796kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

José Afonso em palco, ele que em 1971 haveria de lançar um dos discos fundamentais da criação musical nacional: "Cantigas do Maio"
i

José Afonso em palco, ele que em 1971 haveria de lançar um dos discos fundamentais da criação musical nacional: "Cantigas do Maio"

José Afonso em palco, ele que em 1971 haveria de lançar um dos discos fundamentais da criação musical nacional: "Cantigas do Maio"

De José Afonso a Tonicha, do Duo Ouro Negro a Vilar de Mouros: o ano em que a música portuguesa mudou e fez a mudança

Pré-publicação de "A Revolução antes da Revolução", livro de Luís de Freitas Branco que conta a história da música portuguesa de 1971, construído a partir de textos publicados no Observador.

Foram 12 textos, publicados ao longo de 2021. Celebravam-se, de forma óbvia, os 50 anos do ano de 1971. Mas, fechando o ângulo e dando-lhe a melhor das bandas sonoras, comemoravam-se cinco décadas de uma das mais memoráveis, inspiradoras e — acima de tudo — transformadoras colheitas da história da música popular portuguesa. Dizíamos: foram 12 textos, publicados à maneira de um por mês aqui no Observador. E em cada um deles, Luís de Freitas Branco elegia um disco, um artista, um momento ou um movimento que haveria de fazer história.

Agora, é desses 12 textos que nascem os 12 capítulos que compõem “A Revolução antes da Revolução”, o livro que conta uma história do Portugal musicado: como um lote irrepetível de obras, músicos e tendências empurraram a mudança até que ela acontecesse — artística, social e política. A banda sonora de um país em convulsão e em pleno processo de auto-conhecimento, renovada descoberta e liberdade.

A imortalidade conquistada por José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho, as vozes de Tonicha e os poemas de Natália Correia, o rock’n’roll do Quarteto 1111 e do festival de Vilar de Mouros, o derrube de fronteiras do Duo Ouro Negro e de Bonga, o lugar do jazz e o lugar do fado. São muitos os protagonistas, são ainda mais as histórias, são eternas as canções. “A Revolução antes da Revolução” chega às livrarias esta quinta-feira, 14 de março, uma edição da Zigurate. Antes, publicamos a introdução do livro, texto inédito que serve de introdução para os capítulos seguintes, que conhecemos primeiro aqui no Observador (onde Luís de Freitas Branco é colaborador habitual) e que agora podemos ler de forma mais aprofundada.

A capa de "A Revolução antes da Revolução", de Luís de Freitas Branco (Zigurate)

A senha da revolução foi a música popular portuguesa. O primeiro sinal, às 22 horas e 55 minutos de 24 de Abril, transmitido pelo Rádio Clube Português, foi uma canção vencedora do Festival RTP da Canção, E Depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho e composta por José Niza e José Calvário. Mas a revolução para estes músicos não foi em 1974. Três anos antes, Paulo de Carvalho “descobriu” que queria “fazer música”; José Calvário desistiu da carreira de economista; e José Niza, alferes miliciano em Angola, entre os mosquitos e os cadáveres, profetizou o final do Estado Novo: “As guerras fazem-se com militares. Mas os do quadro estão a ficar cansados. E os outros, revoltados.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A segunda e definitiva senha da revolução, à meia-noite e 20 minutos, na Rádio Renascença, foi Grândola, Vila Morena, a canção-hino de José Afonso. Contudo, a rebelião musical de José Afonso também não aconteceu em 1974, nem sequer em Portugal. A 40 quilómetros de Paris, nos estúdios de Château d’Hérouville, o produtor José Mário Branco concebeu um cenário inusitado: quatro amigos abraçados, à moda alentejana, um frio de rachar, acima da gravilha, a arrastar os pés de madrugada, com o técnico de som agachado para captar o instante. Estávamos em 1971, o ano da revolução antes da revolução. Grândola, Vila Morena era o ápice de um sonho: a música popular portuguesa.

1971 foi o ano que mudou a música popular portuguesa. Hoje, “música popular portuguesa” é um termo arcaico, um trava-línguas, uma sequência de palavras desacostumadas ao ajuntamento. Qual o sentido de reunir estas palavras que tanto nos dizem sozinhas — a música, o popular e o português — numa expressão que, em pleno século XXI, não provoca qualquer espécie de efeito? Esqueçamos por um momento as entradas enciclopédicas² — sugiro a prática. Oiçam Cantigas do Maio, em que José Afonso resgatou a tradição musical portuguesa com versos anónimos e uma estrutura bitonal: “Minha mãe quando eu morrer/ Ai chore por quem muito amargou/ Para então dizer ao mundo/ Ai Deus mo deu ai Deus mo levou”. Mas o compositor era uma pessoa singular, de um tempo que nem democracia havia, e na mesma canção acrescentou um universo paralelo de paisagem multíssona e versos de furtiva consciência política: “Verdes prados, verdes campos/ Onde está minha paixão/ As andorinhas não param/ Umas voltam outras não”. José Afonso simultaneamente recuperou e corrompeu a tradição musical, concebendo a música popular portuguesa. Sugiro outro exemplo prático, ainda em 1971: Movimento Perpétuo. Carlos Paredes dividiu o álbum em dois: o lado A contém as primeiras composições do guitarrista, restritas à tradição e a Coimbra; o lado B contém as últimas criações, universais e amplas. É uma autobiografia que apresenta o percurso da música portuguesa: em frente, a olhar para trás. A canção não está estagnada, é composta de mudança, circula em movimento perpétuo.

