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Há quem viaje para surfar. E se for também para ajudar?

Foi sozinha para a Indonésia, passou por histórias "do arco da velha", achou que não voltaria e esteve na Índia a ensinar crianças a surfar. Aos 21 anos, Carolina quer mudar o mundo através do surf.

A terra era confusa, fugitiva aos padrões a que estava habituada e, por isso, mantinha-a com um pé atrás enquanto, sozinha, tentava dar passos em frente na descoberta. Quase tudo ali lhe parecia estranho: o “cheiro desagradável” do lixo que não era recolhido, mas queimado, todos os dias, ao final da tarde, ou os homens que “não ajudam as mulheres” e que, indicando para um lado e rindo depois, a faziam seguir para o lado oposto, quando os sondava por direções para sítios onde dormir. Não era fácil para uma rapariga de 20 anos andar sem companhia e a fazer-se à descoberta em Lombok, uma das muitas ilhas da Indonésia. Mas Carolina Pereira lá foi.

Um dia, cansada de tanta preocupação e desventuras no meio da aventura, decidiu tirar um tempo e fez o que para lá fora fazer — pegou na prancha, entrou no mar e surfou. Já a tinham avisado que Lombok “não era tão tranquilo como Bali”, outra das ilhas, recheada de ondas que, com os anos a passarem, se abriu ao turismo ocidental e serenou os hábitos muçulmanos. “Se em Bali dava para estar na água de biquíni, ali nunca na vida”, diz, hoje a rir-se, enquanto acelera o discurso e gesticula para avivar a história, à mesa de um café. Mesmo mornas como poucas, Carolina entrou nas águas de Lombok com uns calções e uma t-shirt. Quando delas saiu e já na areia estava a despir-se com uma toalha, “apareceu um gajo” que a agarrou no braço. Queria que fosse “atrás dele para o ver a masturbar-se.

“Cheguei ao aeroporto com uma camisola com decote atravessado, de calções e havaianas. Os taxistas começaram todos a regatearem-me, literalmente, a pagarem-me para ir no táxi deles.”

Mas Carolina, no meio do alarmismo, usou a prancha que tinha encostada à perna para lhe dar “uma grande massa”. Depois usou a mão para “um chapadão na cara”, antes de dizer que “não era da terra dele” e de sair dali. “Tentei ir calmamente, mas por dentro estava a tremer”, admitiu, ao embrulhar uma entre tantas “histórias do arco-da-velha” que trouxe da visita, em setembro do ano passado, à Indonésia. Esta, passada na praia, aconteceu, em parte, pelo motivo que levara Carolina a viajar até ali: o surf. A mesma vontade que, meses antes, já a fizera criar a organização com que hoje pretende mudar o mundo através do surf — a My Destiny, que já vai com mais de 11 mil seguidores no Facebook. “Ter um impacto positivo antes, durante e depois da viagem. Era um conceito que queria criar”, admite ao Observador, a meio da conversa de café, ao falar da ideia que, antes da viagem, lhe germinou na cabeça, mas que só na Indonésia brotou para ganhar força.

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Quando lá chegou o tempo não foi muito até começar a reparar na máquina já montada, sobretudo nas ilhas Mentawai ou em Bali, para acomodar quem lá chega com uma prancha debaixo do braço. “São um paraíso do surf, há montes de barcos uma indústria cara, de produtos premium, que estão ali a rodar à disposição dos surfistas, dos turistas do surf”, começou por desenhar, pegando no pincel e compondo o retrato dos locais de um país onde o turismo se juntou ao mais famoso desporto de ondas para chamar visitantes. “Mas nada daquilo vai parar à comunidade local, não tocam nem cheira em nada”, resume, dando um tom negro ao cenário. “Então pensei: que hipótese havia para as pessoas que viajam pelo surf terem um impacto social nos locais onde vão? Porque se uma pessoa puder ajudar, até ajuda. E a única oferta que existe é pagar para se fazer voluntariado”, lamenta, para enfiar a tal imagem na moldura do que diz passar-se na realidade.

Ali, nas centenas de ilhas indonésias, os surfistas aterram ano sim, ano sim, à caça de ondas e, por isso, a indústria do turismo do surf vai crescendo. E o que a My Destiny faz é levar parte da pegada de cada viajante até às comunidades locais — antes, durante e depois da viagem. O antes consegue-se com a “percentagem do preço da viagem reverte” para uma ONG (Organização Não Governamental) local. O durante consegue-se pela logística de, por exemplo, dedicar três dos 10 dias de uma viagem “a viver numa floresta virgem, onde os surfistas ficam com uma tribo indígena, que está disposta a acolhê-los porque percebem que estão lá para ajudar”, ou a darem aulas se surf a crianças. E o depois aparece com a organização a garantir um follow-up, como Carolina lhe chama, fazendo com que os outrora viajantes “recebam novidades do que se vai passando com os miúdos” e até tenham “sessões de Skype com eles”.

