e outras. Na carta, os signatários dizem querer “expor situações gravíssimas” criadas, nada mais nada menos, do que por… Marco Costa.

O rol de queixas é extenso. Começa com a denúncia de que a CostaBoat usa um cais sem licença para tal, prossegue com o facto de Costa não ter autorização para fazer passeios de avistamento de golfinhos e, ao quinto parágrafo, chegam as cenas dignas de filmes de gangsters. “A Marnereu tem ao seu serviço empregados belicosos e agressivos: ameaçam fisicamente os empregados das outras empresas (em frente aos turistas/clientes), agridem-nos verbalmente, invadem o espaço privado de outras empresas e asfixiam totalmente os passadiços com publicidade ilegal (nomeadamente em Cabanas, exemplo mais flagrante, já por diversas vezes reportado às entidades, aparentemente sem efeito). Trata-se de um exemplo clássico de bullying, criando um ambiente que só denigre um destino turístico familiar e tranquilo, como é a zona de Tavira.” Os negritos vêm na carta.

Mais à frente na missiva, novo ataque: “Os preços de táxi marítimo e travessias das carreiras fluviais são acordados entre os operadores e as autoridades competentes e afixados no cais (…). A Marnereu, no entanto, recorre a práticas de concorrência desleal e faz dumping, vendendo abaixo do preço. (…) Desde o início do mês cobra ilegalmente 0.50€, com o objetivo de “liquidar” os restantes operadores.” Mais uma vez, os negritos já vinham na carta, que é assinada por todos os operadores marítimo-turísticos de Cabanas e também de Tavira e da ilha de Tavira, onde Costa tem uma concessão de praia. Portanto, entre os signatários estão o Cabaneiro, o vizinho de Costa no cais e Macieira Coelho, entre outros.

A Ria Formosa, vista da ilha de Cabanas. Ao fundo está Cacela Velha e, mais longe, é Monte Gordo

João Pedro Pincha/Observador

Diálogo no cabeleireiro

Ou seja, o caso muda de figura. O dia ainda não acabou, porque é preciso ver o que é que Costa tem a dizer sobre estas acusações. Marco já não está onde o deixámos, no passadiço de madeira.

— Desculpe, onde está o sr. Costa? Precisava de esclarecer umas coisas com ele.

— Ah, está no cabeleireiro, lá ao fundo.

Andamos todo o passadiço para trás, na direção das barracas dos pescadores. Pouco antes, virando à direita, ficamos com o cabeleireiro mesmo em frente. Lá está Marco Costa, toalha em redor dos ombros, alguns cabelos já cortados, a beber um sumo de fruta. “Jovem”, sorri em tom de cumprimento, enquanto aponta para um enorme sofá em cabedal preto encostado a uma parede.

— Recebi aqui uma carta…

— Ah essa carta… Eu sabia que tinham enviado isso, mas não sei o que diz.

Lemos algumas passagens. Costa fica particularmente surpreendido com o facto de o Cabaneiro ter assinado a missiva, até porque ambos tinham afinado pelo mesmo diapasão na contestação aos coletes. Começamos por uma ponta:

— Eles dizem que não tem autorização para fazer passeios para ver golfinhos.

— Não tenho licença para os passeios de golfinhos, é verdade, estou a tratar disso. Eu faço uma rota pela ilha de Tavira, Terra Estreita, Barril e praia de Cabanas. Há muita probabilidade de haver golfinhos. Que culpa tenho eu, no passeio que faço, de ver os golfinhos?

Pouco depois de estarmos à conversa com Marco Costa pela segunda vez, este levanta-se da cadeira, lança a toalha para o lado e deixa o corte de cabelo a meio. Percebe-se que está irritado. E, no meio de frases soltas, vai tentando rebater os argumentos da carta. “As minhas funcionárias são insultadas todos os dias. Faço mossa, estou a provocar mossas. Querem-me correr daqui, mas não vou embora. Eu em dois anos tenho investimento e contratações feitas que eles não fizeram em 15 ou 20 anos. Vão já levar com uma ação de difamação em cima deles”.

