Pouco mais de metro e meio, voz doce, sorriso fácil. Madalena Almeida, atriz, ainda acha que é vista, nas palavras da própria, como “uma miúda querida”. Já a “irritou” mais.
Com o tempo — palavra que repetirá ao longo da hora de entrevista — , conseguiu que realizadores e encenadores a procurassem para mais do que as “personagens queridinhas”. “Sinto que estou num processo de mudança de chip. Ser boa pessoa, generosa, disponível e simpática não pode ser uma porta aberta para que alguém abuse da boa vontade. Senti isso na pele. Sei que sou profissional. Fora o que as pessoas possam achar do meu trabalho, sei que estou pronta, estudo as coisas, levo o trabalho estudado, levo propostas, peço ajuda, não invado o espaço do outro. Isso tem de me valer de alguma coisa e tem de trazer respeito de volta.”
Aos 26 anos, tem um currículo invejável e uma carreira que tem resistido à tipificação. É a Vera de Jesus Quisto, a banda fictícia da série “Pôr-do-Sol”, transmitida pela RTP e que chega esta quinta-feira aos cinemas portugueses na versão fílmica, “Pôr do Sol — O Mistério do Colar de São Cajó”. É Salomé, uma das protagonistas do díptico de filmes de João Canijo, “Mal Viver”, e “Viver Mal”, o que lhe valeu entrada direta para o restrito grupo que o realizador tem escolhido a dedo para compor uma família cinematográfica onde está Anabela Moreira, Rita Blanco, Cleia Almeida, Vera Barreto. “Não é uma família que temos, é uma família que escolhemos”, diz Rita Blanco. E “não é logo no casting. É no processo, e muitas vezes não é na primeira vez que se trabalha”. No caso da “Nena” (como é carinhosamente chamada), com quem já havia trabalhado no pequeno ecrã, foi.
Numa tarde de calor no jardim da Estrela, em Lisboa, Madalena vai bebericando uma água das pedras, com o saco de pano da Berlinale pousado sobre a cadeira. Estava a chegar à casa dos avós, em Abrantes, quando recebeu uma chamada inesperada do realizador. “O João Canijo, para o meu número!”, recorda, olhos esbugalhados. Perguntou-lhe se queria fazer o casting, enviou-lhe “cenas para ler”.
Na obra, que viajou em fevereiro até ao festival de cinema de Berlim onde colheu o Urso de Prata, prémio do Júri, por “Mal Viver”, dá vida a uma jovem que acaba de perder o pai. Como é público, aos três anos, a atriz passou pelo mesmo. “Na altura, o João [Canijo] quis muito usar isso, mas eu não sentia grande identificação [com a personagem], porque na verdade a minha experiência é muito diferente. Até a relação com a mãe [interpretada por Anabela Moreira] é tão distante daquilo que tenho com a minha mãe que até era estranho para mim. Mas o João tem essa particularidade, gosta de trabalhar a partir de nós. A personagem do pai no filme tem o nome do meu pai.”
Não se importa de emprestar histórias e emoções às personagens, mas quer “que isso depois dê a volta para outro lado”. “Não quero mesmo que seja sobre mim”, separa. “É a possibilidade de fazer coisas além de mim que me interessa. Para falar de mim vou à terapia e resolvo lá.”
Em “PRAXX” (2022), da Opto, foi de novo uma jovem a lidar com o luto, desta vez de amigos que morrem afogados em circunstâncias suspeitas. A série é inspirada na tragédia que aconteceu na praia Meco, em 2013. “Não há forma de embelezar a perda, vamos ter de ir àquele sítio em que dói um bocadinho”, assume. “Não levo a personagem para casa, mas levo-me a mim rota.” Também isso aprendeu a distinguir: o desgaste físico do emocional. “A Rita Blanco dizia-me: ‘tu não tens que te emocionar com as personagens, não tens de sofrer, quem tem de sofrer é o público”‘, evoca. “Quantas vezes fiz cenas em que estava ali a sofrer, e depois vi, e pensei: não passou nada, não era nada disto que queria fazer.”
O olhar da atriz vai pousando noutros lugares, o pensamento vagueando pelas muitas histórias que já contou, e outras tantas que não sabe se algum dia irá contar: “O processo de perda do meu pai, a minha relação com o amor por causa disso… Criei uma perspetiva sobre o amor muito romântica porque quando o meu pai morreu ele e a minha mãe estavam muito no início da vida de casal, então a coisa ficou assim num sítio super brilhante, super lindo. Desapareceu uma coisa que era tão boa. Não quer dizer que se fosse destruir, mas sempre vi o amor como uma coisa que é para sempre. Tinha medo de um dia ter um desgosto de amor e achar que não ia sair dali porque só pode haver um.” Talvez um dia faça um espetáculo sobre isso. Talvez não.
