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Theresa May anunciou a demissão em frente ao número 10 de Downing Street
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Theresa May anunciou a demissão em frente ao número 10 de Downing Street

AFP/Getty Images

Theresa May anunciou a demissão em frente ao número 10 de Downing Street

AFP/Getty Images

Convicção, recados e emoção. O discurso de Theresa May nas entrelinhas

No discurso do adeus, a primeira-ministra britânica lamentou ter falhado no Brexit. Pediu moderação ao partido, enumerou vitórias económicas e comparou-se a Thatcher. No final, vieram as lágrimas.

Era só uma questão de tempo até chegar o dia da morte política de Theresa May. Desde que chegou ao poder, em 2016, que a primeira-ministra britânica tem sido atacada de todos os lados — ora da oposição, ora do próprio partido. Por vezes por culpa própria, outras por teimosia dos rivais. Na cabeça de todos, porém, era certo que May era uma líder a prazo. Até da própria: à medida que o novelo do Brexit se enredava cada vez mais, a primeira-ministra passou a anunciar que se manteria no cargo apenas para concluir o acordo de saída. Só que o seu chumbo teimava em repetir-se. E, com uma provável quarta rejeição no horizonte, a par de um provável resultado desastroso dos conservadores nas eleições europeias, o tempo de May esgotou-se.

A primeira-ministra ainda jogou em tempo de compensação durante vários meses. Foi assim quando sobreviveu à demissão em catadupa de ministros depois de apresentar o seu acordo. O cenário repetiu-se com a moção de censura interna do partido ainda em 2018, a que sobreviveu. O terceiro take foi a moção de censura da oposição. E, com o anúncio de que o Brexit seria adiado para outubro, ouviram-se as mesmas análises. Em todos estes momentos, repetiu-se a mesma ideia: ela não consegue sobreviver a isto. Mas conseguiu. Até esta sexta-feira, dia em que finalmente desistiu.

Antes de sair, contudo, aproveitou para reforçar a sua visão. A de uma política que persiste nos seus objetivos, mesmo quando parece loucura, por não ter aliados. A de uma política que faz cedências e compromissos, como quando aceitou o resultado do referendo para o Brexit, com que não concordava. Uma política de contas certas na economia, mas de sensibilidade social. O recado, esse, estava dado: se o Partido Conservador quer sobreviver, disse May esta sexta-feira, precisa de se manter firmemente no centro. Falta saber se os Brexiteers mais convictos tomaram nota ou se a opinião da primeira-ministra de saída vai ser ignorada.

Qual a real mensagem de May no seu discurso? Descodificamos as palavras da saída, lendo o que ficou por dizer nas entrelinhas.

O discurso de Theresa May está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:

Desde que entrei pela primeira vez na porta que está atrás de mim, como primeira-ministra, tenho tentado fazer do Reino Unido um país que funciona não apenas para uns quantos privilegiados, mas para todos. E para honrar o resultado do referendo da UE. Em 2016, demos ao povo britânico uma escolha. Contra todas as previsões, o povo britânico votou para deixar a União Europeia. Estou tão convicta hoje como estava há três anos que, numa democracia, quando se dá às pessoas uma escolha tem-se o dever de aplicar o que elas decidem. Fiz o meu melhor para conseguir isso.

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Theresa May nunca foi uma Brexiteer inflamada, ao contrário de tantos outros no seu partido. Pelo contrário: quando era ministra de David Cameron, na campanha para o referendo, May assumiu-se como Remainer. Contudo, esta conservadora sempre encarou o resultado do escrutínio popular de 2016 de forma pragmática. “Brexit significa Brexit” foi o seu slogan na corrida à liderança dos tories. E, assim que foi eleita líder do Partido Conservador, e depois, primeira-ministra, May assumiu claramente que queria cumprir o mandato dado pelos eleitores e retirar o Reino Unido da União Europeia. Aqui, volta a relembrar isso mesmo.

Negociei os termos da nossa saída e uma nova relação com os nossos vizinhos mais próximos que protege os empregos, a nossa segurança e a nossa União. Fiz tudo o que podia para convencer os deputados a apoiarem esse acordo. Infelizmente, não consegui. Tentei três vezes. Acredito que o que está certo é persistir, mesmo quando as probabilidades de se falhar são elevadas. Mas agora é claro para mim que é do interesse do país que seja um novo primeiro-ministro a liderar esses esforços.

