Foram 12 textos, publicados ao longo de 2021. Celebravam-se, de forma óbvia, os 50 anos do ano de 1971. Mas, fechando o ângulo e dando-lhe a melhor das bandas sonoras, comemoravam-se cinco décadas de uma das mais memoráveis, inspiradoras e — acima de tudo — transformadoras colheitas da história da música popular portuguesa. Dizíamos: foram 12 textos, publicados à maneira de um por mês aqui no Observador. E em cada um deles, Luís de Freitas Branco elegia um disco, um artista, um momento ou um movimento que haveria de fazer história.
Agora, é desses 12 textos que nascem os 12 capítulos que compõem “A Revolução antes da Revolução”, o livro que conta uma história do Portugal musicado: como um lote irrepetível de obras, músicos e tendências empurraram a mudança até que ela acontecesse — artística, social e política. A banda sonora de um país em convulsão e em pleno processo de auto-conhecimento, renovada descoberta e liberdade.
A imortalidade conquistada por José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho, as vozes de Tonicha e os poemas de Natália Correia, o rock’n’roll do Quarteto 1111 e do festival de Vilar de Mouros, o derrube de fronteiras do Duo Ouro Negro e de Bonga, o lugar do jazz e o lugar do fado. São muitos os protagonistas, são ainda mais as histórias, são eternas as canções. “A Revolução antes da Revolução” chega às livrarias esta quinta-feira, 14 de março, uma edição da Zigurate. Antes, publicamos a introdução do livro, texto inédito que serve de introdução para os capítulos seguintes, que conhecemos primeiro aqui no Observador (onde Luís de Freitas Branco é colaborador habitual) e que agora podemos ler de forma mais aprofundada.
A senha da revolução foi a música popular portuguesa. O primeiro sinal, às 22 horas e 55 minutos de 24 de Abril, transmitido pelo Rádio Clube Português, foi uma canção vencedora do Festival RTP da Canção, E Depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho e composta por José Niza e José Calvário. Mas a revolução para estes músicos não foi em 1974. Três anos antes, Paulo de Carvalho “descobriu” que queria “fazer música”; José Calvário desistiu da carreira de economista; e José Niza, alferes miliciano em Angola, entre os mosquitos e os cadáveres, profetizou o final do Estado Novo: “As guerras fazem-se com militares. Mas os do quadro estão a ficar cansados. E os outros, revoltados.”
A segunda e definitiva senha da revolução, à meia-noite e 20 minutos, na Rádio Renascença, foi Grândola, Vila Morena, a canção-hino de José Afonso. Contudo, a rebelião musical de José Afonso também não aconteceu em 1974, nem sequer em Portugal. A 40 quilómetros de Paris, nos estúdios de Château d’Hérouville, o produtor José Mário Branco concebeu um cenário inusitado: quatro amigos abraçados, à moda alentejana, um frio de rachar, acima da gravilha, a arrastar os pés de madrugada, com o técnico de som agachado para captar o instante. Estávamos em 1971, o ano da revolução antes da revolução. Grândola, Vila Morena era o ápice de um sonho: a música popular portuguesa.
1971 foi o ano que mudou a música popular portuguesa. Hoje, “música popular portuguesa” é um termo arcaico, um trava-línguas, uma sequência de palavras desacostumadas ao ajuntamento. Qual o sentido de reunir estas palavras que tanto nos dizem sozinhas — a música, o popular e o português — numa expressão que, em pleno século XXI, não provoca qualquer espécie de efeito? Esqueçamos por um momento as entradas enciclopédicas² — sugiro a prática. Oiçam Cantigas do Maio, em que José Afonso resgatou a tradição musical portuguesa com versos anónimos e uma estrutura bitonal: “Minha mãe quando eu morrer/ Ai chore por quem muito amargou/ Para então dizer ao mundo/ Ai Deus mo deu ai Deus mo levou”. Mas o compositor era uma pessoa singular, de um tempo que nem democracia havia, e na mesma canção acrescentou um universo paralelo de paisagem multíssona e versos de furtiva consciência política: “Verdes prados, verdes campos/ Onde está minha paixão/ As andorinhas não param/ Umas voltam outras não”. José Afonso simultaneamente recuperou e corrompeu a tradição musical, concebendo a música popular portuguesa. Sugiro outro exemplo prático, ainda em 1971: Movimento Perpétuo. Carlos Paredes dividiu o álbum em dois: o lado A contém as primeiras composições do guitarrista, restritas à tradição e a Coimbra; o lado B contém as últimas criações, universais e amplas. É uma autobiografia que apresenta o percurso da música portuguesa: em frente, a olhar para trás. A canção não está estagnada, é composta de mudança, circula em movimento perpétuo.