Madalena Almeida nasceu e cresceu em Cascais, com o irmão e a mãe, com quem ia ao cinema ver todos os blockbusters. “Ninguém na minha família é do meio artístico. Há um complexo gigante quando se diz: ‘Vou estudar teatro’. Para grande parte da minha família a pergunta era: ‘Mas vais ter trabalho nisso? Vais ter dinheiro? Vais conseguir viver disso?’ E isso nunca foi uma questão para a minha mãe.” Em todas as entrevistas, menciona-a como porto de abrigo, referência maior e, sobretudo, alguém que fez o que a atriz precisava: deixou-a voar.
“Temos uma relação muito forte”, admite. Aliás, “a ideia de crescer, ou de deixar de estar neste conforto familiar, era uma coisa que não queria e que quis adiar durante muito tempo. Quando saí de casa, a minha mãe foi super legalize”, ri. “Somos mesmo muito, muito próximas. E eu dizia: ‘Tu não estás a sofrer por eu sair de casa? Como assim? Porque eu estou a sofrer!’”
Bem podia querer retardar o crescimento — ainda tem um pequeno elefante na mesinha de cabeceira, para lhe dar sorte —, mas, aos 18 anos, recém-saída da Escola Profissional de Teatro de Cascais e no primeiro ano de conservatório, conseguiu o seu primeiro papel, na novela “Santa Bárbara”, na TVI. Pouco tempo depois, teve a sua estreia no cinema. “Bom dia. Tem os ‘Lusíadas’ contado às grávidas?” foram as suas primeiras palavras no grande ecrã, como grávida adolescente no filme “Ramiro” (2017), de Manuel Mozos.
Os projetos sucederam-se, num percurso sólido que foi construindo em várias frentes. Nunca parou de estudar. “Sou uma atriz do texto”, resume-se. “Gosto de textos, gosto de textos densos, gosto que me deem um bom bloco de texto, de partir aquilo, de estudar o texto, gosto de personagens que falam.” Faz parte da companhia Urso Pardo, tem ambições de construir a sua própria. “Gosto muito de pensar sobre as coisas e de construir alguma coisa. Não sei se me vejo como encenadora, mas acho que um dia gostaria de dirigir atores.”
“Toda a gente vai fazer self-tapes lá a casa. É o espaço onde nós [Madalena e o namorado, também ator] adoramos discutir com as pessoas, dar dicas e depois escolher a indicação certa para cada ator. Aprendi com muito bons diretores de atores e tenho uma boa noção do todo”, crê. Com sorte, dependendo do projeto, os atores são parte da criação desse universo total.
Assim é o processo de trabalho de João Canijo, por exemplo, que convoca as atrizes para a escrita do argumento. “A primeira coisa que o João me disse foi que o guião já tinha sido escrito e começado com uma outra atriz”, relata. “Portanto, agora vamos reescrevê-lo todo contigo, porque vocês não são a mesma pessoa. Vamos começar tudo outra vez”, cita.
Sentiu-se fora de ritmo, assoberbada por um traquejo na improvisação e máquina oleada que é uma equipa que se conhece. “Sabes quando sentes que chegaste a meio? Era profundamente constrangedor para mim porque eu só pensava: não sei improvisar, tenho imensa vergonha, falta de coragem, sinto que não domino, tenho medo de fazer a escolha errada.” Foi ganhando confiança, crescendo. “Já não era só sobre a minha personagem, toda a gente propunha coisas para as outras personagens. Esse espaço que se criou foi para mim o que fez o filme.”
Diz-se que a noite é boa conselheira, mas Madalena sabe que é o tempo o seu grande aliado. “Tenho muita sorte, costumo dizer ao meu namorado, pela quantidade de castings que faço, que se só tivesse essas oportunidades seria uma atriz muito deprimida. Faço muitos castings e não fico em quase nada. Às vezes nem nãos [recebo], não dizem nada.”
“Não é custar-me [o processo de casting], acho é que não sou boa”, responde sem pudores. “Preciso de tempo. Quando começo a ensaiar um espetáculo, tenho um autor ou encenador que me diz o que procura. Na self-tape é sempre um tiro no escuro. Acho que arrisco pouco, acabo sempre por tentar ser neutra e não me comprometer com nada. Sou melhor quando tenho tempo. Felizmente, há algumas pessoas que me chamam, que gostam do meu trabalho e que sabem que com esse tempo vou conseguir fazer alguma coisa.”
Para quem ambiciona uma carreira fora das fronteiras portuguesas, numa era em que um vídeo de poucos minutos pode ser um passaporte para a internacionalização, esse tempo é um inimigo. “Já sofri muito. É mesmo tramado quando estás nesta profissão e és constantemente comparada. Olhas para o lado e não é que não aches que as pessoas não mereçam, mas muitas vezes perguntas: porque é que não consigo aquilo?” Hoje faz poucos castings internacionais. “Tive de me distanciar disso”, confessa. “Acho que finalmente consegui aceitar que um não num casting não define se sou boa ou má atriz.”
