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Carlos Coutinho Vilhena. "Falo rápido, tenho dicção estranha e uma vida feliz. Tudo ao contrário de um comediante eficaz"

Estreia-se esta quarta-feira a nova web-série de Carlos Coutinho Vilhena, "Clube de Felicidade". Falámos com o humorista sobre o limbo da criatividade, um eventual salto para a TV e Torres Vedras.

Ainda é cedo para dizer que é moda, mas ninguém pode dizer que a filosofia não tem dado frutos: a procura pelo erro, pelo desconforto., pelo que nos tira o tapete e nos manda para o chão, numa nuvem de frustração que só se dissipa quando se parte para um novo desafio. Exemplos? Mariana Cabral resolveu fazer um podcast — “Reset” — sobre o fracasso das figuras públicas. Bruno Nogueira quis ir espreitar a beleza do erro no “Princípio Meio e Fim”. Agora, Carlos Coutinho Vilhena, humorista de 28 anos, criador da web-série “Resto da Tua Vida”, meteu-se numa comunidade experimental, que também é um coletivo de artistas, a poucos minutos de Torres Vedras, num processo que demorou dois anos a ver a luz do dia. São escolhas.

Dir-se-á que foi a pandemia que tirou a capa fina de felicidade que cobrem tantas contas de Instagram e atirou artistas, técnicos e produtores para casa, longe dos palcos, com poucos ou nenhuns rendimentos. Porque, depois do sucesso, também vem o fracasso. A ausência de ideias para o próximo passo. A vertigem criada pela insegurança de não se saber se é possivel ser tão bom como já se foi. Há quem não queira olhar para esse lado mais obscuro da vida, onde nunca se sabe para que lado vai cair a balança. Mas Carlos Coutinho Vilhena, que andou desde setembro de 2019 a junho deste ano a realizar, produzir, representar e agora a editar o seu “Clube de Felicidade”, sente-se confortável nesse limbo. O novo projeto estreia-se esta quarta-feira no Youtube.

[o trailer de “Clube da Felicidade”:]

E sim, falamos de um humorista branco, que teve uma infância feliz, e, até agora, uma vida adulta privilegiada, que cedo começou nas lides do Youtube e que tem milhares de seguidores nas redes sociais. Isso não quer dizer que não tenha os seus dilemas. E que não queira pegar nesse limbo para criar algo ali entre o absurdo e a realidade. “Estou preparado para os ataques de quem vai achar os meus dramas hilariantes. Sempre tive uma vida privilegiada. Mas isto é honesto, são os meus dramas de agora. Tentei só transformar a série para que não seja tão bimbo”, diz numa longa conversa com o Observador.

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Para isso, olhou para o primo, que está tão longe dele — vive na tal comunidade, desapegado do dinheiro, a tentar criar uma sociedade autosustentável e que passou parte da vida a viajar — e resolveu desafiá-lo: e se, durante uns tempos, os primos se juntassem para contar a história daquela comunidade? Só que “Clube da Felicidade” não é só isso. Num registo autobiográfico, é, sobretudo, a busca por respostas. Por ideias. Pelo tal próximo passo. E não sobre felicidade. Ou será que é? “Sobre isso não sei nada, acho que ninguém sabe. O importante foi ter chegado à sensação de ter tido uma ideia, essa foi a motivação. Se resulta ou não, isso é outra guerra. Mas essa sensação, para mim, é a melhor cápsula de felicidade que existe”, refere. Isso de ter visto Júlio Isidro a aceitar o desafio de participar na série. Mas, sobre isto, é ver o primeiro episódio.