A Revolução antes da Revolução almeja este mesmo propósito: debater o tempo presente, seguindo no encalço do passado. Em 1984, Mário Correia apontou o caminho com o livro Música Popular Portuguesa: Um ponto de partida, ao definir a nossa música popular como um processo de oposição ao Estado Novo, desde as Canções Heróicas de Fernando Lopes-Graça ao Canto Livre no pós-25 de Abril, com o apogeu criativo no ano de 1971: “O ano de 1971 marcou, efectivamente uma viragem histórica: não é por mero acaso ou simples questão superficial de terminologia que se começa a falar da nova música portuguesa, ultrapassando-se termos como balada, trova e canção de protesto.” Neste livro, carrego o testemunho de Mário Correia e lanço-o adiante, numa investigação sobre este ano revolucionário, com Abril à espreita. A cena central de 1971 é conhecida, quando José Mário Branco, em Paris, qual Tomada da Bastilha, encabeçou três álbuns-pilares: Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco; Cantigas do Maio, de José Afonso; e Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho. E ainda, convém recordar, entre Lisboa e o mato de Angola, onde Adriano Correia de Oliveira e José Niza compõem outro estandarte de resistência: Gente de Aqui e de Agora. Os quatro álbuns são o cerne inevitável desta história, a afirmação do LP em Portugal, o formato maior que assegurou a emergência de uma nova música popular. Mas não basta recontar uma série de lengalengas; é necessário desmistificar estas canções, analisar o seu contexto político, económico, cultural e social; e, sobretudo, revelar a encruzilhada pessoal de cada um destes cantautores, porque, afinal, a história não se faz de estátuas — o exílio desolado de José Mário Branco, que, entre um turbilhão revolucionário, uma multidão de refractários e desertores, transforma a cantiga numa arma, a dez mil quilómetros da Guerra Colonial; o “vagabundo existencial” Sérgio Godinho, que compõe A Noite Passada desolado numa prisão brasileira, em Minas Gerais; ou José Afonso, que em apenas 12 meses é preso duas vezes, sofre um esgotamento nervoso e edita Cantigas do Maio, o álbum supremo da música popular portuguesa.
As singularidades que fizeram de 1971 um ano de inaudito progresso musical não aconteceriam novamente. As engrenagens da Secretaria de Estado de Informação e Turismo cumpriram um estranho papel no desenvolvimento da cultura portuguesa. Ao mesmo tempo que oprimiram, indirectamente suscitaram o artifício e provocaram uma singular comunhão da literatura com a melodia, em prol de um nobre desígnio: derrubar a ditadura. Os poemas de Manuel Alegre, David Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Natália Correia ou António Gedeão estavam na boca do povo, e nas vozes de Manuel Freire, Francisco Fanhais, José Jorge Letria, Luís Cília, entre outros. Uma editora independente, a Zip-Zip, vendeu dez mil cópias de Pedra Filosofal, a música de Manuel Freire e António Gedeão. Havia finalmente uma juventude com dinheiro e curso superior no bolso, formada durante as crises académicas, que evidenciava um certo apetite pelo consumo, consequência de um tímido progresso económico; e esta geração era representada — com o aval dos anunciantes — nos jornais, na rádio e na televisão. Nasceu uma indústria musical portuguesa.
No centro desta nova indústria musical elevou-se o Festival da Canção de 1971, a inédita batalha comercial entre as editoras portuguesas, e a vitória controversa de Menina, a canção de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes interpretada por Tonicha, que subjugou os novatos Paulo de Carvalho e Fernando Tordo. De seguida, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais comprovou que era exequível um evento musical de massas em Portugal — a programação era inconcebível, a começar pelo belicoso revolucionário Miles Davis. O Movimento dos Direitos Civis, a consciencialização negra, entrou em rota de colisão com o colonialismo do Estado Novo no Jazz de Cascais, culminando com a prisão de Charlie Haden. E ainda, no meio desta ditadura, no meio do nada, surgiu um oásis: o Festival de Música de Vilar de Mouros. O carnaval foi orquestrado pelo Dr. António Barge, um ginecologista obstetra do Minho com idade para ter juízo, que, feitas as contas, acabou excomungado e acumulou 700 contos de prejuízo.
