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Holderlin. O castigo do sábio poeta louco

Nasceu há 250 anos, é um dos grandes poetas alemães, mas é também uma influência na história da filosofia. Encanta os linguistas como restaurador da cultura grega, sem ser clássico nem romântico.

A entrada de Holderlin no cânone literário foi tardia mas fulgurante. Depois de uma vida discreta e de um século quase anónimo, o reconhecimento começou a chegar por todos os lados. As Histórias da Literatura mais autorizadas falavam dele como o grande poeta alemão, a par ou acima de Goethe; os filósofos – com Heidegger e Walter Benjamin à cabeça — analisavam os hinos do “mais filósofo dos poetas” e os académicos reconheciam a influência dos seus tratados em Hegel.

Encanta os linguistas como o grande restaurador da Cultura Grega, de que as suas traduções de Píndaro são só um exemplo, e, para aqueles que se fascinam com o folclore biográfico, viveu quarenta anos insulado numa torre, atacado por uma grave esquizofrenia.

Holderlin ficou órfão aos dois anos e, ao contrário de tantos para quem a orfandade significava a condenação ao trabalho árduo desde cedo, foi destinado a seguir as pisadas do pai, um pequeno pastor Luterano. Foi, assim, instruído desde cedo – a par do seu conterrâneo Schelling – nas línguas Antigas, na teologia e em alguma especulação filosófica que assimilou com proveito. Tanto que, quando chega ao famoso Tubinger Stift – o seminário mais importante da região de Wuttenberg, associado à Universidade de Tubingen – é ele a figura dominante no “trio de Tubingen”. Entre Hegel, Schelling e Holderlin, é este último que introduz a paixão pela cultura grega, pelos pré-socráticos a que Heidegger dará tanta importância na relação com Holderlin, ou pelos dramas de Sófocles.

Para que Holderlin tenha sido tomado como um poeta filosófico, muito terão contribuído as interpretações de Heidegger

Não se pode dizer, também, que fosse possível, num seminário alemão do século XVIII, ignorar Kant e toda a frescura do idealismo alemão; no entanto, alguns académicos têm tentado provar que, se o grupo chegou a dominar com a conhecida proficiência os juízos sobre a estética e a lógica transcendental Kantianas e os desenvolvimentos dos seus seguidores, em muito o deve a Holderlin.

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É impossível saber com certeza o grau de influência de Holderlin em Holderlin ou em Hegel. Os académicos discutem a hipótese de um texto importante, O mais antigo programa sistemático do idealismo alemão, ter sido escrito entre Holderlin, Hegel e Schelling, embora esteja grafado com a letra de Hegel, o que daria alguns elementos seguros para perceber os interesses e as posições filosóficas comuns; no entanto, não é possível ter grandes certezas, como sempre acontece na esfera das influências partilhadas, do que é que é património ideológico de cada um. A verdade é que, depois dos anos do Tubinger Stift, são raras as referências mútuas, e nada na correspondência faz eco da grande amizade de juventude. No entanto, é certo que Holderlin já dominava bastante bem os textos de Heraclito, que mais tarde terão certa influência no desenvolvimento da dialética hegeliana.

Holderlin, como tantos intelectuais com poucos meios e menos vontade de optar pela carreira religiosa, estabeleceu-se como professor particular depois de abandonar a Universidade. Esta era uma profissão que garantia um sustento seguro e permitia, a quem o desejava, dedicar uma boa parte do tempo aos estudos, mantendo ainda assim uma vida tranquila.

Holderlin, contra os desejos da sua mãe, acabou por não se tornar pastor. Holderlin estava cada vez mais embrenhado na vida intelectual, começou a escrever o Hyperion um ano depois de sair de Tubingen, e ia entrando no mundo das letras. Terá sido por isso que passou um ano na Universidade de Java, em que Fichte dava aulas e Schiller, cuja poesia Holderlin conhecia desde a juventude, era uma espécie de figura tutelar. Não é crível que esta curta passagem tivesse mais objetivos do que permitir ao jovem poeta familiarizar-se com o programa filosófico de Fichte e mergulhar com mais profundidade no meio intelectual alemão; a ideia de cursar direito nunca foi consistente e, assim que Holderlin viu que a influência de Schiller era demasiado opressora para a sua poesia, abandonou a Universidade.

A primeira edição de “Hyperion”, de 1797

Holderlin, como tantos intelectuais com poucos meios e menos vontade de optar pela carreira religiosa, estabeleceu-se como professor particular depois de abandonar a Universidade. Esta era uma profissão que garantia um sustento seguro e permitia, a quem o desejava, dedicar uma boa parte do tempo aos estudos, mantendo ainda assim uma vida tranquila. Teria sido o destino natural de Holderlin, caso não se tivesse envolvido amorosamente com a mulher do seu empregador. A relação custou-lhe o emprego, boa parte dos nervos e uma espécie de exílio. Depois do serviço nos Gontard, só conseguiu emprego na Suíça, primeiro, e em Bordéus, depois. De Bordéus (que é, aliás, inspiração para um dos seus mais famosos hinos, Memória), o regresso à Alemanha foi quase direto para o hospício, onde a sua esquizofrenia foi identificada sem previsões animadoras. Seria incurável e fatal, diagnóstico que só em parte se revelou verdadeiro. Holderlin nunca recuperou completamente, é verdade, mas em vez dos três anos previstos pelos alienistas demorou quarenta anos a morrer. Esses quarenta anos, passou-os numa torre, que ainda hoje existe, em Tubingen.

