O futuro é incerto na pequena cidade de Bacurau. Lunga está exilado numa barragem abandonada, rodeado de seca e sertão, pobreza e desdém. Aos olhos do Brasil, Lunga é um bandido. A população de Bacurau pensa diferente. Lunga é um mal menor, é parte intrínseca do Nordeste brasileiro, uma representação física da exuberância e resiliência desta terra, como os cangaceiros de outrora, os bandidos-heróis do folclore nacional. Mas agora estamos no futuro, como explicam no início do filme “Bacurau”, apesar de tudo indicar que estamos a pensar no presente, no ano de 2019. A meio da noite apagam-se as luzes de Bacurau. Lunga não tem dúvidas: “Estamos sendo atacados”.

Esta terça-feira, a meio da noite, o edifício da produtora do grupo de comediantes Porta dos Fundos foi atacado com dois cocktails molotov, depois de duas semanas de intensas críticas ao especial de Natal com Jesus Cristo homossexual como protagonista. E tudo começou no Twitter, iniciativa de Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente do Brasil: “Somos a favor da liberdade de expressão, mas vale a pena atacar a fé de 86% da população? Fica a reflexão.” Imediatamente surge uma petição online com um milhão de assinaturas para retirar o filme e Frederico D’Avila — Deputado Estadual de São Paulo, anuncia que assinaram uma comissão parlamentar para debater este “insulto contra a família”.

Após a Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro não dar razão às sucessivas queixas, e de a própria Netflix ter renovado contrato com a  Porta dos Fundos, alguém decidiu fazer justiça com as próprias mãos. Os dois cocktails molotov parecem um desfecho quase previsível depois de um ano de intensa guerra entre o governo de Jair Bolsonaro e o cinema brasileiro. Como chegámos aqui?

[Veja o trailer do “Especial de Natal Porta dos Fundos 2019”]

“No ano em que o cinema brasileiro sofre o maior ataque institucional da história e o presidente do país abre uma guerra contra a cultura, é uma alegria em meio a tanta tragédia ver nosso filme, que documenta a ascensão dele ao poder, chegando e resistindo até aqui.” O desabafo é de Petra Costa, após o anúncio de que “Democracia em Vertigem” está entre os pré-candidatos ao Óscar. O documentário, estreado em janeiro, impôs o clima para o resto do ano, depois de acompanhar a ex-Presidente do Brasil Dilma Rousseff ao longo do processo de impeachment. Qual vidente, a narradora Petra Costa descreve a mudança de ventos no cenário político, a favor do conservadorismo. O governo encabeçado por Jair Bolsonaro começou por extinguir de imediato do MinC Ministério da Cultura) e a relegação da pasta da cultura para debaixo do guarda-chuva do Ministério da Cidadania, entregue a Osmar Terra, que afirmou não saber nada de cultura: “Só toco berimbau”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Trailer do documentário “Democracia em Vertigem”]

Os últimos 12 meses transformaram a cultura do Brasil num campo de guerra, entre um governo em constante evangelização de ideais conservadores — “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” — e um setor cultural encolhido nas trincheiras, em posição de resistência. Enquanto o governo começou o ano a debater as alterações às leis de incentivo à cultura, o primeiro grande grito de guerra surgiu dentro das salas de cinema, na cidade fictícia de Bacurau. Existia alguma expectativa com o novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, mas ninguém podia adivinhar o êxtase coletivo da plateia nas primeiras exibições de “Bacurau”. É verdade que o realizador pernambucano era o responsável por “O Som ao Redor” e “Aquarius”, duas obras-primas do cinema recente brasileiro, e que na apresentação desse segundo filme em Cannes empunhou em protesto um cartaz onde se lia: “Um golpe de Estado aconteceu no Brasil”.

Mas seria impensável que o eleitorado que perdeu as eleições presidenciais encontrasse consolo numa história de violência caricatural, mais próximo da anarquia de John Carpenter que o socialismo comunitário de Walter Salles, com 720 mil bilhetes vendidos. É obra.

Kleber Mendonça Filho: “Se Bolsonaro visse este filme talvez aprendesse que a cultura brasileira faz coisas boas”

“Bacurau” é uma cidade nordestina que resiste a forças externas. Na interpretação da plateia, este Nordeste representa a última fronteira, a aldeia do Astérix que Jair Bolsonaro não consegue penetrar — o Nordeste foi a única região em que o Presidente do Brasil foi derrotado nas eleições de 2018. A luta dos nordestinos seria assim a luta de todos os que não votaram em Bolsonaro, ou seja, Bacurau não existe somente na tela, Bacurau é aqui.