Saímos do cabeleireiro atrás de Marco, que quer mobilizar as tropas. Desdobra-se a atender telefonemas. A notícia da carta correu rapidamente entre familiares e amigos, todos lhe ligam para o apoiar. Um por um, ouvem de Costa a promessa de que vai haver luta contra os que, acredita, “juntaram-se para [o] expulsar”.

Mapa-Cabanas-Ruas

Costa contra-ataca

A música que se ouve no bar do mercado de Cabanas é escolhida no YouTube por uma empregada. De vez em quando lá vem um anúncio, particularmente inoportuno para quem está a tentar atrair clientela vinda da praia. Já passa das sete da tarde, o tempo refrescou e é a hora escolhida por muitos para regressarem à vila. Chegam a estar, pelo fim do dia, mais de cem pessoas no passadiço de madeira da ilha à espera de barcos. É nessa altura que a ria se enxameia de embarcações num constante vaivém entre a praia e a vila. É também nessa altura que os barqueiros mais vão na bisga e lá levam uns dois ou três passageiros a mais do que deviam.

Corre entre os turistas e moradores de Cabanas uma história peculiar. Há uns anos, a Polícia Marítima decidiu fazer uma fiscalização a todos os barcos da ria, para ver se estavam a levar o número de passageiros legalmente permitido ou se estavam a aldrabar. Para tal, ocupou o cais da ilha e, em menos de nada, ficaram centenas de pessoas numa fila interminável. Consta que, no meio da multidão, estava o ministro da Defesa, Aguiar-Branco. Às nove e tal, dez da noite, ainda havia tanta gente à espera na ilha e terá sido a própria polícia a permitir a sobrelotação dos barcos.

Como íamos dizendo, o bar do mercado está a compor-se de gente. E Joaquim Pedro Martins, o mais antigo barqueiro de Cabanas, já acabou o serviço. É, portanto, a oportunidade de ouro para perceber o que ele acha disto tudo. No ano passado, a Docapesca quis tirá-lo, juntamente com os outros, da rampa onde trabalha há quase quarenta anos. A ideia era que Joaquim, Costa, o Cabaneiro e Carlos Bagarrão, – o outro operador da rampa -, passassem para um cais mais longe da praia, onde atualmente param os barcos da CostaBoat. No centro da vila só ficariam os barcos de Macieira Coelho.

Segundo Joaquim, a tentativa de acabar de vez com a rampa já não é de agora, mas tem sido mais intensa nos últimos tempos. Ele também está convencido de que a obrigatoriedade de usar coletes é mais um prego no caixão. “A reforma da pesca é coisa pouca”, explica Joaquim, outro homem de olhos azuis, que raramente os mostra por andar sempre de óculos de sol. “Faço isto estes dois meses para sobreviver no inverno e fazer face às despesas”, afirma, já depois de tirar os óculos, como que num sinal de confiança para o interlocutor. Fala num tom calmo e, pouco depois, confirma: “Quero é que me deixem trabalhar. Já tenho 65 anos, não estou para me chatear”.

De volta ao bar do mercado, Marco bebe um café.

— Sabes, eu vejo a vida como um campo de batalha. É. É uma questão de estratégia. Os outros são adversários, é preciso vencê-los, corrigir as nossas falhas. Eu venho de uma cidade em que a concorrência é uma coisa normal, eles aqui não estão habituados.

Repete a frase sobre a sua cidade várias vezes, mas não chega a dizer qual é. Na mesma mesa tem um filho, Filipe, 19 anos, que consta ser um grande sucesso entre as raparigas, especialmente devido aos olhos… azuis. A acompanhá-lo está também um empregado, Eurico, “nascido e criado no mercado municipal de Tavira”, onde os pais têm uma casa que serve “as melhores bifanas da cidade”. Costuma fazer passeios na ria e serviços de táxi na ilha de Tavira, onde já terá ouvido ameaças: “Aqui não duras meia hora que a gente manda-te à água”. Pouco depois, Marco recebe uma chamada de uma empregada que trabalha nos barcos em Tavira, queixando-se do vizinho que tem a banca vazia ali ao lado:

— Chamou-me puta e coirão.