Não se sabe quantos episódios terá, mas o humorista e antigo membro do grupo cómico Bumerangue sabe para onde quer ir a seguir. E não passa só por estar à frente das câmaras. Se puder, com condições financeiras e com o aval das televisões ou de plataformas digitais, até gostava de partir para a realização de conteúdos humorísticos, como acontece nos Estados Unidos da América. Quer ajudar os pares, maiores ou em início de carreira. Transformar-se mais num criador do que num comediante. Sem peneiras. E se o sucesso assim o deixar. O stand-up é que pode vir a ficar para trás. “É muito limitador, trabalhava mais do que os outros, angustiava-me muito e tinha sempre a sensação de que não tinha cumprido. Não sei se o meu ego me vai permitir, mas gostava mais de ajudar comediantes na parte técnica. Nunca tivemos ninguém em Portugal que só realiza e edita humor. Tens cá pessoas que querem fazer chorar a realizar pessoas que querem fazer rir. É um cocktail explosivo”, afirma.

Carlos Coutinho Vilhena procura uma oportunidade de implementar a sua visão: criar algo que nem é bem humor, nem bem drama. Essa é a frequência certa. “Não posso continuar a fazer séries do Youtube para o resto da vida. Se calhar posso, não sei. Gostava de fazer projetos com mais tempo. Para a televisão, quem sabe”, finaliza.

"Metade do ano estou muito feliz, numa euforia extrema, no outro acho que estou a fazer tudo mal, que não vou viver disto muitos mais anos, que o público se vai esquecer de mim"

Em muitos espetáculos de stand-up, o humorista define-se como alguém que usa o humor para falar dos seus problemas, dilemas, angústias ou estados depressivos. Há uma capa de riso que esconde um lado triste. O seu novo projeto, “Clube de Felicidade”, remete para outra ideia: o que fazer depois de um sucesso, mergulhando numa espécie de vazio existencial. Um humorista pode ser alguém feliz?
Existem duas correntes e pode-se optar pelas duas a meio da carreira. Começa-se mais na narrativa do humorista triste e decadente até. Em Nova Iorque existe essa cultura do humorista que vive dos bares, semblante dramático, cada história que tem é fatal e repugnante e depois é usada em palco. Quanto mais dramas, mais beats, o que faz com que as pessoas fiquem empáticas com a tristeza de quem está em palco.

Depois há a corrente de humoristas que são só felizes com a sua família, não se levam muito a sério e até se distanciam dessa ideia do artista triste. Eu tenho fases. Metade do ano estou muito feliz, numa euforia extrema, no outro acho que estou a fazer tudo mal, que não vou viver disto muitos mais anos, que o público se vai esquecer de mim. Gosto de viver as duas e não desvalorizar porque estou numa determinada fase. Há uma tendência dos humoristas de acharem que o que lhes passa na cabeça é só um problema deles porque têm uma vida boa. Pode ser perigoso.

Mas neste processo de criação é onde se sente melhor? Ou está em constante dúvida?
Estou. Só não estou quando o vídeo é carregado e ponho “publicar”. Já não depende de mim. Preciso de validação constante das pessoas à minha volta. A do público não controlo mas posso controlar as chamadas que faço às 2h00 para o Pedro Durão [guionista da série] para me validar ideias. Estou sempre nessa dúvida. O que vejo noutros humoristas depois de terem tido muita visibilidade é que, quando começam a ser pais, isso retira peso às coisas. Porque a carreira não é tão importante, porque a situação financeira é mais estável. Ainda não estou nessa fase.

Queria perceber essa fase. Tem 28 anos, já não é um humorista da “nova geração”. Ou é? Quando vemos o seu nome ao lado de Ricardo Araújo Pereira ou Bruno Nogueira em alguns projetos, percebemos que saltou uns degraus no estatuto. Isso dá-lhe mais segurança ou mais pressão?
Dá-me mais liberdade financeira e isso é segurança. Tenho mais pessoas a acreditar em mim. Às vezes as pessoas trabalham para mim por gosto e por opção artística e não tanto pela questão profissional. Não me estão a fazer favores. Mas não digo que estou numa fase de ser da “nova geração” ou não. Somos sempre “novos” até passar dos 30 anos. Pode ir até aos 36 anos, por exemplo. O Bruno Nogueira demorou muito tempo até ser um humorista consagrado. Só até há pouco tempo é que se deixou de catalogar o Salvador Martinha como da “nova geração”. É uma perceção difícil. Para o público com 40 anos já não faço parte dessa faixa. Já cá ando há muitos anos, vou fazendo umas coisas. Talvez seja a mesma que nós tivemos quando olhávamos para o [youtuber] Wuant há cinco anos. Isso dá-me confiança. É mais fácil trabalhar agora, a pressão é mais alta, mas sinto-me confortável. Estava mais inseguro há cinco ou seis anos.