[Veja o trailer de “Bacurau”]

Outro filme do início de 2019 que deu azo a interpretações de resistência ao conservadorismo foi “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro. Assim como  Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro é um realizador de Recife, centro criativo do cinema do Nordeste. Apesar de “Divino Amor” não acompanhar o delírio regional do filme anterior — o celebrado “Boi Neon” — são mais achas para a fogueira deste movimento de oposição, ao apresentar uma sociedade distópica regida pela Igreja Evangélica. No entanto, em breve, o mediatismo face a esta sucessão de cinema criativo seria substituído pela imposição de uma nova agenda para o audiovisual brasileiro.

A ofensiva do governo começa em julho. Bolsonaro sugere que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) — órgão do Estado que regula, fomenta e fiscaliza o cinema nacional — precisa de um filtro: “Vai ter um filtro, sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine, privatizaremos ou extinguiremos. Não pode é dinheiro público ser usado para filme pornográfico”. “Bruna Surfistinha” é o exemplo apresentado pelo Presidente do Brasil, o filme de 2011 em que Deborah Secco é uma “garota de programa”, a prova de que a Ancine devia ser extinguida ou pelo menos transferida do Rio de Janeiro para Brasília. Estava entregue o mote para os meses seguintes.

[Veja o trailer de “Bruna Surfistinha”]

Repentinamente, o secretário de Cultura demite-se. Como dirigente máximo na pasta, Henrique Pires era também responsável pela Ancine. Segundo o secretário de Cultura, o Ministério da Cidadania suspendeu à sua revelia um edital que já estava aprovado, que deveria financiar séries de televisão na temática de diversidade e LGBT. Bolsonaro não perde tempo, confirma que esteve a rever os apoios estatais ao audiovisual, nomeou as séries em questão e os seus enredos, concluindo que: “É um dinheiro jogado fora. Não tem cabimento fazer um filme com esse tema”. Mais tarde, Henrique Pires seria testemunha sobre o caso no Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, comprovando a imposição de “censura” pelo Ministério da Cidadania. Pela primeira vez, alguém dentro do governo denuncia que existe um filtro para a cultura.

Após o primeiro finca-pé de Jair Bolsonaro, sucedem-se quase instantaneamente uma série de  cancelamentos. A Caixa Econômica — empresa financeira público-privada —, suspende um ciclo de cinema em homenagem a Dorothy Arzner, a influente realizadora de Hollywood, ciclo que deveria ser acompanhado por palestras sobre o papel da mulher no cinema. A empresa alegou uma questão burocrática, mas uma reportagem da Folha de São Paulo revelou que a instituição criou um sistema de filtragem, ou, como descreve o jornalista, “censura prévia”. Segundo a reportagem circulam relatórios internos para analisar as redes sociais e o posicionamento político dos artistas, relatórios que depois definem a aprovação dos projetos.

Ao mesmo tempo, no Centro Cultural da Justiça Federal no Rio de Janeiro, é cancelada outra mostra de cinema. Entre estes filmes estão dois que mencionam Jair Bolsonaro e “Nosso Sagrado”, que trata da perseguição às religiões afro-brasileiras. Segundo outra reportagem da Folha de São Paulo, a Cinemateca de São Paulo sofre constantes pressões de militares e políticos contra o “marxismo cultural”. Por fim, em Montevidéu, no 8.º Festival de Cinema do Brasil, a embaixada do Brasil e o próprio embaixador, segundo a produtora do evento, pedem que o festival de cinema retire da programação “Chico: Artista Brasileiro”, documentário sobre a vida de Chico Buarque, reconhecido opositor do governo.

[Veja o trailer de “Chico: Artista Brasileiro”]

Além de “Bacurau”, o filme mais esperado do ano era “Marighella”, a estreia de Wagner Moura na realização, baseado no livro “Marighella — o Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, sobre um guerrilheiro que se celebrizou pelo combate à ditadura militar. Surpreendentemente, a produtora O2 Filmes (de “Cidade de Deus” e “Ensaio sobre a Cegueira”) anunciou que o filme não vai estrear porque “não conseguiu cumprir a tempo todos os trâmites exigidos pela Ancine”. No Twitter, o filho do Presidente do Brasil, Carlos Bolsonaro, disse que a produtora pediu um milhão de reais à Ancine: “Pedido negado! Noutros tempos o desfecho seria outro, certamente com prejuízo aos cofres públicos.”

