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Gravidez. O estado de graça nem sempre tem assim tanta graça

Dos pés inchados de Kim Kardashian à nova série da BBC em que as mulheres são tratadas como simples parideiras, passando pela literatura, o ideal da gravidez adorável é cada vez mais questionado.

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Kim Kardashian e a gravidez não-perfeita

“Foram os melhores momentos da minha vida e eu só quero que tu tenhas a mesma experiência”. Chris Jenner, a mãe da família Kardashian, está a falar da gravidez (teve seis filhos). E a pessoa a quem ela diz isto, durante um episódio do programa “Keeping Up With the Kardashians”, é a filha Kim, a mais famosa de todas, e que naquele momento está com os pés inchados, com dores agudas, infeliz, enquanto passa pela sua primeira gravidez.

Não foi só na sua própria série de televisão que Kim Kardashian verbalizou aquilo que normalmente não se verbaliza: “Odeio isto.” Também escreveu no blogue: “A gravidez está a ser a pior experiência da minha vida.” E também foi exposta pela sua gravidez “desajustada” através dos meios de comunicação social, que começaram uma disputa para conseguir a pior e mais agressiva imagem do seu estado de pouca graça: porque engordou muito, porque continuou a vestir roupa justa, porque não deixou de usar saltos apesar dos pés gordos, porque às vezes comia doces.

E mesmo agora, que já vai para o terceiro filho, numa altura em que teve de optar por uma barriga de aluguer por questões de saúde, Kim Kardashian continua a ser julgada pela opinião pública, que diz que só seguiu esta via por vaidade, e, consequentemente, continua a ser um símbolo, mesmo que involuntário, daquilo que se espera que se traga para público quando se expõe uma gravidez ao mundo e das consequências de fugir à norma.

“Hoje em dia, a gravidez e a maternidade tornaram-se das principais formas de uma mulher famosa chamar a atenção. O ‘alto’ na barriga tornou-se, como se disse no The New York Times, a nova mala Birkin: é ‘querido’ e ‘adorável’ e ‘feminino’, algo que se veste com gosto, que se mostra nas fotografias”, lembra Anne Helen Peterson, doutorada em Estudos dos Media, que publicou recentemente o livro Too Fat, Too Sluty, Too Loud: The Rise and Reign of the Unruly Woman, no qual escreveu um capítulo sobre o caso da gravidez de Kim Kardashian, partilhado também no BuzzFeed.

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“Ao transgredir as fronteiras da ‘gravidez adorável de celebridade’, ela chamou a atenção para as normas regressivas e conservadoras sobre como as mulheres, famosas ou não, devem apresentar a sua gravidez em público.”

“Hoje em dia, a gravidez e a maternidade tornaram-se das principais formas de uma mulher famosa chamar a atenção. O 'alto' na barriga tornou-se, como se disse no The New York Times, a nova mala Birkin: é 'querido' e 'adorável' e 'feminino', algo que se veste com gosto, que se mostra nas fotografias.”
Anne Helen Peterson

De tabu a espectáculo, o corpo grávido

Houve um tempo, há algumas décadas, em que a gravidez era algo que se escondia. As mulheres mais ricas ficavam fechadas em casa até o bebé nascer, por exemplo, e não havia sessões de fotos com a barriga de fora para partilhar no Facebook. Para não ir tão longe, quando Demi Moore apareceu nua e grávida na capa da Vanity Fair, em 1991, alguns supermercados só vendiam a revista com a capa embrulhada e escondida, como se costumava fazer com a Playboy, lembra Anne Helen Peterson no mesmo capítulo do seu livro. E, por oposição à visibilidade que sempre deu ao seu corpo, há muito poucas fotografias de Madonna quando passou pela sua primeira gravidez.

Além disso, só muito recentemente a gravidez ganhou a atenção do mercado, que começou a apostar nas roupas de grávida, nos acessórios, tornando-se um negócio de milhões. Quando se comparam as gravidezes de duas princesas, Diana e Kate Middleton, a diferença é visível: Diana teve de usar vestidos largos, pouco elegantes, enquanto Kate foi elogiada pelo bom gosto das suas roupas de designer, feitas à medida, apesar se ter falado o menos possível sobre ter sido hospitalizada por ter sofrido de enjoos matinais agudos no início da gravidez.