Aí escreveu, recebeu visitas e levou uma vida calma até à morte, longe dos grandes centros da cultura que queria transformar, afastado dos palcos revolucionários que admirara na juventude e do reconhecimento que os seus amigos de outrora iam ganhando. Holderlin, apesar de ter publicado bastante ainda em vida, nunca chegou a ver uma pálida imagem do reconhecimento que teria. Foi o Hyperion que lhe valeu a casa para os últimos anos – o empresário que lha cedeu era seu leitor – e alguns dos seus hinos eram modestamente apreciados; no entanto, é hoje um dos mais considerados poetas alemães.

Poesia filosófica: a interpretação de Heidegger

Holderlin tanto escreveu filosofia como poesia. Curiosamente, porém, só nos últimos anos é que a sua produção ensaística tem sido alvo de interesse. Isso não impede que, desde o ressurgir da atenção pela sua obra, Holderlin tenha sido tomado como um poeta filosófico. Para isso, muito terão contribuído as interpretações de Heidegger. No pós Ser e Tempo, Heidegger dedica-se a uma série de assuntos que tinham estado pouco presentes no seu trabalho anterior. Já está definido o seu grande empreendimento filosófico. A “hermenêutica da facticidade” já tinha passado a “analítica existencial do Dasein” e não sofreria mais alterações, pelo que os seus cursos ganharam outros contornos.

Holderlin produz a estranheza de pensamento que permite sair da distração existencial e, mais importante, transforma-a numa meditação sobre o próprio pensamento.

Não é possível analisar num texto destes a dimensão e os propósitos da filosofia heideggeriana; no entanto, para se perceber a importância dada a Holderlin, é preciso conhecer alguns dos seus pressupostos. A analítica existencial do Dasein parte de uma refundação da ideia Kantiana de que há algumas categorias que constituem juízos sintéticos a priori. Isto é, há algumas ideias que estão no nosso espírito, que são independentes do que nos aparece à frente, que moldam a nossa maneira de pensar de uma maneira irremediável. Em Kant, o espaço e o tempo são as categorias fundamentais. O espaço não está nos objetos, mas sem a compreensão do espaço teríamos uma ideia completamente diferente daquilo que nos aparece.

Ora, o grande projeto de Heidegger passa por mostrar que estas categorias que afetam a perceção estão mais dependentes de disposições existenciais do que podíamos pensar. Só vemos as coisas como vemos porque elas estão enquadradas num modo de ver que as conforma. Há, assim, no simples modo de ver, na simples perceção, todo um modo de pensar e uma interpretação da vida pressupostos. A identificação dos tais pressupostos e daquilo que molda a nossa ideia de ser – não só do ser no sentido daquilo que cada objeto é, mas também do ser no sentido deste conjunto que nos leva a ver cada coisa tal como a vemos – é o fundamental da analítica existencial do Dasein.

Nos anos 30 e 40, que são os anos em que a análise de Heidegger sobre Holderlin é mais profunda, Heidegger está a estudar a ideia da arte e da poesia com formas de nos darmos conta deste ordenamento das coisas que usamos sem sequer o percebermos. A poesia causa uma estranheza na linguagem que nos leva a perceber o quanto, na nossa perceção do que nos aparece, está dependente do modo habitual de pensar ou de falar.

Holderlin nasceu em 1770 e morreu em 1843

Heidegger procura, a partir dos cursos preparatórios de Ser e Tempo, fazer uma gigantesca revisão de toda a metafísica, que, desde Platão, se funda na pergunta errada. A metafísica procura as qualidades do ser, em vez de perguntar o que significa, realmente, ser. Assim, aquilo que tem é sempre apenas uma imagem de outra coisa. Para Heidegger, a especulação Holderliniana é ainda metafísica, mas a sua poesia já não (aber er dichtet anders). No curso sobre o Hino Der Ister (o Ister era uma parte do Danúbio, e este curso é o volume 53 da Obra Reunida de Heidegger) Heidegger explica que a poesia de Holderlin não vive de metáforas e símbolos, mas sim daquilo da própria contemplação daquilo que descreve. Isto, que podia ser uma simples manobra estilística, já que, no século XVIII, a ausência de metáforas é uma reação clássica ao barroco, torna-se em Holderlin uma ferramenta filosófica. Holderlin produz a estranheza de pensamento que permite sair da distração existencial e, mais importante, transforma-a numa meditação sobre o próprio pensamento. Esta meditação está também presente no famoso Hino sobre Bordéus, Andenken (Memória), que é para Heidegger uma forma de mostrar como mesmo o pensamento nos dá modos de ser diferentes.