Tonicha, no ano em que cantou "Menina" no Festival da Canção, e José Mário Branco, que em 1971 lançou "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"

A Revolução antes da Revolução almeja este mesmo propósito: debater o tempo presente, seguindo no encalço do passado. Em 1984, Mário Correia apontou o caminho com o livro Música Popular Portuguesa: Um ponto de partida, ao definir a nossa música popular como um processo de oposição ao Estado Novo, desde as Canções Heróicas de Fernando Lopes-Graça ao Canto Livre no pós-25 de Abril, com o apogeu criativo no ano de 1971: “O ano de 1971 marcou, efectivamente uma viragem histórica: não é por mero acaso ou simples questão superficial de terminologia que se começa a falar da nova música portuguesa, ultrapassando-se termos como balada, trova e canção de protesto.” Neste livro, carrego o testemunho de Mário Correia e lanço-o adiante, numa investigação sobre este ano revolucionário, com Abril à espreita. A cena central de 1971 é conhecida, quando José Mário Branco, em Paris, qual Tomada da Bastilha, encabeçou três álbuns-pilares: Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco; Cantigas do Maio, de José Afonso; e Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho. E ainda, convém recordar, entre Lisboa e o mato de Angola, onde Adriano Correia de Oliveira e José Niza compõem outro estandarte de resistência: Gente de Aqui e de Agora. Os quatro álbuns são o cerne inevitável desta história, a afirmação do LP em Portugal, o formato maior que assegurou a emergência de uma nova música popular. Mas não basta recontar uma série de lengalengas; é necessário desmistificar estas canções, analisar o seu contexto político, económico, cultural e social; e, sobretudo, revelar a encruzilhada pessoal de cada um destes cantautores, porque, afinal, a história não se faz de estátuas — o exílio desolado de José Mário Branco, que, entre um turbilhão revolucionário, uma multidão de refractários e desertores, transforma a cantiga numa arma, a dez mil quilómetros da Guerra Colonial; o “vagabundo existencial” Sérgio Godinho, que compõe A Noite Passada desolado numa prisão brasileira, em Minas Gerais; ou José Afonso, que em apenas 12 meses é preso duas vezes, sofre um esgotamento nervoso e edita Cantigas do Maio, o álbum supremo da música popular portuguesa.

As singularidades que fizeram de 1971 um ano de inaudito progresso musical não aconteceriam novamente. As engrenagens da Secretaria de Estado de Informação e Turismo cumpriram um estranho papel no desenvolvimento da cultura portuguesa. Ao mesmo tempo que oprimiram, indirectamente suscitaram o artifício e provocaram uma singular comunhão da literatura com a melodia, em prol de um nobre desígnio: derrubar a ditadura. Os poemas de Manuel Alegre, David Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Natália Correia ou António Gedeão estavam na boca do povo, e nas vozes de Manuel Freire, Francisco Fanhais, José Jorge Letria, Luís Cília, entre outros. Uma editora independente, a Zip-Zip, vendeu dez mil cópias de Pedra Filosofal, a música de Manuel Freire e António Gedeão. Havia finalmente uma juventude com dinheiro e curso superior no bolso, formada durante as crises académicas, que evidenciava um certo apetite pelo consumo, consequência de um tímido progresso económico; e esta geração era representada — com o aval dos anunciantes — nos jornais, na rádio e na televisão. Nasceu uma indústria musical portuguesa.

No centro desta nova indústria musical elevou-se o Festival da Canção de 1971, a inédita batalha comercial entre as editoras portuguesas, e a vitória controversa de Menina, a canção de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes interpretada por Tonicha, que subjugou os novatos Paulo de Carvalho e Fernando Tordo. De seguida, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais comprovou que era exequível um evento musical de massas em Portugal — a programação era inconcebível, a começar pelo belicoso revolucionário Miles Davis. O Movimento dos Direitos Civis, a consciencialização negra, entrou em rota de colisão com o colonialismo do Estado Novo no Jazz de Cascais, culminando com a prisão de Charlie Haden. E ainda, no meio desta ditadura, no meio do nada, surgiu um oásis: o Festival de Música de Vilar de Mouros. O carnaval foi orquestrado pelo Dr. António Barge, um ginecologista obstetra do Minho com idade para ter juízo, que, feitas as contas, acabou excomungado e acumulou 700 contos de prejuízo.

