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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Todos temos lugar nos filmes de João Canijo: "Não há verdades absolutas, só há realidades"

É o primeiro a apresentar dois filmes em duas competições diferentes em Berlim. “Mal Viver” e “Viver Mal” estreiam-se no festival quarta e quinta-feira, em Portugal em maio. Falámos com o realizador.

São dois filmes ou um só? Nesta entrevista, João Canijo acrescenta mais uma peça ao mistério: há uma série. A dúvida tem razão de existir, o realizador fala muitas vezes no singular ao longo da entrevista, mas há dois filmes: “Mal Viver” e “Viver Mal”. Ambos estreiam-se no festival de Berlim, “Mal Viver” esta quarta-feira, dia 22, e “Viver Mal” no dia seguinte. É a primeira vez que o mesmo realizador apresenta dois filmes nas duas principais competições do festival, o primeiro na Competição Oficial e o segundo na Encounters.

Quando Canijo fala no singular, refere-se à obra. Os filmes são independentes, embora aconteçam no mesmo lugar, no mesmo tempo, com os mesmos atores. Complementam-se, claro, mas mais importante do que isso, dialogam. A ideia de fazer algo assim vem desde “Sangue do Meu Sangue” (2011). Na altura, por razões de orçamento, foi impossível de o fazer. “Mal Viver” / “Viver Mal” refugiam-se no interior de um hotel para contar várias histórias sobre mães (e não só).

Em “Mal Viver” o tema é a ansiedade. O espectador acompanha três gerações de mulheres da família que gere o hotel. As cinco mulheres, interpretadas por Anabela Moreira, Rita Blanco, Cleia Almeida, Madalena Almeida e Vera Barreto, abrem cicatrizes e ruminam sobre rancores de décadas como se não existisse mais ninguém à volta. Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral e Leonor Vasconcelos interpretam os outros corpos que por lá andam, que ouvem e que se fazem ouvir. São também eles que ocupam as três histórias de “Viver Mal” onde os papéis não se revertem: isto é, as mulheres de “Mal Viver” fazem-se ouvir, mas não ouvem necessariamente os hóspedes, porque estão bloqueadas nos próprios problemas.

[o trailer de “Mal Viver”:]

“Mal Viver” e “Viver Mal” podem existir como obras singulares. Dependentes um do outro, formam uma obra de dois filmes em permanente diálogo, onde cenas se repetem, mas planos não. O espectador refugia-se na interpretação do que está a acontecer, um pouco como quando se ouvem os diálogos de “Sangue do Meu Sangue”, onde Canijo fazia as conversas acontecer de modo rápido e em simultâneo — éramos forçados a sentir um dos lados das personagens, a escolher o quê ou quem pretendíamos seguir. Entre “Sangue do Meu Sangue” e o que agora vemos, aconteceu muita coisa — nem que seja o tempo — e o realizador só aperfeiçoou o talento que tem para criar situações vivas, com personagens que se relacionam, não por serem tipos, mas por carregarem traumas que todos sentimos, uns mais que outros, em diferentes momentos e histórias.

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Ambos os filmes têm estreia marcada nas salas Portuguesas em maio. Agora acontece a estreia em Berlim, com expectativa e desejo que “Mal Viver” e “Viver Mal” sejam tão ou melhor sucedidos internacionalmente que “Sangue do Meu Sangue”.

É o primeiro realizador a ter dois filmes em diferentes competições do Festival de Berlim. Como se sente?
Muito bem, confortado. Muito mais sossegado. Foi muito bom para as minhas angústias, a terapia não foi, mas isto foi.

Podem ser filmes para correr bem internacionalmente?
O “Sangue do Meu Sangue” correu o mundo inteiro. Espero o mesmo destes. Não há razão para não acontecer. O feedback mais importante é um estar na Competição Oficial e o outro no Encounters, é exatamente onde deveria estar cada um deles.