— Amanhã vais à Polícia Marítima e fazes queixa dele.

— Eles são amigos dele.

O vizinho não chegou a aparecer, por isso não foi possível falar com ele.

Café Anazú, na margem esquerda do Rio Gilão, em Tavira

João Pedro Pincha/Observador

Fala o Cabaneiro

O dia seguinte amanhece muito nublado, mesmo a ameaçar chover. Ainda assim, o calor é intenso. Procuramos em Tavira pelo Café Anazú, onde, segundo nos foi dito, podemos encontrar o Cabaneiro. O Anazú fica na margem esquerda do Rio Gilão, logo na marginal, a menos de 50 metros da ponte velha da cidade. Por fora tem ar de café normal, por dentro está pintado de roxo e decorado com desenhos de flores de lótus. Ainda não são 9h45 e já se ouvem músicas de Bob Marley talvez um pouco mais alto do que seria de esperar. Pedimos um café e uma conversa com o Cabaneiro.

— Queria que me explicasse um pouco melhor esta carta, por favor. Dizem aqui coisas graves sobre o Costa…

— Ele apareceu assim de repente e quis dominar o mundo, como se diz.

José Domingos, eis o nome verdadeiro do Cabaneiro, começou nos barcos de Cabanas em 1999, depois de ter prosperado com um negócio de rent-a-bike, de rent-a-moto, com o Café Anazú e bares e restaurantes em Tavira. Não há qualquer exaltação na sua voz, como também nunca houve entre barqueiros, diz. Até aparecer Marco Costa. “Passa por cima de tudo, quer ditar as leis. Pode ser uma pessoa amável e de repente ser muito agressivo.”

— Então mas o senhor assinou uma contestação juntamente com o Costa, contra os coletes…

— Essa parte aí é sem rivalidades. Ali naquela zona devíamos estar isentos de os usar. De resto, nunca houve guerras nem complicações.

— Mas no ano passado queriam acabar com a rampa, onde o senhor trabalha.

— Sim, eles queriam anular a rampa, houve ali uma tensão.

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De resto, tudo pacífico, afirma. “O que falta ali são infraestruturas. Podiam prolongar o cais, com duas rampas, não havia conflitos.” Ou seja, transformar a rampa de cimento em mais um cais de madeira. Por outro lado, o Cabaneiro diz que é o único a ter barcos disponíveis todo o ano em Cabanas. “No inverno está lá o barquinho. Pode não ser rentável, até pode dar prejuízo, mas está lá.” Nem Macieira Coelho, com licença de tráfego local, tem barco todo o ano. “Devia ter lá um barquinho, pelo menos…”, admite José Domingos, que ambiciona explorar novas vertentes do turismo da zona. As pessoas com deficiência, por exemplo, podem ser um bom mercado de inverno.

Ultrapassada uma certa desconfiança inicial, o Cabaneiro até acaba por falar com entusiasmo dos projetos para o futuro. Quando o tal concurso público para os barcos for lançado, ele já estará preparado. Mandou desenhar uns catamarãs que dão para 30 pessoas, têm zona para bagagens, bicicletas e cadeiras de rodas. Para já, ainda nada disto saiu do papel. E, antes de tudo, há que resolver a questão Costa, diz. “O sr. Costa começa com provocaçõezinhas…”

— Mas ele até parece uma pessoa calma.

— Aparentemente é calmo. Mas quando anda nervoso… Bem, eu quero é paz e calma.