"Dar algum contexto parece-me importante para que as pessoas não achem que é só um devaneio artístico. Não gosto de fazer coisas porque sim. Gosto de absurdo, mas com planeamento. Porque pode ser confundido com não ter trabalhado muito."

Na despedida do Conan O’Brien da televisão ao fim de 28 anos a apresentar late night, ele disse que se juntarem o “ridículo com o inteligente, isso será o céu na terra”. O Carlos tem ido um pouco à procura do absurdo, quer no “Resto da Tua Vida”, quer agora com o “Clube da Felicidade”. Esse género tem espaço em Portugal para crescer? Onde é que se situa no nosso entretenimento?
Há um humorista, o Demetri Martin, que resultaria pouco cá em Portugal. Costumo segui-lo. O nosso absurdo parece que precisa sempre de um contexto. E o humor completamente absurdo vive de nichos. Às vezes gosto de ir aí, mas até o absurdo tem de ter uma justificação. Tenho muitas vezes este debate: tendencialmente as pessoas vão achar que fazer coisas sem sentido, só por si, tem graça. O Bruno Nogueira é muito forte nisso. Vou dar um exemplo prático para se perceber. Estou a fazer uma narrativa na minha série, certo? Se, de repente, dentro da minha garagem sai um cavalo, tem de haver uma justificação. E isso não deixa de ser absurdo. Ou sair de lá o Vitor Espadinha. Gosto de ter uma justificação porque, em Portugal, dar algum contexto parece-me importante para que as pessoas não achem que é só um devaneio artístico. Não gosto de fazer coisas porque sim. Gosto de absurdo, mas com planeamento. Porque pode ser confundido com não ter trabalhado muito.

[“O resto da tua vida”:]

Há quem critique o Bruno Nogueira por ser “muito intelectual” para as massas. O seu absurdo requer esse contexto para não ter esse crivo?
Sim, penso sobre isso. Tenho menos margem do que o Bruno Nogueira. Se estivesse a fazer uma série para a RTP ou para Netflix, onde sei que o orçamento está fechado, talvez pudesse arriscar mais. Mas talvez não. Gosto de trabalhar em várias camadas. O Herman José é que fala disso, de “trabalhar em mil folhas”. Às vezes opto pelo simples, mas ter um pormenor absurdo que não afasta ninguém. Não gosto de alienar público. É um trabalho artesanal.

É quase explicar as coisas como se o público fosse composto só por avós. Regra televisiva.
Sim, mas sem estragar a ideia ou simplificar demasiado. É estar ali com as pinças até ser percetível.

Focando na sua série. Podia ser um conteúdo para a televisão ou essa conversa já não faz sentido para alguém que faz carreira, sobretudo, na internet?
Poderia, sim. Não tentámos muito, posso assumi-lo. É uma negociação difícil. Este conteúdo é menos para televisão do que o “Resto da Tua Vida”. Acabaria sempre numa RTP1. Não sei se passaria num canal que depende do lucro por várias razões. Primeiro porque gosto de brincar com a linha cronológica, com a regularidade e as partilhas. Mas também com a duração dos episódios. A estrutura de slots de televisão assusta-me. Os norte-americanos fazem 29 minutos, cá, como há menos dinheiro, são 40. São raras as séries de humor que aguentam tanto tempo. Nas plataformas digitais também. Até as dramáticas.

"Não há muita gente que pare numa paragem de autocarro e veja a minha cara e diga: “olha o gajo da televisão”. Isso não acontece. Mas dizemos isso de outras pessoas que têm carreira em Portugal. Conhece-se a cara, mas não se sabe bem o que faz. E isto é o que pode acabar rápido."