No entanto, este cenário, como apontou sabiamente Mário Correia, é apenas um ponto de partida. A Revolução antes da Revolução justifica-se pelos capítulos que a história da música popular portuguesa esqueceu. A memória, assim como a canção, está em movimento, e esta história não está reservada a homens de viola a tiracolo. É urgente redefinir a alvorada da canção popular, não deixando cair no esquecimento, por exemplo, as mulheres do canto de intervenção, em combate simultâneo contra um regime e uma ditadura de costumes. Reparem: hoje o país está rodeado de canções diversas e cosmopolitas, com a diáspora africana em evidência, canções a que chamamos, sem pudor, de música portuguesa. Mas estas canções não brotaram de forma mágica ou pacífica — há mais de 50 anos, os músicos africanos em Portugal, de Ruy Mingas a Bonga, combateram para derrubar um regime que se pretendia humanista, supostamente dotado de uma capacidade exclusiva de derrubar as fronteiras entre o colonizado e o colonizador, entre o negro e o branco. E o grupo musical português de maior sucesso, o Duo Ouro Negro, acusado de ser uma representação panfletária da política integralista do Ultramar, atreveu-se a gravar um colossal grito de independência: Blackground.
Chegámos ao momento crucial desta conversa dissimulada de prefácio. A canção lusoafricana, ou até o canto de intervenção, surgiu em oposição directa ao regime colonial, foi uma reacção musical à violência da opressão. Nas trincheiras da cultura popular, abriu-se uma nova frente de guerra. São as divisões, os conflitos, o amor e a repulsa que formam a música popular. Não acredito que um Estado em harmonia possa conceber a canção popular. E desenganem-se da ladainha redutora dos comunistas contra os fascistas, do nós contra eles; se o canto de intervenção, em todas as suas dimensões, permanece celebrado, é também devido aos embates de frente com as restantes manifestações musicais: o fado, o folclore, o rock e a música pop. É certo que não haveria esta canção de intervenção sem o regime opressor do Estado Novo, mas julgo que a oposição que criou esta nova música popular era mais alargada. Segundo os cantautores da época, o fado e o dito “nacional-cançonetismo” deveriam ser expurgados violentamente para libertar Portugal; e mais, somente se poderia resgatar do campo as canções genuinamente tradicionais — o folclore que se cantava pela rádio e televisão era uma deturpação histórica a combater. Porém, eram os cantores ditos popularuchos que amansavam os dias lúgubres de um Portugal em guerra, pobre e alienado. A canção erguia-se entre duas barreiras aparentemente intransponíveis, que a dado momento foram indissociáveis da situação política: o gosto popular e a revolução.
Creio que a música popular, tal como hoje a concebemos, contém tanto de José Afonso como de Marco Paulo, de Bonga ou de Tony de Matos, e todos são devidamente celebrados nos próximos capítulos. As transformações da nossa canção são extremamente complexas. Vejamos o caso do fado em 1971: os camaradas de viola a tiracolo não tinham qualquer dúvida de que, directamente ou por omissão, o fado salvaguardava o regime ditatorial. No entanto, um representante do fado conservador e aristocrático como João Braga cantava no mesmo palco que José Manuel Osório, assumido comunista e homossexual, numa demonstração da resiliência do género às intrigas ideológicas, e um indício que iria sobreviver ao processo revolucionário do pós25 de Abril. Outro caso essencial para entender a década de 1970 é o estado diminuído do rock português; segundo a lógica anglo-saxónica, seria o líder natural da juventude. Sucede que a “Primavera marcelista” foi particularmente cruel com os elementos desalinhados e frágeis que formavam as bandas de rock; e os próprios movimentos de oposição ao regime renegaram, por questões ideológicas, a afirmação do rock português. Esta teia de conflitos explica, em parte, como chegámos aqui, com os nossos defeitos e valências, e o que se convencionou denominar de música portuguesa.