Depois de ver os filmes, fui à procura do hotel [Hotel Parque do Rio, no pinhal de Ofir] que serve de cenário. Fiquei fascinado por ainda estar a funcionar. Tem um ar algo abandonado, parece que não está a ser usado tão diariamente.
Ele não está assim tão gasto quanto isso, o hotel está funcional, precisa de algumas recuperações. Mas está funcional. E existe assim porque o dono é arquiteto e é filho do arquiteto que fez o hotel originalmente, mantém o hotel como uma joia.

"Tudo o que aconteceu nas sessões de ensaios é transcrito. Dessa transcrição é que faço a manipulação e a montagem. O que foi dito, foi dito por elas em contexto. Não é naturalista, mas realista. Na rodagem não há improvisação, elas reinterpretam o que tinham dito."

Já conhecia o hotel?
Andámos à procura de vários e deixei este para último. Tinha uma piscina onde os meus pais me levavam quando era pequeno. Era uma piscina que não ficava muito longe do Porto, era um passeio, passávamos lá o dia, as crianças na piscina e os pais a apanhar sol. Tinha muito medo de que o hotel estivesse estragado. Deixei para o fim. E quando lá chegámos, não estava estragado.

Parece que parou no tempo. Digo isto no melhor dos sentidos.
O arquiteto que fez o hotel é um dos arquitetos importantes do grupo de arquitetura do Porto, chamava-se Júlio Oliveira, o filho também se chama Júlio Oliveira, era do grupo do Távora. São ligeiramente mais velhos do que o Siza.

Em alguns dos seus filmes há muita discussão. Lembro-me do “Sangue do Meu Sangue”, fala-se muito alto, há sobreposição, mas entende-se tudo. Nestes filmes isso também acontece, ainda que de forma diferente. Como é que chega a esse nível de detalhe?
Com uma coisa que se chama 5.1, agora chama-se 7.1, no fundo é o Surround, que é o que é usado nos filmes americanos para fazer efeitos de som. Mas é uma coisa que espacializa o som. Numa sala, não na televisão, tu podes seguir as conversas em colunas diferentes, em sítios diferentes. É possível ter essa nitidez nas conversas.

Mas a forma como o texto é trabalhado não tem influência?
Há muito tempo que não escrevo diálogos, os diálogos saem das sessões de ensaio com as atrizes. São longas, durante muito tempo e são todas filmadas. Tudo o que aconteceu nas sessões de ensaios é transcrito. Dessa transcrição é que faço a manipulação e a montagem. O que foi dito, foi dito por elas em contexto. Não é naturalista, mas realista. Na rodagem não há improvisação, elas reinterpretam o que tinham dito.

Neste caso, quanto tempo demoraram as sessões?
Demora sempre… há intervalos, não é tudo seguido, a transcrição demora muito tempo e eu preciso de digerir a primeira fase para ir para a segunda. Mas ao todo, uns quatro, cinco meses, espaçados em um ano e tal, quase dois anos.

"O 'Mal Viver' podia passar-se num hotel vazio. Ter clientes valoriza, dá-lhe outro dramatismo, elas não estão sozinhas e portam-se como se estivessem sozinhas. É mais constrangedor. Isso ajuda"

O texto nasce dessas sessões?
O texto nasce orgânica ou racionalmente. Temos uma base de argumento e começamos por discutir os personagens. Ao discutir os personagens e as relações entre eles, vão saindo diálogos. Na segunda fase já tenho uma estrutura de argumento com parte de diálogos. Nas discussões das cenas, de porquê dizerem aquelas coisas, de se portarem daquela maneira e do porquê de gostarem ou não umas das outras, vão saindo… quase como estou a fazer agora. Para explicar uma coisa, exemplifico com uma frase. As coisas vão saindo assim. Quando tenho um argumento dialogado, as cenas são todas improvisadas outra vez. Dessas improvisações é que vêm os diálogos finais. Muitas vezes não é tudo da improvisação, há coisas que havia antes e que eram boas e mantenho. Mas faço uma montagem, e como é lógico, uma improvisação não é económica, nem concentrada, uma cena de improvisação de dois minutos pode ter dez ou doze. Depois é uma questão de edição.