Quando Demi Moore apareceu nua e grávida na capa da Vanity Fair, em 1991, alguns supermercados só vendiam a revista com a capa embrulhada e escondida.

“O tabu do corpo grávido transformou-se entretanto num espectáculo que pode ser estilizado, explorado, escrutinado, e interpretado como símbolo do sucesso ou insucesso de uma mulher”, acrescenta Anne Helen Peterson. Começaram a existir os meios, as roupas, as aulas de ioga e os livros de receitas para alimentar o ideal de beleza da gravidez e, por consequência, da maternidade, e isso transformou-se numa imposição, em algo que só está certo se acontecer de acordo com a norma.

“Não há inchaço, não há hemorróidas, toda a gente se sente incrível, e toda a gente fala sobre sentir-se incrível, e toda a gente sabe que te sentes incrível. A gravidez inadequada de Kim Kardashian pelo menos abalou essa ideologia. Ao falar sobre o seu desconforto, ao expor os detalhes na televisão, e até ao optar por se vestir de uma forma que fazia com que a imprensa a tentasse humilhar, passou uma mensagem: se uma das mais belas e valiosas mulheres do mundo não consegue ter uma gravidez perfeita, talvez esteja na altura de repensarmos essa ‘perfeição’ e as suas conotações em relação à docilidade, feminilidade ou bom gosto.” E nem se estão aqui a referir as atuais expectativas em relação ao tempo que uma mulher deve ter para recuperar “a forma” depois da gravidez, recentemente reacendidas pela fotografia em que Irina Shayk exibe o seu corpo pós-parto em cima de uma insuflável na piscina, praticamente pronta para entrar num desfile da Victoria’s Secret.

“Estava sempre à espera de que aquilo caísse de dentro de mim.” O que diz a literatura

Não é só na imprensa, e no caso das celebridades, que se tem provocado o debate sobre esta mudança de perspetiva – e de expectativas – em relação à gravidez e à maternidade. Mais do que o papel desempenhado por blogues e outras manifestações mais informais, a própria literatura começou a abordar o tema de outra forma, e até já se fala de um sub-género literário com cada vez mais adeptos: a literatura de maternidade – que não é o mesmo que falar de livros de não-ficção e de auto-ajuda sobre maternidade.

Quando a maternidade não é assim tão cor-de-rosa

O caso mais bem sucedido, e o mais mediático, é o de Elena Ferrante, a escritora-mistério italiana que se transformou em bestseller pelo mundo todo com uma tetralogia sobre duas amigas que crescem nos subúrbios de Nápoles. As suas personagens, de forma muito crua e direta, questionam a maternidade, conseguem problematizá-la como algo que interfere com as suas possibilidades, e nem sempre adoram mais os filhos do que a si próprias, e esse foi um dos motivos para tantas mulheres irem comprar os livros.

“Elsa é que começou a enervar-me, porque a bonequinha doce que era estava a transformar-se num ser de feições desfocadas, de quem a professora se estava sempre a queixar, classificando-a como matreira e violenta, enquanto eu própria, em casa ou na rua, ralhava com ela a toda a hora, porque arranjava brigas, se apropriava das coisas dos outros, e quando tinha de as devolver, partia-as”, diz a protagonista, Lenú, no livro História da Menina Perdida, sobre uma das filhas, pouco depois de se ter referido também à sua mãe como “persecutória”, como alguém em quem não se queria tornar.

Elena Ferrante, a mais mediática das escritoras que questionam a maternidade.

Há mais escritoras. Alguns destes livros chegaram nos últimos anos a Portugal, como Departamento de Especulações, de Jenny Offill, também publicado pela Relógio d’Água, que expõe a angústia e desgaste de uma mulher posta perante a sua vida doméstica e a maternidade, ou o mais recente O Fim de Onde Partimos, de Megan Hunter, publicado pela Elsinore, um livro fragmentado em que uma voz feminina diz, entre muitas outras coisas, “quando estava grávida, estava sempre à espera de que aquilo caísse de dentro de mim, que caísse na água de uma casa de banho pública ou que escorresse pelas minhas calças abaixo um dia, no trabalho”.