A morte política de Theresa May foi decretada inúmeras vezes, mas ela sempre sobreviveu. Foi assim nas eleições de 2017, antecipadas pela própria primeira-ministra na esperança de reforçar a sua votação e que acabaram por ver os conservadores perderem a sua maioria no parlamento e passarem a depender dos unionistas norte-irlandeses. Contra tudo e contra todos, May manteve-se firme. Foi assim quando apresentou o seu primeiro plano de acordo para o Brexit, no verão de 2018, que levou à demissão de ministros como Boris Johnson (Negócios Estrangeiros) e David Davis (Brexit). Mas May manteve-se firme. Foi assim quando apresentou o novo acordo em outubro de 2018 e enfrentou nova vaga de demissões internas, incluindo do novo ministro para o Brexit, Dominic Raab. Mas, uma vez mais, May persistiu. E também foi assim quando apresentou o acordo a votação e o viu ser chumbado com votos do seu próprio partido não uma, não duas, mas três vezes. Já para não falar das duas moções de censura que enfrentou, uma interna e outra da oposição. Theresa May sobreviveu sempre, menos esta sexta-feira. A pressão interna dos Brexiteers, o anunciado desastre nas europeias e o provável quarto chumbo do acordo foram demasiados fatores. E May, finalmente, desistiu.

Por isso estou hoje a anunciar que me irei demitir como líder do Partido Conservador e Unionista a 7 de junho, sexta-feira, para que possa ser escolhido um sucessor. Acordei com o presidente do partido e com o presidente do Comité 1922 [grupo parlamentar] que o processo de eleição de um novo líder deve ter início na próxima semana. Mantive Sua Majestade a Rainha totalmente informada das minhas intenções e continuarei a servir como primeira-ministra até o processo estar concluído.

May explicita assim o calendário que definiu com Graham Brady, líder parlamentar dos conservadores. A partir da próxima semana, afasta-se formalmente da liderança do partido e tem início a corrida à sucessão. Porquê a 7 de junho? Porque de 3 a 5 o Presidente norte-americano Donald Trump fará uma visita de Estado ao Reino Unido e May ainda o receberá com plenos poderes. De seguida, ao longo de junho, May manter-se-á como primeira-ministra num governo de gestão até estar concluído o processo de seleção do novo líder.

O facto de não ter conseguido efetivar o Brexit é e continuará a ser sempre um motivo de profundo pesar para mim. Caberá ao meu sucessor encontrar um caminho que honre o resultado do referendo. Para o conseguir, ele ou ela terá de encontrar um consenso no Parlamento, algo que eu não consegui. Um consenso deste tipo só pode ser alcançado se aqueles que estão em todos os lados do debate estiverem dispostos a ceder.
Durante muitos anos, o grande humanista Sir Nicholas Winton — que salvou as vidas de centenas de crianças ao conseguir que saíssem na Checoslováquia ocupada pelos nazis através do Kindertransport — foi meu eleitor em Maidenhead. Noutra altura de controvérsia política, poucos anos antes da sua morte, ele puxou-me para o lado num evento local e deu-me um conselho. Disse: “Nunca te esqueças que ‘compromisso’ não é uma palavra suja. A vida depende do compromisso.’ Ele tinha razão.

A defesa da mensagem de Winton é o recado que May deixa para o futuro do partido. “Compromisso”, “ceder”, “consenso”. Perante um Partido Conservador com membros que têm defendido uma postura cada vez mais radical no que diz respeito ao Brexit (como Boris Johnson, Jacob Rees-Mogg ou Mark Francois), Theresa May sublinha que, no seu entender, o futuro não está na radicalização dos tories, mas sim na sua capacidade de forjar entendimentos ao centro.

À medida que tentamos encontrar os compromissos necessários na nossa política — seja para conseguir o Brexit, seja para restaurar o governo regional na Irlanda do Norte —, temos de nos recordar do que nos trouxe aqui. Porque o referendo não foi só um pedido para sair da UE, mas também um de profunda mudança no nosso país. Um pedido para fazer do Reino Unido um país que funciona de facto para todos. E eu estou orgulhosa do progresso que fizemos ao longo dos últimos anos.

May recorda que o resultado do referendo não expressou apenas um sentimento eurocético, mas que representou também um grito de revolta contra as elites, na interpretação da primeira-ministra, seja contra os cortes aplicados pelos políticos, seja pelo sentimento de distanciamento do resto do país face a Londres.