Os dois filmes comunicam em permanência. Como vi o “Mal Viver” primeiro, as conversas delas, em fundo, são dominantes ao ver o “Viver Mal”. Porque quis que os dois filmes dialogassem?
É como na vida. Por muito que as pessoas vivam numa bolha, nunca vivem de facto numa bolha, vivem num mundo onde se passam outras coisas e onde os seus dramas são relativos. Dou sempre o exemplo do café: a gente está no café, está com alguém no café a conversar, mas pode estar atento à conversa da mesa ao lado. E a pessoa com quem estamos a conversar pode estar atenta a outra conversa de outra mesa, que se está a passar ao mesmo tempo. Por um lado, relativiza o drama dito central, por outro lado também o haver interferência o torna mais premente. No fundo, não existe verdade, existe realidade e a interpretação da realidade é sempre uma escolha. As escolhas não têm de ser impostas. Não faz sentido impor a escolha de um ponto de vista, porque essa interpretação será sempre diferente do que a gente tentou impor.

No “Mal Viver” ouvem-se os hóspedes. Depois, no “Viver Mal”, o que se ouve dos hóspedes corresponde ao que é entregue. Em alguns dos filmes anteriores, como “Sangue do Meu Sangue” ou “Fátima”, fez mais do que uma versão. Já não consegue fazer só um filme?
Este caso é diferente. Mas a ideia de eles dialogarem é a de um perturbar o outro. Houve uma atriz que foi ver o “Viver Mal” pela primeira vez e disse que tinha ficado imensamente perturbada porque queria era seguir a história das outras. É essa a ideia, há um outro mundo além do nosso, mais pequeno, a perceção da realidade é múltipla, não tem de ser condicionada nem centrada. Nestes filmes foi diferente dos outros, porque o “Mal Viver” podia passar-se num hotel vazio. Ter clientes valoriza, dá-lhe outro dramatismo, elas não estão sozinhas e portam-se como se estivessem sozinhas. É mais constrangedor. Isso ajuda, dá-lhe outro peso, profundidade. Mas a hipótese de fazer a série, que é muito mais dinheiro para o filme, não apareceu de imediato, só quando o processo estava muito adiantado. Só depois de estar a fazer as coisas que seriam para uma série de televisão — as personagens do “Viver Mal” seriam para uma série de televisão — é que percebi que era para outro filme. Independentemente da série. Uma série é outra coisa, e tivemos o cuidado de tentar evitar que planos se repetissem de um filme para o outro, e que eu me lembre só há dois casos onde se repetem, e repetem-se em momentos diferentes do plano. Não é exatamente a mesma coisa.

"Com a idade, cada vez me interessam mais as coisas que são mesmo importantes para mim. Perdi o pudor de falar da minha classe social. No caso do “Mal Viver” é a ansiedade, a ansiedade que nos impede de viver, muitas vezes."

Vai existir uma série?
Já existe. É como se fosse uma salada russa, é tudo misturado.

Não tenho os filmes dos anos 1990 muito presente, vi-os muito jovem…
Também não vale a pena, quando muito, o único com alguma graça é mesmo o primeiro [“Três Menos Eu”, 1988], por ser um filme tão infantil e tão ingénuo. Os outros dois não vale a pena, então o “Sapatos Pretos” [1998] não vale mesmo a pena.

Esse foi o primeiro que vi.
O “Sapatos Pretos” é o filme que recuso que vá às retrospetivas [risos]. Mas tem uma explicação: por causa das circunstâncias da época, era muito difícil fazer filmes em Portugal. Trabalhei em televisão vários anos. Quando fui fazer o “Sapatos Pretos”, estava formatado em televisão, meios diferentes formatam, é impossível não formatar.

Já o “Noite Escura” [2004]…
Nesse os diálogos ainda são mais importantes do que neste. Todas as conversas das meninas podem ser seguidas independentemente da ação principal. Elas saem de campo, saem de quadro e as conversas continuam, mas deslocam-se. Se o espectador quiser, pode continuar a segui-las. São várias ao mesmo tempo, ainda por cima. Mas só se percebe isso num cinema com bom som.