Ou fazem mais tempo mas menos episódios.
Por exemplo, sim. Acima de tudo, com muitos mais meios. E isso assusta-me, mesmo tendo um orçamento já honesto. Não sei se consigo, talvez por falta de rigor, experiência ou talento, manter o ritmo alucinante durante 40 minutos. Sou obcecado com esse ritmo. Ainda não trabalhei para isso. Um dia, quem sabe. Gostava que as televisões ou outras plataformas me dessem oportunidade de fazer algo com tempos diferentes.

Então não tem preconceito em relação à televisão.
Não. Teria de ter a humildade para trabalhar para aquele público. Gostava de ir à guerra. Não é das audiências, mas tentar com a minha voz, sem desvirtuar o que quero fazer, chegar a toda a gente. Ainda há quem consiga. Envolve cedências e negociações. Mas como ainda tenho dois ou três anos para ser um artista mimado, estou a tentar bebê-los.

O que quer dizer com “artista mimado”?
A minha geração, primeiro por consequência e depois por opção, foi rejeitando muita coisa. Posicionamento de entrevistas, algumas marcas e até projetos que podiam abrir portas. Isso vem primeiro de um lugar de conforto e privilégio. De vivermos cedo disto e não ter filhos. Ter um público fiel ao vivo que permite ter rendimento para não aceitar essas coisas. E porque surgimos numa altura em que bastava um iPhone para controlar o processo todo. Cada vez que alguém entra, quer seja numa negociação com um cliente ou com uma televisão, esse debate gera mau estar. Porque não estamos habituados a aceitar alguém a quem não validamos a opinião. Sei que é um luxo. Cá ou noutro país.

"No final de contas, são os meus dramas. São supérfluos, são fúteis, sou a Kim Kardashian, OK, mas são os meus. É o que posso dizer"

A tal mimalhice.
Sim. É algo mimado que não durará para sempre. Mas como tento ver a minha carreira naquelas câmaras de Securitas, sei que não durará muito. Até ver, gosto desta vida, de trabalhar assim.

Já não é o primeiro que me fala disso da carreira não durar muito mais tempo. Continuo sem perceber bem o que é. Só tem 28 anos. Foi a pandemia?
Não é durar muito porque não vou ter público e, por isso, vou ter de mudar de profissão.

Então?
Isto para mim é uma lei fundamental: se não fui por um caminho tradicional, de tirar um curso de gestão, de não ter feito nada para ganhar dinheiro, eu, no meu ofício, escolhi o meu trabalho em função daquilo que me dá prazer. E isso é raríssimo. Outra situação é ter de aceitar algo, por já não ter muito público fiel do tal nicho, que é o que acontece a muitos artistas de televisão, que são só uma cara. Vendemos bilhetes muito rápido porque não somos só uma cara. Não vamos ao “Alta Definição”, nem damos muitas entrevistas. Não há muita gente que pare numa paragem de autocarro e veja a minha cara e diga: “olha o gajo da televisão”. Isso não acontece. Mas dizemos isso de outras pessoas que têm carreira em Portugal. Conhece-se a cara, mas não se sabe bem o que faz. E isto é o que pode acabar rápido. Tomar uma ou outra opção, passar a ter um público muito maior. É quase obrigatório ter longevidade.

E de ter a sua cara em vários projetos.
É desgastante. Rouba tempo para projetos mais autorais e acho que tira felicidade. Como não estou aí, tenho essa visão fatalista.

Vários conteúdos que surgem estão ligados a causas sociais. Tem havido um boom de novas vozes. O Carlos, sendo humorista branco, com uma vida até privilegiada, debateu-se com o facto de estar a fazer algo sobre si, que não pertence a estas causas? Questionou-se sobre o que as pessoas vão achar?
Quase diariamente. Estou preparado para os ataques. Que achem que os meus dramas são hilariantes, comparando com pessoas que estão a passar por problemas realmente graves. Não passo por nenhum. Sempre tive uma vida privilegiada. Mas é honesto, são os meus dramas agora. No futuro, espero ter mais maturidade, consciência social, mas neste momento, não a sei representar em objetos artísticos. Não falo de um lugar com propriedade, não tenho nada para dizer que seja relevante. E pode ser hipócrita falar de algo por ter medo do julgamento. No final de contas, são os meus dramas. São supérfluos, são fúteis, sou a Kim Kardashian, OK, mas são os meus. É o que posso dizer. Tento só transformar aquilo para que não seja tão bimbo. Claro que falei disso com o Pedro Durão.