Enquanto os outros surfistas viajantes dormiam em barcos ao lado das ondas, Carolina estava em terra, a pernoitar com uma família local. Depois ia de canoa para o pico onde quebravam as ondas

Carolina Pereira

A organização, em suma, funciona como “uma agência de viagens”, que cria um plano, desenha itinerários e indica tarefas para que cada viajante tenha “um impacto positivo” no local onde aterra. Porque o normal, explica, é dividir os dias de uma viagem destas entre o estar dentro de água a surfar e o pernoitar num barco, à espera que as ondas apareçam.

Precisamente o contrário do que Carolina fez, em setembro, e do que as pessoas farão, um dia, caso confiem à My Destiny as rédeas de uma viagem. “Nas Mentawai o normal é andar em boat trips, mas eu fiquei em terra, com uma família local”, conta, ao recordar que, na altura, recorreu à Liquid Future, uma ONG, para dar o tal impacto à sua viagem. “Ia surfar de canoa, com os putos, e ao final do dia, no por do sol, quando as pessoas começavam a falar no pico [sítio, no mar, onde as ondas quebram e os surfistas se concentram para as apanhar], perguntavam-me para que barco ia e qual era o capitão”, lembra, antes de exemplificar a surpresa nas respostas que recebia: “Mas o quê? Estás sozinha? E em terra?”

Algo pelo qual as pessoas que se inscrevam na viagem às ilhas Mentawai, organizada pela My Destiny, poderão passar. A aventura será algures “entre agosto e o final de outubro” e custará à volta de 2.500 euros, um preço, admite Carolina, que “não é bem para o bolso dos portugueses”, que por isso “costumam ir mais às Maldivas”, para onde “o voo é mais barato”. As inscrições, para já, “não são muitas”, e as que apareceram vieram sobretudo de países como a Noruega, a Suíça ou a Alemanha. Além da viagem à Indonésia, Carolina e os restantes três elementos da organização têm planeada uma viagem em Portugal Continental, uma para os Açores e outra para a Madeira. Todas com pelo menos um dia dedicado a ajudar uma ONG. As viagens, contudo, não são a prioridade que faz tique-taque na cabeça de Carolina — “a prioridade é o financiamento” e tornar a My Destiny sustentável. Poderá não faltar muito, já que a fundadora diz que poderá estar para breve o apoio de uma empresa nacional.

Por enquanto ainda tudo sai “do bolso” dos “quatro miúdos”, entre os 20 e os 22 anos, “todos com um trabalho além deste”. É por isso, lamenta Carolina, mas sem tristezas, que “o site está em standby” — porque “depende do dinheiro” que não há. “E sem um site a funcionar também fica difícil vender as viagens”, justifica, dando a volta a um ciclo que só deixará de ser vicioso quando a cura dos euros aparecer. Até lá, e enquanto espera, a organização vai fazendo o que pode para, através do surf, ajudar a curar outros problemas. Foi por isso que, em fevereiro, viajou até à Índia, a convite de um festival de surf local que, além do trabalho da My Destiny, terá reparado na curta-metragem que juntou os pedaços de filme que Carolina foi gravando na Indonésia. Intitulado “My Destiny: Stuck In Paradise”, a curta também já vai fazendo a própria viagem, entre festivais de cinema de surf no Brasil, na Austrália ou na Costa Rica.

Diz-se que ajudar é fácil assim que a vontade se sintoniza para o fazer. Mas por lá, em Puri, capital do estado de Odisha, uma das regiões mais pobres da Índia, na costa este do país, foi complicado fazê-lo mesmo quando a vontade era muita. Primeiro, porque os olhos e a mente nunca se chegaram a habituar à “miséria à séria” que por lá enche as ruas e as pessoas. Um cenário diferente da Indonésia, onde Carolina viu “uma pobreza natural” e as pessoas a viverem “do que a natureza lhes dá e rodeadas de palmeiras e florestas”. E porque se depararam com “muita hidrofobia” quando a missão era “capacitar as meninas e mulheres das aldeias locais, através do surf”.

Demorou, portanto, até que Carolina deixasse de viver com o pavor alheio. “Quando lá chegámos fomos surfar as três e tínhamos um indiano, à beira da água, a gritar connosco para sairmos do mar, mesmo quando estávamos a nadar à frente dele, para mostrarmos que sabíamos o que estávamos a fazer. Mas ele não saiu dali enquanto nós não saímos”, recorda, ao garantir que os indianos “têm medo do mar”, que veem como “um perigo”.