Tem sido um objetivo seu aperfeiçoar essa dinâmica, como fez no “Sangue do Meu Sangue”?
O “Sangue do Meu Sangue” [2011] tem uma história por detrás, tem a ver com o “Mal Viver” / “Viver Mal”, eram para ser dois filmes à partida. Sendo que as cenas na casa da família eram as mesmas, mas filmadas de pontos de vistas diferentes. Mas não houve dinheiro para ter mais duas ou três semanas de rodagem que eram necessárias. As cenas da casa são para aí 30% do filme e não houve dinheiro para filmar outra vez 30% do filme. Conceptualmente, eram dois filmes.

[o trailer de “Viver Mal”:]

No “Viver Mal”, estou certo se encontrar uma certa decadência da burguesia, especialmente em Lisboa?
No “Viver Mal” isso é assim, mas é assim porque é produto da adaptação e dos ensaios com os atores: são peças do Strindberg. Uma delas conhecida, as outras nem tanto. “O Pelicano” é muito conhecida. Na discussão com os atores e na construção das personagens foi surgindo isso, essa decadência. E no “Mal Viver” também, mas é mais uma coisa… agora com a idade, cada vez me interessam mais as coisas que são mesmo importantes para mim. Perdi o pudor de falar da minha classe social.

E que coisas importantes são essas?
No caso do “Mal Viver” é a ansiedade, a ansiedade que nos impede de viver, muitas vezes.

Mas sente isso, pessoalmente?
Tem dias.

Como passa isso para um filme no contexto de família. Ajuda trabalhar com as mesmas atrizes?
Ajuda. Como aquela frase: a psicanálise não fez grande coisa pela minha neurose, mas fez muito pela minha escrita. Ora, bizarramente, eu já estava a fazer terapia para me lembrar do que não me lembrava. Houve essa investigação. Mas a senhora [psiquiatra] sabia que aquilo não era uma terapia normal. Não a estava a enganar.

Isso foi quando?
2017, 2018, por aí.

Porque é que trabalha sempre com as mesmas atrizes?
São mais ou menos as mesmas, vão sendo acrescentadas.

"Conheço-as, tenho confiança nelas, elas têm confiança em mim e cria-se uma espécie de família. Quando começo a pensar nos projetos, já estou a pensar nelas. Não escrevo os projetos e depois vou à procura das atrizes para aquele projeto. É sempre ao contrário, começar pelas atrizes e depois descobrir o projeto."

Sim, e depois fica com elas.
Agora no próximo filme já vai ser acrescentada a Madalena Almeida. Porque as conheço, porque tenho confiança nelas, elas têm confiança em mim e cria-se uma espécie de família. Quando começo a pensar nos projetos, já estou a pensar nelas. Não escrevo os projetos e depois vou à procura das atrizes para aquele projeto. É sempre ao contrário, começar pelas atrizes e depois descobrir o projeto.

É quase natural colocar a Anabela Moreira e a Rita Blanco como mãe e filha?
Sim [risos]. A Cleia [Almeida] já fez muitas vezes de filha da Rita, pelo menos três.

A Leonor Silveira e a Beatriz Batarda parecem transformadas. Confesso que só no final de “O Pelicano” é que percebi que era a Leonor Silveira…
Foi? [risos]

Não sei porquê, talvez por não associar a personagem à atriz.
Conheço a Leonor Silveira desde que ela tem 17 anos e associo-lhe aquela personagem. As personagens saem sempre de dentro delas, não são exteriores.

Mas a Beatriz não costuma ser assim…
Faz papéis mais torturados, vá-se lá saber porquê. Eu próprio lhe dei um papel típico há muitos anos, um boneco há muitos anos. Mas aqui não é um boneco, é uma personagem.