Para mim até é um pouco mais pessoal por causa da pandemia. As filmagens tiveram de ser todas trocadas. Não podia ir para a comunidade como quis, os câmaras também não. Quando estava lá, a malta não podia vir ter comigo porque as fronteiras estavam fechadas, tinha de estar sempre a fazer testes. Tinha de lançar isto, já andávamos a filmar há dois anos, dizia para virem ter a minha casa.

"Eu que venho de uma família conservadora, lembro-me de achar aquilo fascinante. Tinha tios meus, completamente capitalistas e, do outro lado, o meu primo a explicar o prazer de transformar uma carrinha numa cama confortável."

Falemos das personagens que pairam no clube da felicidade. Este tal primo que vive na comunidade é muito diferente de si. Foi um desafio que ele lhe lançou, ou a ideia para o projeto surgiu de uma conversa com ele?
Foi da minha parte. É dos primos mais próximos. É mais velho três anos, mas sempre teve muita graça, é uma referência. Lembro-me que, aos 16, fui com ele uma semana dar uma volta à Sertã. Já tinha uma caravana. A certa altura, perto do “Resto da Tua Vida”, ficámos mais próximos. Ele andava muito em viagem, mas voltou para Portugal. Percebi que estávamos os dois na mesma frequência. Apesar de eu poder representar o contrário, sobretudo esteticamente, algo mais urbano, vivia no Restelo, e para ele, o divertido era não gastar mais de vinte cêntimos no final de um dia, as nossas conversas eram as mesmas. Ficávamos os dois a rapar e a rapar a condição humana em Natais, ali até ao limite. Pensei: “um dia vou fazer algo com o meu primo”. E ali em Torres Vedras, onde está a comunidade, ele é muito respeitado também por ser carismático. Tem a figura anti-sistema, vive assim, sempre trabalhou seis meses em vinhas de diferentes países, nos outros seis estava a viajar na sua caravana.

Figuras que estamos só habituadas a ver nos filmes.
Sim, sim. Sempre me surpreendeu o prazer das viagens, do que aprendia. Eu que venho de uma família conservadora, lembro-me de achar aquilo fascinante. Tinha tios meus, completamente capitalistas e, do outro lado, o meu primo a explicar o prazer de transformar uma carrinha numa cama confortável. Depois, já o tinha abordado para fazermos algo juntos. Comecei a filmar, sem certezas, durante quatro dias só brutos. O meu primo convidou-me para ir lá à comunidade e, quando cheguei, fiquei estupefacto.

Porquê?
Conseguiu organizar um espaço, restaurou tudo e ficaram lá a viver vinte a trinta pessoas. Todas a construir aquilo todos os dias. O meu primo não cobrava renda, mas tinham de trabalhar umas horas. Estar a criar. Ou a fugir de algo. Ou a estar, só. E aquilo resulta. Ele quer construir um estúdio de som, tem vários armazéns. O sonho do meu primo é dar tempo para criar. Ou só para estar sem pressões para pagar a renda, sem estarem rodeados do julgamento dos pais e amigos. Achei fascinante. Fui para lá uns tempos.

Foi tudo filmado lá?
Grande parte dos episódios sim, mas, por razões pandémicas, tive de virar isto mais para o meu projeto criativo.