Completámos o trabalho que David Cameron e George Osborne começaram: o défice está quase eliminado, a nossa dívida nacional está a cair e estamos a acabar com a austeridade. O meu foco tem sido garantir que os bons empregos do futuro serão criados nas comunidades em todo o país, não apenas em Londres e no sudeste, através da nossa Estratégia da Indústria Moderna. Temos ajudado mais pessoas do que nunca a desfrutar da segurança que é ter um emprego. Estamos a construir mais casas e a ajudar os que compram uma casa pela primeira vez — para que os jovens possam aproveitar as mesmas oportunidades que os seus pais tiveram. E estamos a proteger o ambiente, a eliminar os resíduos de plástico, a atacar as alterações climáticas e a melhorar a qualidade do ar. É isto que um governo conservador decente, moderado e patriótico, assente no entendimento comum da política britânica, pode alcançar — mesmo enquanto enfrentamos o maior desafio em tempos de paz que um governo já enfrentou.

Apesar de estar a negociar o Brexit, o governo de May não esteve parado. Pelo menos é essa a mensagem que a primeira-ministra quer deixar na despedida, enumerando as vitórias do seu executivo. A primeira referência, sobre a redução do défice e da dívida, tem sido até ponto de honra repetido nos debates semanais, perante o líder da oposição Jeremy Corbyn. May tem reforçado que, mesmo com o Brexit, tem conseguido melhores resultados financeiros do que os trabalhistas conseguiriam, na sua opinião.

Sei que o Partido Conservador se pode renovar nos próximos anos. Que podemos conseguir o Brexit e servir o povo britânico com políticas inspiradas nos nossos valores. Segurança, liberdade, oportunidade. Esses valores guiaram-me em toda a minha carreira. Mas o privilégio único de ocupar este cargo é o de poder usar esta plataforma para dar voz aos que não a têm, para combater as injustiças gritantes que ainda marcam a nossa sociedade. É por isso que propus financiamento decente para a saúde mental no nosso plano a longo prazo para o Serviço Nacional de Saúde. É por isso que estou a acabar com a lotaria de códigos postais para os sobreviventes de violência doméstica. É por isso que a Auditoria à Disparidade das Raças e o relatório das diferenças salariais de género estão a pôr em evidência a desigualdade, para que ela não tenha onde se esconder. E é também por isso que criei o inquérito público independente à tragédia de Grenfell Tower — para descobrir a verdade, de forma a que algo assim não volte a acontecer nunca, e para que as pessoas que perderam a vida naquela noite nunca sejam esquecidas.

Mas não só de política económica se faz um governo. A primeira-ministra aproveita o seu discurso de saída para tentar provar que o seu executivo também teve um lado humano, com preocupações sociais. E May não quis deixar de ter uma palavra para um dos momentos mais trágicos do seu mandato, o incêndio na torre de Grenfell, onde morreram 72 pessoas.

Porque este país é uma União. Não apenas uma família de quatro nações, mas uma união de pessoas — todos nós. Qualquer que seja o nosso passado, a cor da nossa pele ou quem amamos. Mantemo-nos unidos e juntos teremos um grande futuro. A nossa política pode estar sob pressão, mas há muito mais coisas boas no nosso país. Tanta coisa de que nos podemos orgulhar, tanta coisa sobre a qual podemos estar otimistas.

Por um lado, May aproveita para reforçar a sua crença na unidade do Reino: com a Escócia, onde os nacionalistas têm pedido um novo referendo à independência, e com a Irlanda do Norte, que tem estado no centro das atenções devido ao backstop. Por outro, a primeira-ministra tenta deixar uma mensagem de unidade e otimismo aos britânicos. Uma ideia de que, para além das divisões expostas pelo Brexit, há futuro.

Em breve deixarei este cargo que tem sido a honra da minha vida — a segunda primeira-ministra mulher, mas certamente não a última. Fá-lo-ei sem qualquer má vontade, mas com uma gratidão enorme e duradoura por ter tido a oportunidade de servir o país que amo.

E, por fim, o último adeus. May foi apelidada de “Dama de Ferro”, à semelhança de Margaret Thatcher, e decidiu incluir uma referência à primeira mulher primeira-ministra no país no seu discurso final. Ambas foram determinadas e ambas saíram empurradas pelos seus partidos e não pelos eleitores. Há quem diga que a comparação é esticada, já que Thatcher gozou de uma popularidade que May nunca teve. A sua outra alcunha sempre foi “Maybot”, numa referência ao seu estilo robótico, que não conseguia criar empatia com os eleitores. Esta sexta-feira, contudo, Theresa May deixou cair a máscara estóica pela primeira vez e soltou algumas lágrimas na despedida. Foram quase três anos no poder, a enfrentar tudo e todos e a sobreviver de todas as vezes que decretaram a sua morte política. E a britânica garante que não sai zangada com os adversários internos que conspiraram para a afastar, inclusivamente dentro do seu próprio Conselho de Ministros, alguns com mais vigor do que a própria oposição. O dia da saída de Theresa May pode ter tardado, mas acabou por chegar.
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