Porquê o foco tão grande nas mães em “Viver Mal”?
Nasce de uma reaproximação que fiz ao Bergman. E fazendo uma reaproximação ao Bergman, logicamente se faz uma reaproximação ao Strindberg, porque foi o mentor espiritual do Bergman. Quando estava a montar o “Fátima”, andei a ler o Strindberg todo, e a primeira peça que li era uma peça pouco conhecida, mas das importantes, chamada “Os Credores”. Depois disso fui lendo e vi que tinha muitas coisas em comum com ele, antes dele ficar esquizofrénico. Depois, já não tenho grande coisa em comum — ainda não estou esquizofrénico. E as mães têm muita importância, também têm para mim…

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Gosta de pensar as famílias em Portugal?
Este filme já não é tanto sobre Portugal. Uma descoberta que fiz em “Sapatos Pretos” é que havia um país real escondido do qual não se falava, que se calhar era mais interessante e mais violento do que aquele país que se falava. E depois fui descobrindo coisas sobre isso e interessou-me. Tinha uma ideia, que agora já não tenho, mas há muita gente que assim diz, que as classes baixas, como não têm tempo, estão permanentemente a lutar pela sobrevivência e não têm muito tempo para elaborar sobre os traumas, sentimentos. Portanto, as coisas são imediatas e primárias, primárias no sentido de serem mais imediatas. Isso sempre me interessou, pela clareza das relações humanas. Na burguesia as relações humanas são muito menos claras, acho.

E têm mais códigos?
Exato. Mas essa parte de Portugal matei-a no “Fátima”. Está tudo resolvido, não tenho nada a ver com isso.

Não se fala muito de ansiedade em Portugal. No “Mal Viver” não se fala disso realmente, vão-se passando as culpas. A Anabela culpa a mãe, a mãe culpa a Anabela por ser como é…
Mas é assim que acontece nas famílias. As avós vão estragar as vidas das filhas e as filhas vão estragar a vida das netas. E infinitamente, por aí fora.

Até surgir alguém sóbrio o suficiente para resolver o problema.
Duvido.

Quando acabou o “Fátima”, ficou exausto?
Fiquei. Era uma equipa muito grande, eram muitas atrizes e foi uma rodagem infernal, com uma equipa grande de mais naquelas estradas horríveis, terríveis dos caminhos de Fátima. Nada foi improvisado, estava tudo determinado e definido, mas cada vez que se mudava de plano, cada vez que se fazia uma remontagem das coisas num sítio, demorava horas que nunca mais acabavam. Foi um inferno. Agora é tudo filmes fechados no mesmo sítio. Isso foi uma razão prática para o “Mal Viver” ser num hotel.

"No 'Fátima' não consigo explicar o tema numa palavra, neste consigo, é ansiedade, no 'Fátima' tenho de fazer uma construção, tenho de falar no conflito entre a procura do transcendente e a natureza humana, sendo que a natureza humana ganha."

Não sabia onde se estava a meter?
Sabia, mas não sabia até que ponto. Sempre insisti numa equipa com metade do tamanho, mas tive uma equipa imensa.

Isso deveu-se a quê?
Foram acrescentados, foi chegando gente, mais gente e ficou uma equipa monstruosa.

É o que dá filmar sobre Fátima.
É.

Nunca mais se mete numa dessas?
Não, não…

Há pouco falava da ansiedade, foi isso que o puxou para estes dois filmes?
Não, aí foi uma questão prática, de fazer um filme em condições que controlasse completamente. E isso consegui. No “Fátima” tinha condições que não controlava minimamente. Tenho uma história muito engraçada. Pediu-se autorização para filmar no santuário com aqueles 300 mil figurantes de graça. O Santuário nunca mais respondia, depois respondeu a dizer que não… e eu fiquei atrapalhado e andámos a filmar às escondidas. E, depois numa noite, fui ler a carta outra vez, e percebi que era uma carta da igreja, neste caso dos jesuítas, e no fundo a carta dizia: a gente não deixa, mas vocês façam o que quiserem. O que é certo é que nunca ninguém nos chateou por filmar lá.

Aí correu bem.
Sim, era bem mais controlado.

Quantas vezes fez o percurso?
Fiz uma vez, mas fiz um curto, de Coimbra, para perceber o que era. Eram 80 kms. Mas elas fizeram as peregrinações reais. A Anabela e a Vera Barreto fizeram a peregrinação que está no filme, com as condições, aquilo tudo. O senhor que organizava essa peregrinação era o decorador, era ele que montava o acampamento, ele é que sabia. As coisas eram todas dele, era tudo real.