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Um passeio à ilha de Tavira

Uma das pessoas que assina a carta contra Costa é Alexandre Ferreira Figueiredo, concessionário de praia na ilha de Tavira, onde Marco Costa também tem uma concessão, a CostaBeach. Há duas formas de ir para a ilha de Tavira: saindo do centro da cidade ou de uma povoação próxima, Quatro Águas, que fica depois das salinas que durante anos foram o sustento da região. A estrada para Quatro Águas está em obras e é difícil fazê-la a pé, mas também não é muito fácil atravessá-la de carro. Junto ao ancoradouro, o cenário mais parece um estaleiro de obras do que um idílio onde milhares de pessoas fazem férias todos os anos.

O barco que faz a travessia entre Quatro Águas e a ilha de Tavira é muito maior do que os que trabalham em Cabanas, simples botes de madeira para nove ou doze pessoas. O trajeto é curto e faz-se em menos de dez minutos por noventa cêntimos. Quando se chega à ilha ainda tem de se andar um bom bocado até ver a areia. De um lado e de outro há restaurantes, bares, um parque de campismo e várias outras atrações. Enfim, a praia. Mesmo em frente fica a CostaBeach, animada logo de manhã por música de discoteca. Do lado direito fica a concessão de Alexandre Figueiredo, onde está a tocar uma música de Jack Johnson. Alexandre não está, ficamos sem perceber porque assinou a carta.

Voltamos a Cabanas para tentar conversar com o homem de quem se fala, Manuel Macieira Coelho. No bar da praia, de que é dono, não está, mas conseguimos falar por telefone. Agendamos um encontro para o dia seguinte.

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Um sonho chamado ponte

O comboio que faz a ligação entre Lagos e Vila Real de Santo António é uma automotora a gasóleo de três carruagens. As janelas estão tão sujas que mal dá para ver a paisagem na curta viagem entre Tavira e Conceição, onde fica a junta de freguesia de Conceição e Cabanas. Pelas três da tarde não se vê vivalma nas ruas. Também na sede da junta não encontramos quem queríamos. O presidente só se encarrega dos destinos da terra em part-time, no resto do tempo é empregado de uma loja de tintas e ferragens, situada a poucas dezenas de metros. Ângelo Pereira não quer falar sobre a questão dos barcos, diz que sempre que se meteu no assunto saiu escaldado. Já uma funcionária da junta, que foi ali à procura de uma assinatura, lembra que nos idos anos 1980 houve ideias de fazer uma ponte em Cabanas. O Parque Natural da Ria Formosa não autorizou.

Uma ponte acabaria de vez com as guerras entre barqueiros, pelo menos as que envolvem o transporte para a praia. Há uns cinco ou seis anos, a discussão sobre a criação de uma ponte voltou a ser lançada quando surgiu uma petição em vários estabelecimentos de Cabanas, disponível para quem a quisesse assinar. Não deu resultado, até porque quem a promovia não terá sabido dar os passos certos. Essa pessoa, aliás, já não é vista em Cabanas há uma série de anos.

“Isto acabava-se com a máfia daqui se se fizesse uma ponte”, diz-nos um comerciante de artigos de praia da rua marginal da vila. Logo se juntam várias pessoas da terra. “Há aqui um bocadinho a ideia de que há uma pessoa que é dona da praia. A ilha está privatizada”, diz um outro comerciante, dono de vários apartamentos que arrenda a turistas e forte defensor da criação de uma ponte. “Estou totalmente a favor, a 100%”, diz Tiago Augusto em tom determinado, como quem já há anos pensa nisto e só agora lhe dão oportunidade para falar. Para ele, o ideal era criar uma ponte de madeira que unisse a terra à ilha, que não distam mais de 40 ou 50 metros entre si. Até se podia criar um sistema que levantasse a estrutura à noite. E seria bom para quase todos. “A ponte traz mais emprego, traz mais turismo, os restaurantes trabalham mais. Não é por quatro ou cinco pessoas dos barcos que vão perder o emprego que vamos impedir 40 ou 50 pessoas de terem emprego criado pela ponte”.

