Nas últimas semanas, alguns partidos têm reclamado pela Entidade para a Transparência criada em 2019 para apreciar e fiscalizar as declarações de rendimentos, património e interesses que os políticos têm de entregar quando assumem funções. Criada no papel há mais de três anos, ainda não viu a luz do dia já que o Tribunal Constitucional faz depender a designação dos seus membros da existência de uma sede e da plataforma eletrónica para as declarações. Mas a parte menos conhecida desta história é que há um terceiro problema que esteve em cima da mesa a travar a ambicionada fiscalização apropriada de incompatibilidades e impedimentos que tanta tinta tem feito correr.

Com mais ou menos tempo, mais ou menos obras, as duas primeiras questões colocadas pelo presidente do TC aos deputados parecem ter solução a caminho. A terceira, nem por isso. E isto porque o Tribunal quer um magistrado, judicial ou do Ministério Público, a presidir à Entidade, o que levanta problemas ao nível da remuneração.

Numa carta enviada ao presidente da Assembleia da República na legislatura passada (em junho de 2021), o presidente do TC falou mesmo de um “obstáculo provavelmente intransponível” para que possa escolher o presidente da nova Entidade. Apesar da lei apenas definir que “a Entidade é composta por três membros, um presidente e dois vogais, devendo pelo menos um deles ser jurista”, nessa missiva João Caupers refere que parece “apropriado que viesse a ser presidida por um magistrado, judicial ou do Ministério Público”. E argumenta com o “estatuto” e como ele permite a “salvaguarda da indispensável independência” da Entidade.

A tensão foi em crescendo nesta troca de correspondência entre o então presidente da Comissão parlamentar da Transparência e o presidente do TC e chegou a ser noticiada pela comunicação social em 2021. Acabou sem solução para a questão concreta levantada por Caupers que chegou mesmo a sugerir uma alteração da lei que acabara de ser criada para acomodar as pretensões do TC.

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A questão bloqueadora é que na lei “nada se dispõe quanto à possibilidade de tais magistrados optarem pelas remunerações correspondentes à sua condição de magistrados”. A lei define que “o presidente da Entidade aufere a remuneração correspondente à de inspetor-geral de finanças e os vogais a correspondente à de subinspetor-geral de finanças, acrescendo, em ambos os casos, o respetivo suplemento de função inspetiva”. A remuneração base do inspetor-geral de Finanças é 4 717,21 euros mensais (valor bruto), de acordo com o Sistema Remuneratório da Administração Pública de 2022, somando-se o suplemento de 22,5% da respetiva remuneração base (cerca de mil euros).

O mesmo sistema mostra que, em matéria de magistrados judiciais e do Ministério Público, o nível salarial varia (mas a partir de um nível baixo o salário é logo superior àquele que a lei define como referência), pelo que na altura a comissão desconfiou que o TC estivesse a pedir uma alteração à lei à medida de alguém que já estaria em mente, segundo apurou o Observador junto de fontes da anterior comissão parlamentar.

Imagem retirada do Sistema Remuneratório da Administração Pública de 2022

Na carta remetida a Eduardo Ferro Rodrigues, o presidente João Caupers pedia uma solução ao presidente da Assembleia da República para o “obstáculo” de este tipo de funcionário não poder optar pela remuneração do cargo de origem e argumentava com o que se passa com os membros da Entidade das Contas e Financiamentos políticos, outra entidade na órbita do TC, e onde existe essa possibilidade.

Terminava o texto sugerindo uma alteração à lei, considerando que “este obstáculo apenas poderá ser ultrapassado com um aditamento” ao artigo concreto para que este possa passar a prever “relativamente aos magistrados judiciais e do Ministério Público a faculdade de opção remuneratória em causa”.

Em outubro desse mesmo ano, o presidente da comissão parlamentar da Transparência, Jorge Lacão, enviou uma carta onde referia “contactos anteriores” e sublinhava a “preocupação” por naquela altura ainda não existir a Entidade. Na resposta a essa carta, João Caupers fez o ponto de situação e referiu as diligências feitas para encontrar uma espaço para a instalação física da Entidade. A solução em cima da mesa — e cujas obras ainda não começaram — é o Palácio dos Grilos, em Coimbra, e Caupers avisava para os “obstáculos burocráticos relevantes” tendo em conta a classificação do edifício como Património Mundial da Humanidade.

Por último, nessa mesma carta, o TC falava da “dificuldade” já levantada ao presidente da Assembleia da República sobre a questão do estatuto remuneratório. Dizia então João Caupers que se tratava da “inviabilidade da nomeação para presidente da Entidade de um magistrado judicial ou do Ministério Público, cujo perfil se afigura ao Tribunal o mais adequado para garantir a independência, a isenção e a reserva que se exigem daquela”. A “inviabilidade” era precisamente “a lei não reconhecer ao magistrado que vier a ser escolhido o direito de optar pelo estatuto remuneratório inerente às suas funções, o que considerada a redução remuneratória indicada, torna mais do que improvável a aceitação por parte deste”.

Na resposta a esta carta, Jorge Lacão discordava que a Entidade não pudesse ser instalada de forma provisória e propunha mesmo a criação de uma “Comissão Instaladora para dinamizar o próprio processo de instalação definitiva”.

Já sobre a questão remuneratória, o socialista respondeu que “não é essa a opção do legislador e consagrada na lei, a qual prevê expressamente o estatuto dos seus membros, equiparando o presidente da Entidade à categoria de inpetor-geral de Finanças e os vogais à se sub-inspetor geral”. E atirou: “Não deve, pois, ser invocada uma necessidade de aclaração que não se justifica para adiar um ato que já deveria ter tido lugar”.

Lacão falava ainda na “perplexidade geral” com os “sucessivos atrasos” na criação da Entidade e pedia que a questão fosse ultrapassada. O tom foi registado por João Caupers que, na resposta ao socialista, disse que se “abstinha de qualificar por respeito para com a Assembleia da República”. E registava também que a proposta não tinha sido aceite, “salvo a surpreendente afirmação que o Presidente da Entidade para a Transparência não deve ser um magistrado”.

Há duas semanas, o Observador questionou o Tribunal Constitucional sobre as razões em cima da mesa, nesta altura, para continuar por avançar a Entidade: “A elaboração e operacionalização de uma plataforma eletrónica e a instalação física da Entidade para a Transparência”. Agora nada refere sobre a questão remuneratória que só foi tornada pública com a publicação das cartas no site do Parlamento, promovida pelo antigo presidente da Comissão da Transparência.

Sobre a Plataforma Eletrónica diz que os trabalhos “prosseguem de acordo com o previsto. Foi assinado o contrato, a 9 de maio, estimando-se que o processo de desenvolvimento e disponibilização da plataforma possa estar concluído até ao final do corrente ano“. Quanto às obras, ainda não começaram, segundo noticiou o Público no início deste mês. O TC remete a responsabilidade para o Governo a que, diz, “compete, por lei, disponibilizar o espaço para a instalação física da Entidade”.

Na ausência desta Entidade, continua a competir ao TC e ao Ministério Público, junto deste, fiscalizar as declarações de rendimentos e património e registo de interesses dos políticos e titulares de altos cargos públicos. Uma tarefa que o TC se queixou de ter falta de meios para desempenhar, acabando por ser, durante estes anos, apenas o depósito das declarações entregues por membros do Governo. O assunto voltou agora à ordem do dia tendo em conta os sucessivos casos de dúvidas sobre incompatibilidades e impedimentos de membros do atual Executivo.