“A Índia está rodeada de mar e de ondas e, no país inteiro, só existiam cinco escolas de surf, todas no sul do país. Chegámos lá com uma data de ideias, aulas de surf e isto e aquilo. Mas tivemos de começar mesmo do zero, com o simples chapinhar na água, literalmente.”

Aos poucos, e durante um mês, as portuguesas foram tentando, até que “fizeram questão” em darem “uma aula de surf só a mulheres” e, depois, “também a homens e mulheres juntos”. Uma manobra arriscada, portanto. “Só o facto de os homens estarem a aprender a surfar, ou sequer a nadar, com três raparigas, já era muito estranho para eles. Não estavam à vontade, nem tinham respeito, estavam sempre a testar-nos”, explicou. Fossem mais rezingões ou menos teimosos, o resultado não variava muito: “Não digo que se estavam quase a afogar, mas depois lá tínhamos que os ir buscar quando eram levados pelas correntes.”

Mafalda, Lisa e Carolina, as três sentadas, no canto inferior direito, na Índia

Foi correndo bem, tão bem que um toque de fama não tardou a bater à porta de Carolina, Mafalda e Lisa, que começaram a aparecer em televisões e jornais indianos. “Quando fomos embora, no aeroporto, até houve pessoas que nos reconheceram e quiseram tirar fotografia connosco”, assegura, sorridente até mais não, a rir-se enquanto se lembra dos outros risos, os que, na altura, as crianças lhe apontavam. “Às vezes achamos que o surf não tem assim tanto impacto, mas se passarmos um dia ou dois com aquelas crianças, percebemos que aquilo é um dia ou dois na vida deles que, se for preciso, se recordarão daqui a 20 anos, porque foi o dia em que experimentaram surf”, resume Carolina, quando fala da pegada que deixou e da que espera que outros, depois, também deixem.

Ajudar. A palavra é esta e a jovem de 21 anos, que aos 13 começou a surfar em Santa Cruz, perto de Torres Vedras, fugindo à tradição de uma família sem surfistas, quer ver os viajantes de prancha na bagagem a fazerem-no também. “Cada um ajuda como pode. Se eles precisam de um cesto de fruto, nós damos as maças. Ajudamos como podemos e damos aquilo que temos. Trata-se mais de dar oportunidades, abrir portas e dar-lhes mais vida”, retrata, feliz e contente com as memórias que as histórias contadas lhe fazem repassar: “É a alegria que as crianças mostram naquele momento que nos leva a pensar que, se calhar, todo o esforço não foi em vão.” Mesmo que às vezes, enquanto ajudava, Carolina visse muitos a quem a ajuda que tinha para dar não não chegava. “Às tantas, em Puri, ao tentar arranjar material para fazer pranchas, estava um homem agarrado à minha perna, a pedir comida, ao pé de uma lixeira onde até já os cães comiam lixo”, relata.

Para continuar a ajudar, Carolina Pereira conta que, até outubro, os euros apareçam e deem mais peso à carteira tornar o My Destiny sustentável. Ao ano de vida, contudo, o projeto vai crescendo “devagarinho”, tal e qual a fundadora, que começara a surfar a sério quando, num aniversário, transformou um pedido em presente e recebeu “um pack de aulas de surf”. A curiosidade, aí, passou a hábito. A “pancada pelo surf” ficou, fez mossa e deixou cicatriz, uma tão profunda que hoje não a deixa largar a prancha e deixar de a usar como meio para ajudar os outros. “Custa-me um bocado que a ajuda que pode, ou não, chegar a miúdos na Índia ou nas ilhas Mentawai dependa de patrocínios às ONG’s. De uma pessoa que dá 20 euros por mês, de repente deixa de dar e, por isso, um miúdo deixa de ir à escola”, defende, cheia de convicção.

Carolina viajará em maio para Bali, outra vez na Indonésia, para discursar numa conferência do programa Surf+SocialGood, a convite das Nações Unidas

Carolina Pereira

O próximo passo, por enquanto, é voltar a fazer as malas e enfiá-las num avião que aterrará em Bali, de novo na Indonésia, onde, em maio — e a convite das Nações Unidas –, participará numa conferência “Let’s Make Waves”, que reunirá “os principais change-makers” na área do surf.

Por lá falará de surf, de viagens, de como ajudar, do My Destiny e, com mais certezas do que quiçás, do impacto social que um surfista que paga para se tornar viajante pode ter. Porque é nisso que Carolina Pereira acredita: “O problema está em nós, nas pessoas, e não no dinheiro.” E aos 21 anos está aí para o provar.

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