José Cid e o Quarteto 1111, na sala de ensaios, e a primeira edição do Festival de Vilar de Mouros

No entanto, este cenário, como apontou sabiamente Mário Correia, é apenas um ponto de partida. A Revolução antes da Revolução justifica-se pelos capítulos que a história da música popular portuguesa esqueceu. A memória, assim como a canção, está em movimento, e esta história não está reservada a homens de viola a tiracolo. É urgente redefinir a alvorada da canção popular, não deixando cair no esquecimento, por exemplo, as mulheres do canto de intervenção, em combate simultâneo contra um regime e uma ditadura de costumes. Reparem: hoje o país está rodeado de canções diversas e cosmopolitas, com a diáspora africana em evidência, canções a que chamamos, sem pudor, de música portuguesa. Mas estas canções não brotaram de forma mágica ou pacífica — há mais de 50 anos, os músicos africanos em Portugal, de Ruy Mingas a Bonga, combateram para derrubar um regime que se pretendia humanista, supostamente dotado de uma capacidade exclusiva de derrubar as fronteiras entre o colonizado e o colonizador, entre o negro e o branco. E o grupo musical português de maior sucesso, o Duo Ouro Negro, acusado de ser uma representação panfletária da política integralista do Ultramar, atreveu-se a gravar um colossal grito de independência: Blackground.

Chegámos ao momento crucial desta conversa dissimulada de prefácio. A canção lusoafricana, ou até o canto de intervenção, surgiu em oposição directa ao regime colonial, foi uma reacção musical à violência da opressão. Nas trincheiras da cultura popular, abriu-se uma nova frente de guerra. São as divisões, os conflitos, o amor e a repulsa que formam a música popular. Não acredito que um Estado em harmonia possa conceber a canção popular. E desenganem-se da ladainha redutora dos comunistas contra os fascistas, do nós contra eles; se o canto de intervenção, em todas as suas dimensões, permanece celebrado, é também devido aos embates de frente com as restantes manifestações musicais: o fado, o folclore, o rock e a música pop. É certo que não haveria esta canção de intervenção sem o regime opressor do Estado Novo, mas julgo que a oposição que criou esta nova música popular era mais alargada. Segundo os cantautores da época, o fado e o dito “nacional-cançonetismo” deveriam ser expurgados violentamente para libertar Portugal; e mais, somente se poderia resgatar do campo as canções genuinamente tradicionais — o folclore que se cantava pela rádio e televisão era uma deturpação histórica a combater. Porém, eram os cantores ditos popularuchos que amansavam os dias lúgubres de um Portugal em guerra, pobre e alienado. A canção erguia-se entre duas barreiras aparentemente intransponíveis, que a dado momento foram indissociáveis da situação política: o gosto popular e a revolução.

Creio que a música popular, tal como hoje a concebemos, contém tanto de José Afonso como de Marco Paulo, de Bonga ou de Tony de Matos, e todos são devidamente celebrados nos próximos capítulos. As transformações da nossa canção são extremamente complexas. Vejamos o caso do fado em 1971: os camaradas de viola a tiracolo não tinham qualquer dúvida de que, directamente ou por omissão, o fado salvaguardava o regime ditatorial. No entanto, um representante do fado conservador e aristocrático como João Braga cantava no mesmo palco que José Manuel Osório, assumido comunista e homossexual, numa demonstração da resiliência do género às intrigas ideológicas, e um indício que iria sobreviver ao processo revolucionário do pós25 de Abril. Outro caso essencial para entender a década de 1970 é o estado diminuído do rock português; segundo a lógica anglo-saxónica, seria o líder natural da juventude. Sucede que a “Primavera marcelista” foi particularmente cruel com os elementos desalinhados e frágeis que formavam as bandas de rock; e os próprios movimentos de oposição ao regime renegaram, por questões ideológicas, a afirmação do rock português. Esta teia de conflitos explica, em parte, como chegámos aqui, com os nossos defeitos e valências, e o que se convencionou denominar de música portuguesa.

Assine o Observador a partir de 0,18€/ dia

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Vivemos tempos interessantes e importantes

Se 1% dos nossos leitores assinasse o Observador, conseguiríamos aumentar ainda mais o nosso investimento no escrutínio dos poderes públicos e na capacidade de explicarmos todas as crises – as nacionais e as internacionais. Hoje como nunca é essencial apoiar o jornalismo independente para estar bem informado. Torne-se assinante a partir de 0,18€/ dia.

Ver planos