Mas ficou a achar que aquela ideia de sociedade é possível?
Sim. Não sou a pessoa certa, porque nunca tirei grande prazer do desconforto em viagens ou festivais. Do “isto é giro para depois contar a história”. Todas as viagens que faço, opto sempre por ir para países que me surpreendam mais do que Lisboa, mas que me dão conforto. Sobre isso não aprendi nada. Mas aprendi a desvalorizar várias coisas. Tenho muitos dramas por ter recusado propostas e depois não ter dinheiro para pagar a minha série, a renda ou a prestação do carro. Para eles, não ter nada na conta ou no frigorífico não é problema. Aprendi com o meu primo. Safa-se sempre. Agora, não vou tentar passar essa visão romântica da pessoa que foge para o campo. E que isso é o ideal. Não acredito completamente nisso. Mas, para a comunidade, é.

Então não é um humorista a infiltrar-se num ambiente estranho. É uma experiência que o ajudou no processo criativo.
Sim. Claro que há várias cenas em que é estranho estar lá eu, de calções caqui e polo branco ali no meio. Senti-me mais julgado do que eles. Houve uma cena gira: adoro vinho, levei uma garrafa caríssima para o primeiro jantar, pousei-a na cozinha comunitária, virei costas para falar com o meu primo, e um deles usou-a para temperar uma jardineira [ri-se]. Disse-lhe que não tinha problema nenhum. Levei também um copo em cálice, que costumo levar nas tours, para o vinho respirar, e isso teve graça. Temos esses momentos. Mas não os quis explorar muito. Com a pandemia, saíam e entravam pessoas, não deu para criar personagens recorrentes. Como foi tudo gravado durante dois anos, tive pessoas que nunca mais voltaram. Tive de fazer algo mais sobre mim e o meu primo.

"Sobre felicidade, não sei nada. Acho que ninguém sabe. Até devia ter posto outro título, mas como soltei o nome há um ano, já estava tudo fechado no design"

O limbo entre parecer que se está a gozar com um tipo de pessoa por ser diferente ou a provocar, sem ser ofensivo, não é fácil. Como foi fazer essa gestão?
Esse foi um grande debate com o meu primo. Longo até. Teve esse cuidado constante de querer perceber o que eu queria fazer. E como é inteligente e culto perguntou pelo tom. Quando fiz o “Resto da Tua Vida” e fazia telefonemas, as pessoas tinham sempre medo. Perguntavam o que ia fazer. Nesta série também. Porque não controlam. Por acharem que o meu ar altivo, de que vou fazer humor com esta ideia de hierarquia que esteve presente na outra série. Não é uma ferramenta que queira usar todas as vezes, mas sai-me. Fiz esse debate com todos. Mas como sou eu a ir à procura de alguém que me ensine, sou eu quem é humilhado. Ficou resolvido aí. Toda a gente vence menos o humorista. Enquanto editava, fui mostrando ao meu primo. Eles começaram a gostar de participar. Perceberam que estava a fazer com bondade. O meu primo nunca me julgou a mim, por ser mais urbano ou elitista. Nem as opções que tomo.

Mas já viram o primeiro episódio?
Sim. Tivemos vários problemas com direitos de músicas. Agora estamos à espera de alguém que carregue num botão nos Estados Unidos para autorizar os sons. A comunidade viu momentos. O meu primo também. O primeiro episódio vai ser estranho porque vamos ver o que aconteceu oito meses antes de ir parar à comunidade. Foi gravado há muito tempo. Nota-se na diferença de peso, porque estou com mais oito ou nove quilos. Tudo o que viram, gostaram. Aluguei um terreno ao lado da comunidade a um vizinho, não só por razões estéticas, mas porque dormi lá uns dias. Também por conforto.

Custou muito para um jovem urbano?
Como tinha a agência a ajudar, foi mais fácil. Se precisasse de carvão, traziam-me. Não andei a fazer fogo com pedras. Custou-me, claro.

Olhando para esse processo criativo. O Carlos é uma pessoa obcecada em todas as fases. Mas na escrita, faz-lhe falta alguém? Por isso é que chamou o Pedro Durão.
Acho que é fundamental ter alguém. No “Resto da Tua Vida” fui o único guionista, mas trabalhei ao lado do João André. Preciso dessa validação. Neste, com o Pedro, fomos conquistando isso. É a pessoa a quem dou mais valor, pela biblioteca humorística que tem, diz-me o que é fresco ou não, acrescenta ideias boas e é honesto. A maior parte das pessoas não é honesta comigo, dizem-me que está muito bom. Consigo ler o Pedro nesse sentido.