Correr o risco contra a desonestidade da cultura feminina da maternidade

Um dos casos mais emblemáticos terá sido o da escritora britânica Rachel Cusk, que esteve recentemente em Portugal a lançar Contraluz (Quetzal), mas que há 11 anos foi muito atacada publicamente após o lançamento de A Life’s Work, um livro sobre o lado mau de ser mãe. “Nessa altura, não havia uma cultura de honestidade na forma como as mães da minha idade lidavam umas com as outras ou consigo próprias, nem havia fóruns públicos onde as atitudes convencionais em relação à maternidade fossem desafiadas, com exceção de alguns trabalhos de escritoras feministas que não eram lidas pela maioria das mulheres”, explica ao Observador.

Há 11 anos, Rachel Cusk foi atacada publicamente pelo lançamento de “A Life’s Work”, um livro sobre o lado negativo de ser mãe. © Leon Neal/AFP/Getty Images

“Depois de ter passado a adolescência e juventude envolvida com o discurso do feminismo, a maternidade surgiu-me como um enorme passo atrás.” O seu livro não foi apresentado como ficção, e foi isso que ofendeu a opinião pública. Há 11 anos, Rachel Cusk estava mais sozinha neste fuga ao relato cor-de-rosa e abençoado. “Não quis provocar, mas não era possível desafiar a desonestidade da cultura feminina da maternidade sem correr o risco de ser honesta em relação a mim.”

E o risco teve consequências, ataques públicos, revolta nos fóruns, como recorda num texto escrito no britânico The Guardian. “Não estava preparada para tanta raiva, e demorei muito tempo a recuperar. Os ataques não eram intelectuais nem particularmente inteligentes, por isso nunca senti que afetassem o meu trabalho: só vieram confirmar aquilo que eu já sabia sobre as formas como as pessoas agem para preservar o seu engano. Aquilo que me enfureceu foi a possibilidade de alguma nova mãe ler as coisas horríveis que se disseram sobre mim e concluir que não pode ser honesta sobre os seus sentimentos.”

Hoje em dia, apesar de tudo, a realidade já é outra, como a própria Rachel Cusk admite, e há uma nova abertura para esta honestidade que lhe pesou nos ombros. Ainda esta semana, por exemplo, chegou às livrarias portuguesas o livro Mães Arrependidas (Bertrand), em que a investigadora Orna Donath dá voz a várias mulheres que foram mães mas que, por diferentes motivos, preferiam não o ter sido. E não o escondem.

O novo livro “Mães Arrependidas” dá voz a mulheres que preferiam não ter tido filhos.

A distopia que trata as mulheres como gado

Se já está nos reality shows e na vida das Kardashians, e se além dos blogues e da não-ficção já há muita literatura e romances como os referidos, é expectável que esta perspetiva mais cinzenta sobre a gravidez e a maternidade se espalhe pela cultura popular. Um bom exemplo disso é o sucesso da nova série da BBC, The Handmaid’s Tale.

A distopia criada pela escritora Margaret Atwood em 1985, um livro icónico do feminismo que está publicado em Portugal com o título A História de Uma Serva (Bertrand), fala de uma realidade onde a sociedade é controlada por um regime de extrema-direita que trata as mulheres como gado, e que as usa como instrumentos de procriação para tentar combater uma crise de fertilidade.

Foi adaptada para televisão, com interpretações de Elisabeth Moss (Mad Men) e Joseph Fiennes, e além disso voltou a colocar o livro no top de vendas da Amazon – curiosamente, e de acordo com a editora original de Atwood, as vendas do livro já estavam a crescer desde a eleição de Donald Trump.

Elisabeth Moss, protagonista da nova série da BBC “The Handmaid’s Tale”, e também responsável pela adaptação do livro original de Margaret Atwood.

“As pessoas têm de acordar, e estão a acordar. Isso é uma das coisas positivas a retirar dos eventos recentes nos EUA. Mas a luta ainda não acabou. É muito triste que as pessoas consigam estabelecer tantos paralelos entre a série e aquilo que acontece no mundo”, disse a protagonista da série, que é também responsável pela adaptação, numa entrevista à “GQ”.

“Para mim, esta ideia de sobrevivência que está presente na série tem tudo a ver com a possibilidade de podermos fazer com o nosso corpo aquilo que queremos fazer.” E isso, voltando a Kim Kardashian e à analise de Anne Helen Petersen sobre a exposição da sua gravidez, também significa que “a questão de ser uma mulher em público, mesmo para uma mulher que tem uma audiência de milhões, continua a ser uma questão que diz respeito unicamente a essa mulher”.

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