Na última semana, decorreu na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (em Lisboa) a primeira conferência internacional dedicada à Covid Longa e à Síndrome de Fadiga Crónica, um evento que juntou vários especialistas nacionais e internacionais e que abordou temas como a prevalência destas doenças, a carga clínica, o consumo de recursos em saúde e os resultados da investigação biomédica nesta área.
À margem do encontro, o Observador falou com o epidemiologista e professor universitário Nuno Sepúlveda, que sublinha os esforços que estão a ser desenvolvidos na Europa para responder às pessoas que ficaram com sequelas resultantes da Covid-19, em contraponto com a realidade portuguesa, onde, critica o especialista, os doentes são “marginalizados” e não existe sequer um centro de tratamento para onde possam ser referenciados — nem um estudo epidemiológico que mostre a prevalência atual da doença.
O especialista considera inevitável o aparecimento de uma nova pandemia e coloca dúvidas quanto à preparação de Portugal para enfrentar esse novo desafio de saúde pública.
“Há pessoas que mantêm os sintomas desde o início da pandemia”
Já conhecemos a verdadeira dimensão da Covid Longa?
Pela definição da Orgnização Mundial de Saúde, uma pessoa tem Covid Longa se mantiver sintomas três meses após uma infeção confirmada por SARS-CoV-2. No meu caso, tive alteração do paladar e do olfato, embora estes não sejam os sintomas mais debilitantes. Nalguns casos, estes sintomas desaparecem e surgem sintomas crónicos. A OMS estimou o ano passado que 36 milhões de europeus [cerca de 5% da população da Europa] desenvolveram um quadro de Covid Longa.
A maior parte dos casos de Covid Longa manifesta-se de que forma?
A maior parte desenvolve sintomas como a persistência de fadiga, falta de ar, intolerância ao exercício físico, alterações cognitivas, perdas de memória. Há relatos de pessoas que mantêm os sintomas há dois, três anos, desde o início da pandemia.
Há um estudo nacional recente, feito no Porto, que concluiu que 50% dos doentes seguidos em contexto hospitalar mantinham sintomas um ano depois da infeção. Precisamos de estudos longitudinais e, para isso, é preciso que os clínicos façam esse seguimento. Em Portugal, não há estudos epidemiológicos, para se perceber qual a percentagem de população que foi e é afetada pela Covid Longa, nas várias vertentes — na vertente transitória e na vertente dos sintomas crónicos.
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Que ligação tem a Covid Longa com o já conhecido o Síndrome de Fadiga Crónica?
Um dos pontos de contacto é a persistência do cansaço. O Síndrome de Fadiga Crónica caracteriza-se pela persistência de cansaço por um período superior a seis meses (cansaço esse que não é explicado por nenhuma outra doença conhecida) e abarca a intolerância ao esforço físico e mental. Muitos casos de Covid Longa têm esse quadro. São pessoas que tinham um vida normal, tiveram uma infeção por SARS-CoV-2 e, desde aí, atividades como subir escadas ou ler um livro passam a ser tarefas penosas e debilitantes. O que sabemos é que muitos casos de Síndrome de Fadiga Crónica tiveram origem em surtos infecciosos, como o surto de ébola, em 2015.
“Os pacientes ficam num limbo. Os médicos não sabem bem o que fazer”
Como avalia o combate à Covid Longa na Europa?
Tem havido um esforço de alguns países em investir na investigação desta doença, que é uma doença complexa e que afeta múltiplos sistemas do organismo. Não há um fármaco específico para tratar a doença e o que está a ser feito é perceber se fármacos usados para tratar outras doenças podem ser usados com eficácia na Covid Longa (na Alemanha, estão a decorrer vários ensaios clínicos com fármacos para doenças autoimunes).
E como se têm organizado os cuidados de saúde para responder à Covid Longa? A resposta é suficiente?