Já fez séries (“Até Que a Vida Nos Separe”, “3 Mulheres”, “Pôr do Sol”, “Conta-me Como Foi”), novelas (“Amor Maior”, “A Herdeira”), dobragens (“The Lodge”, “Clouds”). Acabou há dias as filmagens de “O melhor dos mundos”, novo filme de Rita Nunes, ainda sem data de estreia. “É um filme sobre cientistas, sobre uma possível catástrofe a acontecer em Lisboa, mas no futuro, em 2027”, antecipa. Contas feitas, porém, são as peças de teatro que vencem na matemática final do CV. “Até hoje, nenhuma experiência de cinema ou televisão me deu o espaço para preparar como o teatro me dá”, diz sem hesitações. “Há uma espécie de alheamento que acontece no teatro, não sei se tem a ver com o silêncio, se tem a ver com o estar numa sala num determinado ambiente, mas há qualquer coisa que faz com que não esteja a pensar que estou a ser vista.”
Nos últimos anos pisou o palco do Teatro Nacional D. Maria II com “Fake”, de Miguel Fragata e Inês Barahona, uma criação da Formiga Atómica; entrou em “Jogos de Obediência”, de Marta Carreiras, no São Luiz; recentemente esteve no Teatro da Politécnica com “Como Sobreviver a um Acontecimento”, uma criação da Urso Pardo com encenação de Miguel Graça.
“Estamos sempre à procura do grande papel, que nos catapulte para alguma coisa. Há muitas personagens e muitas peças que gostava ainda de fazer, mas agora começo a ter um bocadinho de mais calma, porque acho que estava muito nessa corrida.” Até porque há coisas que precisam — sim, de novo — de tempo e a sede de fazer pode ser contraproducente.
Foi o que sentiu ao vestir a pele de Nora, protagonista de “Casa de Bonecas”, peça de Henrik Ibsen, texto que em 1879 causou controvérsia por retratar uma mulher que ousa abandonar o lar, denunciando a violência do patriarcado. “Aquela personagem é incrível, acho que gostaria de voltar a fazer daqui a 15 anos. A história tem a ver com o tempo. Sinto, hoje, que fazia mais sentido fazê-la mais velha e tendo outra experiência de vida.”
A proposta da encenação de João de Brito, levada à cena no Teatro da Trindade, em 2021, e ao Teatro Villaret para uma temporada de verão no ano passado, propunha um assumindo rejuvenescimento das personagens. “Mas quanto mais fazia, mais repetia, mais percebia que era importante estar noutro sítio e fazê-lo com outro tempo e outra experiência. Toda a questão da maternidade… não sei se um dia vou ser mãe, mas acho que ainda não consigo compreender o que é que é isso, e acho que para esta personagem em particular isso é importante.”
A vontade de querer toda e qualquer chance de representar tem na génese a escassez de oportunidades no meio artístico. “Agora há mais castings para espetáculos, mais audições, mas principalmente no audiovisual não há muitas oportunidades para receber pessoas novas”, acusa. “Os realizadores e os produtores não vão às escolas nem aos projetos finais ver os alunos. Eu fui escolhida pelo meu projeto final. Foi uma pessoa que viu e me chamou para uma audição. Mas é raro hoje em dia as pessoas que escolhem, os casting directors, os realizadores, os produtores, os encenadores, irem à procura dos atores jovens. Há muitos anos o Luís Miguel Cintra ia ver os alunos do conservatório e trazia-os para a [companhia] Cornucópia. Isso não existe hoje em dia.”
Tal como muitos atores e atrizes nos últimos meses, também Madalena denuncia “esta espécie de mistura que acontece entre as redes sociais e as figuras públicas e os atores”. “Começa a ser difícil perceber quais são as características de um ator. Um ator pode ser uma figura pública, pode ser um influencer, pode ser essas coisas todas, mas não tem obrigatoriamente de o ser. Quando isso começa a ser um requisito para os castings… Um ator tem de ser bom e as fronteiras dos critérios de escolha começam a ser muito confusas. Começa-se a perder o motivo pelo qual um ator é ator.” Di-lo mesmo sendo a @nenaavelhahiena no Instagram, onde reúne mais de 60 mil seguidores.
“Continuo a acreditar que as pessoas veem as coisas porque elas são boas. E não porque as seguem nas redes sociais.” Mas reconhece os benefícios das ditas. O Instagram é o “maior meio” de divulgação da companhia Urso Pardo. Foi através do Facebook que descobriu o casting para o filme “Ramiro”, partilhado na página da produtora O Som e a Fúria.
Na pequena biografia do seu Instagram já se vislumbra a página do coletivo artístico Casa, ainda sem publicações, que espera criar a seu tempo. “Tenho muita sede de trabalhar com pessoas que acho que ainda não tiveram oportunidade de mostrar o seu trabalho. Não quer dizer que isso vá mudar a vida delas e que isso lhes vai trazer trabalho no futuro, mas quero trabalhar com os meus amigos, quero fazer os meus tachinhos (risos). Se acreditas no trabalho dos teus pares, por que não? Vamos lá fazer coisas.”