Segundo a própria produtora, a Ancine vetou a estreia do filme porque não foram respeitados os prazos de comunicação de uma data de estreia, ou seja, vetou por uma questão burocrática. “De repente, a história ganhou uma outra dimensão. Os filhos de Bolsonaro tuitaram a respeito. É impossível não pensar que existe uma articulação política para criar esse tipo de ambiente”, disse então Wagner Moura à Revista Época.

O Observador esteve presente numa das poucas exibições públicas de “Marighella”, no último Lisbon & Sintra Film Festival. Em frente a uma plateia expectante, Wagner Moura sublinhou que se vive um momento de censura nas artes no Brasil e que a resistência retratada neste filme é uma extensão da batalha que ocorre fora da tela. De facto, os possíveis paralelismos de “Marighella” com os últimos anos são muitos, desde o discurso de Bolsonaro a louvar um torturador da ditadura militar ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco. Porém, o filme não deve ser recordado pelo conteúdo, pela narrativa desnorteada que dificilmente vai agradar até os ferozes opositores do conservadorismo, deve sim ser recordado por continuar na gaveta, sem qualquer previsão de estreia no Brasil. Outro filme que não conseguiu estrear a tempo é “Vou Nadar Até Você”, com Bruna Marquezine. O realizador Klaus Mitteldorf sugeriu ao Estadão que o filme teve muitas dificuldades após a Ancine bloquear as verbas da pós-produção e lançamento, acreditando que o bloqueio aconteceu devido às cenas de nudez no filme.

[“Marighella”:]

No contra-ataque, surgiu um peso pesado. A maior atriz viva do Brasil, Fernanda Montenegro, foi entrevistada para a revista Quatro Cinco Um e posou num ensaio fotográfico incendiário, amordaçada e rodeada de livros, como uma bruxa preparada para a sentença final, ou melhor, para o fogo da censura. A legenda:  “Salvem os livros. E as bruxas”. As redes sociais reagiram em louvor. Na maré contrária, o dramaturgo Roberto Alvim descreveu a capa da revista como a prova da “canalhice abissal destas pessoas, assim como demonstra a separação entre eles e o povo brasileiro” e descreve a atriz de 90 anos como “sórdida” e “mentirosa”. Não era preciso dizer mais, estava encontrado o próximo secretário de Cultura. Bolsonaro elege Roberto Alvim de imediato, desta feita na alçada do Ministério do Turismo, que começa uma reestruturação da pasta com nomeações de perfil conservador, entre elas o folclórico Dante Mantovani, que comentou de forma antológica que “o rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto e a indústria do aborto alimenta uma coisa muita mais pesada que é a indústria do satanismo”.

A última atuação extraordinária de Fernanda Montenegro está no final de “A Vida Invisível”. O filme de Karim Aïnouz — outro realizador nordestino e feroz opositor de Jair Bolsonaro. É uma adaptação de “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, livro de Martha Batalha e um dos grandes filmes brasileiros do ano. A trama é sobre duas irmãs cariocas, filhas de portugueses, que numa sucessão de desencontros acabam a viver uma vida paralela enquanto combatem contra o mesmo mal: o patriarcado. Este melodrama estilizado — sem estreia programada em Portugal — ganhou o prémio Un Certain Regard em Cannes, onde o realizador discursou: “Antes de qualquer coisa, é importante que este prémio possa incentivar o futuro do cinema brasileiro, a diversidade da nossa cultura para que tenhamos um Brasil melhor do que estamos vivendo agora”. Apesar de “A Vida Invisível” não refletir a faceta mais transgressora de Karim Aïnouz — como “Madame Satã” e “Praia do Futuro” — tem um ator que automaticamente coloca o filme na trincheira contra o governo: Gregório Duvivier, o mesmo ator que é protagonista no especial de Natal da Porta dos Fundos.

[“A Vida Invisível”:]

Num ato simbólico, este mês a Ancine retirou os cartazes dos filmes que ilustravam a instituição e o site. Edilásio Santana, pastor evangélico e colunista social, é o novo responsável  pela gestão dos recursos e fundos da Ancine para o audiovisual brasileiro. A TV Escola — canal aberto do Ministério de Educação — anunciou que o filósofo e doutrinador conservador Olavo de Carvalho está a preparar uma série que promete “resgatar” a história do Brasil. O campo está pronto para mais um ano de guerra. “Se eles pudessem, estaríamos todos num paredão e eles atirando em nós com metralhadoras”, desabafou Fernanda Montenegro durante o Festival do Rio. “É uma batalha. E a gente vai vencer. Já saímos de guerras piores. Artista? Sobrevive sempre”.