Pertenço a uma rede de investigadores na área da Síndrome de Fadiga Crónica e encefalomielite mialgica [a Euromene] e fizemos recomendações para o contexto europeu. Uma delas era ter pelo menos um centro clínico em Portugal dirigido a estas doenças, tendo em conta a prevalência — afetam 0,7% da população europeia. Esse centro não existe e se olharmos para a Covid Longa, é o mesmo — não há nenhum centro dedicado e deveria haver. O que tem acontecido são respostas isoladas dos médicos. Não há uma política concertada para diagnosticar rapidamente e aplicar o tratamento.
E deveria existir uma estratégia coordenada?
Sim. O que acontece agora é que os pacientes ficam num limbo. Os médicos não sabem bem o que fazer.
Estamos a desvalorizar estas pessoas?
De alguma forma, sim. Muitas vezes, o diagnóstico é feito tarde e o que acontece é que os pacientes não encontram soluções nos sistemas nacionais de saúde. Na Alemanha, as pessoas são direcionadas para um centro de tratamento (na Universidade de Berlim), dedicado à fadiga — esse centro tem recebido muitos pedidos para pessoas com Covid Longa e Síndrome de Fadiga Crónica. Na Holanda, há um grande investimento na Covid Longa e também uma aposta na consciencialização.
Em Portugal deveríamos ter também um centro dedicado à Covid Longa ou uma equipa de referência no SNS?
Sim, deveríamos ter um centro para onde seriam referenciadas as pessoas que mantêm sintomas. Temos esta estratégia em vários países europeus, no Canadá também.
“Muitos médicos não acreditam sequer que a doença existe”
São os próprios médicos que, por vezes, desvalorizam os sintomas?
Exatamente. Muitos médicos não acreditam sequer que a doença existe e relacionam os sintomas com a parte psicológica do doente. E partem do pressuposto de que é um problema psicológico, da cabeça das pessoas, e optam por terapias comportamentais e controlo da depressão e ansiedade. Na maior parte das vezes, essas não são as causas.
Podemos considerar que a Covid Longa é um problema de saúde pública?
É um problema de saúde pública. Pelo menos nos outros países europeus é, porque temos estudos epidemiológicos que nos permitem perceber a dimensão da prevalência desta condição. Em Portugal, não temos dados. Está a ser preparado um estudo epidemiológico na Madeira, liderado pelo professor Jaime Branco [reumatologista].
Que consequências pode ter a falta de dados e de uma estratégia para garantir uma resposta às pessoas com Covid Longa?
Estas pessoas são marginalizadas no SNS. E em termos económicos é mau, porque provoca mais absentismo — as pessoas faltam ao trabalho e a produtividade é menor.
Estamos preparados para enfrentar uma nova pandemia, da dimensão da Covid-19, nos próximos anos?
A questão não é saber se vamos enfrentar uma nova pandemia. É se estamos preparados para ela.
Especialistas vão começar a desenhar recomendações para a long Covid
E estamos?
No contexto nacional, a resposta em termos de cobertura vacinal foi boa. Mas em relação às medidas epidemiológicas e de emergência, não sei se existe essa consciencialização. Em Hong Kong, quando houve uma pandemia de SARS-CoV, em 2003, houve uma grande sensibilização para o uso de máscara, para evitar deslocações para o trabalho se existissem sintomas respiratórios. Sabemos que não podemos evitar nenhuma pandemia, mas, por outro lado, podemos tentar conter a transmissão e podemos ser um agente bloqueador dos contágios.
E é inevitável virmos a enfrentar uma nova pandemia?
É inevitável. Estudei muito tempo na London School of Hygiene and Tropical Medicine e fizemos muitos estudos em África e no Sudeste Asiático e o que vimos foi que, em zonas em que o homem não entrava (e em que as doenças ficavam circunscritas àquele habitat natural), quando os humanos invadiram esse habitat passaram a estar expostos a agentes infecciosos que não estavam presentes nas populações humanas.
Na Malásia, ocorreu uma grande desflorestação da parte norte do país e começaram a surgir casos de malária, provenientes dos macacos, que transmitiam o parasita aos mosquitos, que depois o transmitiam às pessoas. Antes dessa desflorestação havia muito poucos casos de malária naquele país, porque só atingiam pessoas que se embrenhavam na floresta.