Harmonia, castigo e romantismo

As interpretações Heideggerianas de Holderlin têm sido bastante contestadas porque, a par dos problemas metafísicos, Heidegger faz de Holderlin uma espécie de paladino do espírito germânico que não deixará de ter interpretações políticas. Paul de Man, por exemplo, diz que Heidegger interpretou Holderlin ao contrário das ideias do próprio e, de uma certa forma, é fácil compreendê-lo. De facto, é estranho fazer do grande humanista, até proto-republicano, uma espécie de pensador nacional-socialista.

No entanto, além de Heidegger deixar bem claro que o pensamento de Holderlin é pouco importante para a interpretação dos seus hinos, a verdade é que a meditação sobre a História e sobre a linguagem (é uma poesia orientada para a Seinsgeschichte, História do Ser), a superação do racionalismo e até uma espécie de dialética poética, que para Heidegger são características do espírito alemão, estão presentes em Holderlin. Se a isto juntarmos uma espécie de alternativa à tecnologia e um interesse pelos mesmos temas gregos que interessarão a Heidegger, conseguimos perceber que a sua ideia do espírito de Holderlin está para lá da política imediata.

Holderlin está entre um mundo e outro porque é talvez o mais filosófico dos poetas num século que consagrou o poema filosófico (que terá tantos e tão maus cultores em França) e o mais puro de outro século em que o lirismo popular ganhou força.

Holderlin é o restaurador da mentalidade pré-socrática e da verdadeira pergunta sobre o ser que ainda resta no teatro grego. Ora, o helenismo de Holderlin é incontestável e notório. Não só o Hyperion trata de uma espécie de desilusão revolucionária grega com recurso a temas sofoclianos, o que tornará especialmente significativa a análise a Sófocles que Heidegger fará no curso sobre o Der Ister, como Holderlin é além disso um famoso tradutor de Píndaro.

Curiosamente, Heidegger dá pouca importância a textos que poderiam ter sido importantes para a sua interpretação de Holderlin. Nos seus ensaios, embora seja tratada uma grande variedade de temas, desde a arte poética aos fundamentos do direito penal, têm sempre presente uma tentativa de superação das hipóteses Kantianas que poderiam interessar a Heidegger.

A sua ideia de harmonia, que tem sido interpretada como uma espécie de cultura hippie setecentista, tem um sentido muito mais complexo e que está em diálogo constante com a filosofia do seu tempo. Holderlin tem uma interpretação interessante da ideia de castigo para superar a subjetividade a que o idealismo alemão parecia condenar os Homens. Explica ele que todo o sofrimento é castigo, incluindo aquele que sentimos quando uma vontade nos é travada pela consciência. Não será um sofrimento físico, mas é ainda assim um sofrimento, um castigo. É daí que, em geral, deduzimos a lei moral. A lei moral não pode ser escrita, mas é identificada pela resistência. Não nos dá o bem, mas dá-nos pelo menos o mal. Com a resistência que experimentamos, sabemos que temos uma má vontade. Ora, esta resistência não precisa de ser apenas metal. Qualquer ação que experimente resistência, seja até de ordem física, dá-nos pistas sobre a sua natureza. A ideia de harmonia é, assim, a ideia de uma ação em que não há castigo e em que nem sujeito nem objeto se dominam. Não há resistência porque há uma reconciliação entre dois lados. Nem é o sujeito que domina, à maneira do racionalismo ou do idealismo alemão, nem o objeto, à maneira da filosofia medieval.

Texto publicado em 1776, referente ao movimento Sturm und Drang

Esta ideia de harmonia fará de Holderlin uma espécie de percursor do romantismo alemão. Embora os seus temas ainda sejam os temas tradicionais do Sturm und Drang (o grupo de juventude de Goethe e Herder), como o clacissismo e o estilo mais arcádico do que medieval, a preferência de Holderlin pela simplicidade natural à sofisticação farão dele um percursor do amor romântico pelo povo. A ideia de natureza presente em Holderlin é também a ideia de simplicidade e de autenticidade, coisa que Novalis e restantes seguidores explorarão até ao limite.

O romantismo alemão é complexo, muito centrado na insuficiência do desejo que também está presente nos hinos de Holderlin, mas deve muita dessa complexidade a Holderlin.

Holderlin está entre um mundo e outro porque é talvez o mais filosófico dos poetas num século que consagrou o poema filosófico (que terá tantos e tão maus cultores em França) e o mais puro de outro século em que o lirismo popular ganhou força. Holderlin, o filósofo do castigo e da harmonia e o poeta do pensamento mas também do pão e do vinho tornou-se aquilo que merece. Não é clássico, não é romântico, não é poeta e não é filósofo. É mais do que tudo isso, o que o tornou um dos gigantes da literatura de todos os tempos.

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