Porque acha que não são honestas quando estão a falar do seu trabalho?
Elas dizem que são. Só que eu não sou. Tento lê-las nas sobrancelhas. Para as pessoas talvez esteja. Porque podem não ter as expetativas e o rigor que um humorista tem. Nunca digo completamente a verdade a um par ou a um colega. Não consigo. Sei que magoa. E porque, às vezes, isso vem de um olhar toldado pelos meus gostos.

A escolha de um humorista como o Pedro Durão, que fala sobre as suas dúvidas existenciais ou sobre a sua saúde mental nos espetáculos, ajudou-o a perceber as suas? Afinal, parece ser esse o ângulo deste “Clube de Felicidade”. Com outro humorista, mais velho, com outra capa, podia não funcionar tão bem.
Tive esta ideia antes do “Resto da Tua Vida”. Convidei o Pedro para vir a minha casa, almoçamos duas vezes, não estava andar. Mas como gostei do que ele lançava, convidei-o para escrever a peça na sequência da série com o João André. Percebi logo que tinha o melhor dos dois mundos: tem os dramas de alguém mais velho, de quem sofreu na vida, mas depois tem a frescura de alguém que ouve trap e gosta de Tik Tok como um miúdo de doze anos. Adoro uma pessoa fresca que se preocupa com o que é novo mas que tem a densidade de alguém mais velho. Ele é muito mais profundo do que eu, mas também me dá visões frescas e opções estéticas. É capaz de ser dos humoristas mais novos de cabeça, algo que admiro.

"Sempre tivemos grandes autores, guionistas e atores em Portugal, mas nunca tivemos ninguém que só realiza e edita humor. Nos Estados Unidos, sim. Temos cá pessoas que querem fazer chorar a realizar pessoas que querem fazer rir. E isso é um cocktail explosivo."

Voltando a uma pergunta que já fiz: conseguiu responder a alguma dúvida existencial?
Consegui. Sobre felicidade, não sei nada. Acho que ninguém sabe. Até devia ter posto outro título, mas como soltei o nome há um ano, já estava tudo fechado no design, não dava para trocar. O importante é, tal como diz a música do Slow J, ter a sensação de ter tido uma ideia. Essa foi a motivação. Não depois de a ter. Se resulta ou não, isso é outra guerra. Mas essa sensação, para mim, é a melhor cápsula de felicidade que existe. Essa coreografia do cérebro até chegar lá, depois disso, já é o artesanato, o ego, a validação. É isso tudo.

Então sai disto com mais confiança nas próximas ideias que tiver. Acha que não vai ser tão difícil.
Vai ser cada vez mais. É o que me parece. Olhando para carreiras com longevidade, parece-me mais difícil. Agora não parece porque estou contente com o que vou publicar. Agora, o exemplo dos outros diz-me o contrário. Como gosto de sofrer por antecipação, presumo que seja mais difícil no futuro.

Estará a distanciar-se da definição de humorista?
O caminho é sermos cada vez mais honestos com o que gostamos de fazer. Vejo cada vez mais obras de cinema, entrevistas de editores ou realizadores. Agora trabalho com pessoas na direção de fotografia que também são obcecados com o impacto visual, os meus projetos têm essa componente. E no humor não há tanto essa preocupação. Há uma tendência, não sei se é deste meio, mas acontece na nossa geração que, tomando como exemplos séries como “Sucession” ou “Dave”, que é o de seguir uma frequência nova. Não é bem humor nem bem drama. Gosto de trabalhar com essa frequência. Não sei se terá que haver um rótulo novo. Há várias correntes.