Estação de comboios de Conceição de Tavira, sede de freguesia

João Pedro Pincha/Observador

É uma equação simples, pelo menos na cabeça de Tiago. Com os barcos, ir à praia no inverno é muito difícil, se não impossível. Com a ponte, isso não seria problema. “Perco muitos clientes pelo facto de não haver uma ponte. Torna-se um turismo muito caro, ter de pagar um barco para lá e para cá, todos os dias”. Além disso, há outras questões, que Tiago dispara de rajada:

— É um absurdo nos dias de hoje haver um monopólio dos barcos, não há concurso público, não há nada… E porque é que só se pode ir para a praia a partir das 9h?

— Pois. E houve um acidente há dias, não foi?

— Eles vão numa velocidade doida. Eu próprio já fui num barco que pensei que ia virar. E insultam-se uns aos outros…

Os argumentos de Tiago a favor da ponte confundem-se muitas vezes com os que usam Costa e outros barqueiros, mas estes não estão, naturalmente, interessados em ponte nenhuma. “Tens aqui cinco mil pessoas a atravessar todos os dias. Usar os coletes é anti-higiénico”, refere Tiago. Marco Costa diz a mesma coisa.

“E porque é que ele [Macieira Coelho] não garante um barco ali no ano inteiro? ‘Ah o senhor quer ter um TL [tráfego local]? Então tem que ter um barco todo o ano'”, contesta Tiago. Marco Costa e o Cabaneiro dizem a mesma coisa. Os barqueiros só não dizem isto: “Tu vais de inverno a Manta Rota e vês pessoas a correr, vês gente, vês mais movimentos. Aqui, nada”.

O cais da ilha de Cabanas às 18h30, com dezenas de pessoas à espera de barco

João Pedro Pincha/Observador

Um acordo de cavalheiros

Ouvimos a palavra “máfia” pela primeira vez em Cabanas já no fim do segundo dia que por lá andamos. Saiu da boca de um comerciante que não quis identificar-se, mas foi secundado por várias pessoas, incluindo Tiago Augusto.

Na carta que enviaram a 15 entidades, os operadores marítimo-turísticos de Tavira referiam que “os preços de táxi marítimo e travessias das carreiras fluviais são acordados entre os operadores e as autoridades competentes”. Na conversa com o Cabaneiro, este falou de uma ata, assinada por quatro empresas, em que eram definidos os preços para os serviços de táxi. Segundo ele, Marco Costa “faz concorrência desleal” ao não praticar os ditos preços — isto apesar de o nome dele constar da dita ata.

Nos vários cais de Cabanas e de Tavira há placas com o nome dos operadores e os preços acordados entre todos. Costa não fazia parte desta lista de quatro empresas, só entrou depois de provar que uma delas já não prestava serviços há bastante tempo. Diz ele que, no início de 2014, foi celebrada uma nova ata, especificamente criada para o incluir como operador autorizado. “Assinei, mas não concordo. É impedir os outros de entrar nesta atividade”, diz, afirmando mesmo que lhe perguntaram diretamente se achava bem que houvesse mais pessoas a meter-se no negócio. “A ata desapareceu, nunca mais voltou à nossa posse. Se está em vigor, nós não sabemos. A ata não voltou à origem com os valores com os quais nos comprometemos”, afirma Costa, que volta à visão dualista do mundo: entre a concorrência e o monopólio ou a oligarquia. “Estamos a falar de um documento que prevê que nunca mais entrava ninguém para trabalhar aqui. Isto não é a lei, foi um acordo entre homens.”

Nas questões que enviámos à Docapesca, três delas eram relativas a este acordo. Ficaram, tal como as outras, sem resposta.

Já Manuel Macieira Coelho, depois de se ter mostrado entusiasmado em falar connosco num primeiro momento, acabou por cancelar o encontro que tínhamos apalavrado. Diz que foi aconselhado pelo advogado a permanecer calado.

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