"Uma atriz que foi ver o “Viver Mal” pela primeira vez disse que tinha ficado imensamente perturbada porque queria era seguir a história das outras. É essa a ideia, há um outro mundo além do nosso"

Nestas sessões tão intensas, sendo “Fátima” o extremo, o elenco chateia-se consigo?
Então não… então não…

Mas voltam?
São discussões bem intensas, para os dois lados, para o bem e para o mal. E entre elas…

Mas isso ajuda-o?
Teoricamente sim, mas na prática é esgotante. Quando era mais novo aguentava bem, agora não aguento tão bem.

Vai mudar a forma de fazer os seus filmes?
Não, mas vou tentar criar condições… condições para não fazer outro “Fátima”, aquilo foi difícil e esgotante para elas.

E nestes dois filmes?
Houve questões, mas não me fizeram emagrecer.

Há pouco falou de “Mal Viver” também ser uma série. Quando partiu para este projeto existia só um filme?
Existia um filme, mas já com a possibilidade de o hotel ter clientes. E se tivesse clientes, quais seriam. Mas sempre com a possibilidade de estar vazio, uma espécie de “Shining” sem terror, não é.

Saiu da estrada para fazer um filme num hotel.
O “Fátima” era um filme de conjunto, coral, o espectador é que tinha de escolher quais eram os protagonistas que queria seguir. Como a peregrinação da Anabela foi a estrutura do filme, ela ganhou uma certa preponderância. Aqui não, já sabia quem eram as personagens principais e o tema é muito mais concreto do que no “Fátima”. No “Fátima” não consigo explicar o tema numa palavra, neste consigo, é ansiedade, no “Fátima” tenho de fazer uma construção, tenho de falar no conflito entre a procura do transcendente e a natureza humana, sendo que a natureza humana ganha.

Interessa esta ideia de escolha?
Absolutamente.

Falou agora nas personagens, há pouco falou no som.
Interessa-me absolutamente, e o exemplo que dou sempre é o “Hamlet” e o monólogo do “To be or not to be”, é o que cada ator quiser e o que cada espectador quiser. Não há possibilidade de haver uma explicação, só há interpretações. Interessa-me possibilitar as interpretações.

"A ideia é deixar ao espectador o máximo de liberdade e imaginação possível. E condicioná-lo o menos possível. O condicionamento é uma coisa sem sentido, um contrassenso, por muito que se condicione, a interpretação vai ser sempre diferente."

De onde vem isso?
É uma coisa filosófica, vem muito das minhas leituras de Schopenhauer e agora estou a aprofundar com outras leituras. Passo a vida a dizer que a verdade é a minha verdade, não há verdades absolutas, só há realidades, não há verdades. É daí que vem. Há uma realidade e a verdade dessa realidade é individual.

E aprofundou essa possibilidade de interpretação ao tornar os dois filmes dialogantes?
Sim.

No processo descobriu como tornar isso melhor?
O processo é antigo, já tinha essa intenção no “Sangue do Meu Sangue”, neste foi fácil de concretizar. Quando o Rafael [Morais] abre a porta para sair do quarto da Leonor Silveira, no segmento deles, há uma série de pessoas a passar no corredor. O que elas estão a fazer? Fica à interpretação e imaginação de cada um, é essa a ideia. E no “Mal Viver” também, quando a Anabela entra no quarto da Cleia e o Rafael sai do outro quarto, ficamos a pensar no que ele está a fazer. A ideia é deixar ao espectador o máximo de liberdade e imaginação possível. E condicioná-lo o menos possível. O condicionamento é uma coisa sem sentido, um contrassenso, por muito que se condicione, a interpretação vai ser sempre diferente.

Como seria o filme sem os hóspedes? A intrusão é importante, os hóspedes ouvem-nas e vice-versa.
Isso enriquece o filme, haver intrusos. Mas se não houvesse clientes seria uma espécie de “Lágrimas e Suspiros” [filme de Ingmar Bergman].

Viu “A ilha de Bergman”?
Não.

A realizadora [Mia Hansen Love] a dado momento descreve-o como um filme de terror sem catarse.
Ah, certo [risos]. Mas eu não sou mauzinho para elas, elas dizem que sim, mas eu acho que não.

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