Mesmo as séries que vencem, são só séries. Há sempre uma ironia que resulta. Vejo-me cada vez mais por esse caminho. Tenho medo de me catalogar como cineasta ou autor por parecer pedante. E dizer que sim coloca uma expectativa que não quero. Nos meus projetos tenho vários erros, como gosto de quebrar a estrutura, acredito que os académicos de cinema partam ecrãs ao vê-los. Mas as minhas referências também o fazem. Gostaria de, no futuro, não sei se o meu ego me vai permitir, ajudar outras pessoas no humor. Não só, mas também. Realizar e editar outros projetos. Não sei se Portugal terá orçamento para isso. Gostava de o ter feito a seguir ao “Resto da Tua Vida”, mas não foi possível. Espero balançar entre fazer algo meu e depois ajudar outras pessoas a realizar projetos e ideias. De produzir, editar e realizar.

Júlio Isidro é um dos convidados especiais de Carlos Coutinho Vilhena

Uma espécie de Júlio Isidro, mas ainda mais completo.
Não era bem descobrir pessoas, mas até a ideia de ajudar nomes maiores. Acharem que posso acrescentar algo com a minha visão técnica. Sempre tivemos grandes autores, guionistas e atores em Portugal, mas nunca tivemos ninguém que só realiza e edita humor. Nos Estados Unidos, sim. Temos cá pessoas que querem fazer chorar a realizar pessoas que querem fazer rir. E isso é um cocktail explosivo.

Não é, então, só o seu ego que pode não deixar. Também pode ser uma questão financeira. E a pressão de ter de aparecer.
Isso já é ego. Também não está a apetecer-me realizar…

…documentários da RTP2.
Isso até me apetecia. Fazer documentários sobre pessoas.

Certo.
Mas, por exemplo, não estou a ver pessoas virem ter comigo para realizar vídeos de publicidade.  O meu objetivo é fazer especiais de comédia ou séries. Se ainda nem há dinheiro para comprar esse conteúdo aos humoristas, quanto mais para pagar a alguém que vai acrescentar. Dando a cara, recebo mais. Editando e escrevendo também. Só que gostava que chegássemos ao ponto do Bo Burnham ou do Kevin Hart, que produz muita coisa. Às vezes olho para conteúdos e gostava de ter participado no processo de execução. Gostava de ser essa pessoa.

Que lugar terá o stand-up no meio desse objetivo?
É importante porque é o que me permite fazer séries. É a minha maior fatia. Por isso é que os meus dramas foram tão complexos. Porque, de repente, com a pandemia fecham-se as salas de espetáculos e fecham-nos a torneira. Tinha mesmo medo de ter de aceitar convites em televisão. E não é que sejam projetos menores, só que ia ser estranho estar ali. Gosto de escrever, de estar em palco, de ter feito o teatro. Estive três ou quatro meses fechado num teatro em Carcavelos com o João André e o Pedro Durão. Numa peça pode-se fazer tudo: meter umas asas de anjo, videomapping com raios de laser, cuspir fogo e cantar. Vou cada vez mais para esse caminho.

Poderei fazer um monólogo, convidar outros. Só que acho que nunca fui muito bom a fazer stand-up. É muito limitador. Trabalhava mais do que os outros, angustiava-me muito, mas tinha sempre a sensação de que não tinha cumprido. Fiz solos, por vezes fiquei orgulhoso. Mas temos de aceitar que podemos não ser aquilo. E como o que mais gosto de ver não é stand-up, também explica que não me sinta confortável. Não tenho a predisposição física. Quem tenha as pausas certas, voz certa, uma história de vida dramática, tem um ponto de partida mais à frente do que o meu. Falo rápido, tenho dicção estranha, a voz é pouco poderosa e a minha vida tem sido feliz. E isso tudo é ao contrário de um comediante eficaz.

Ainda que não saiba o que é a felicidade, parece saber como a vai alcançar.
Sei o que não quero.

Andámos “a fugir” da televisão durante esta conversa, mas agora já estamos a entrar no patamar do Daniel Oliveira, o que faz chorar.
Já, já. A conversa foi um pouco por aí. São fases. Agora como recebi uma boa notícia [a autorização de uma música que quer colocar nos episódios], apanha-me numa fase feliz. Se me ligasse há seis horas, a vibe da entrevista seria outra. Gosto de viver nisso. Fazer bem e fazer mal.

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