A maior onda gigante do mundo foi surfada pelo português Hugo Vau. Já de costas viradas para a Nazaré, onde tentava — e só agora conseguiu — dominar a força do Canhão há dez anos, o lisboeta de 36 anos que se apaixonou pelo mar na Costa da Caparica falou ao Observador sobre “a dádiva” que encontrou ao fim da tarde de quarta-feira no cimo de uma onda que teria 35 metros de altura (falta a homologação oficial, que confirmará que o recorde foi batido). Fala de paciência e de uma dádiva. Fala de orgulho e de companheirismo. E agradece a vida a Garrett McNamara, o anterior recordista.
Apanhar esta onda gigante, aquela que será a maior de sempre, foi uma questão de sorte ou de muito trabalho?
Ando à espera que aconteça desde há dez anos [risos]. Foi o resultado de muita persistência e de um trabalho de equipa que já vai com uma década. A Nazaré é um sítio muito específico onde um surfista sozinho não consegue fazer nada. Tem de ter uma equipa por trás para gozar esta aventura de forma segura e divertida. Nós passámos três horas e meia na água, sempre a tentar encontrar uma única onda na Praia do Norte. Estava muito, muito vento. As condições eram realmente adversas e já era final de tarde. Mas nós não desistimos e acabámos por ser recompensados.
Mas teve noção do que estava prestes a enfrentar?
Vimos uma onda a rebentar naquele sítio. Uma “Big Mama”, que é uma onda que só aparece mesmo quando o mar está gigante. Está mais do que gigante: está monstruoso. É muito fora do normal, é muito raro esta onda funcionar. Até mesmo na Nazaré, porque tem de ser um mar muito grande, ter ondas perfeitas e tem de estar a maré certa — se não estiver a maré certa, a onda não rebenta.
Viu-a formar-se?
Sim, porque, enquanto estamos dentro de água na Praia do Norte, temos um outro colega, o Jorge Leal — que é o nosso videógrafo e fotógrafo — que faz os calls, que são as chamadas para as ondas. Ele está num plano onde consegue ter outra perspetiva e onde consegue mais ou menos situar e perceber a natureza da onda que se está a aproximar. Nós não estávamos a conseguir apanhar as ondas porque estava muito vento. Já tínhamos tentado seis vezes, mas era impossível descê-las. Ele disse-nos: “Vem aí uma onda gigante, tentem apanhá-la”. Então pus o meu colega Alex numa onda, que não foi tão grande como esta, e a seguir apercebi-me que vinha lá o set. Não sei se se percebem este palavreado.
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É melhor explicar…
O set é um conjunto de ondas grandes. Os outros surfistas andavam entre o porto de abrigo e a Praia do Norte à espera de uma onda no canal. Eu vi uma mesmo enorme e fui em direção a ela. O Alex foi exímio na condução da onda dele, foi mesmo espetacular. E eu, pronto, também surfei a minha onda da melhor maneira que pude. Por acaso até foi bem surfada. É uma daquelas histórias em que correu tudo bem, em que houve sintonia entre duas pessoas, entre nós e o mar. Correu tudo na perfeição. Pode dizer-se que foi um momento mágico.
Quando está em cima de uma onda provavelmente tão grande como a do tsunami que devastou Lisboa em 1755 no que é que se pensa?
Pensa-se em muita coisa! Aquelas ondas são tão grandes que desde a crista até lá em baixo dá tempo para pensar em tudo [risos]. Essencialmente, quando se está a descer uma onda daquelas é preciso manter muita concentração e, acima de tudo, ter muita vontade de a descer . É preciso estar-se completamente conectado de forma a que se consiga fazer uma leitura d onda que permita uma experiência tranquila. Agora, aquela onda em particular, vi logo que ia ser enorme. Pensei que talvez fosse a maior onda que já tinha surfado — e acabou por ser mesmo.
Como é que se sabe disso quando se está num mar tão bravo?
Percebe-se o sítio onde ela vai rebentar através da forma que ela começou a ter. Houve ali um momento em que duas ondas se juntaram e foi isso que fez com que esta onda se tornasse tão grande. Ficou quase com o dobro do tamanho antes de rebentar. Calcula-se que sejam 35 metros de altura, mas apurar isso cabe ao comité. Tem de haver muito amor pelo mar, tem de se ter muita confiança na equipa e tem de ser estar ali mesmo com o coração. Quem abraça desafios destes, tem de o fazer pelas razões certas. Não se pode estar neste oceano à espera de um momento de protagonismo, de fama ou whatever. Temos de estar a surfar com a alma.
E o medo?
É uma situação engraçada. É precisamente pelo medo que acho importante estarmos conectados com o presente, o que se está a passar: se não recordarmos uma situação menos boa ou se não pensarmos demais naquilo que poderá acontecer no futuro, nós não temos medo porque estamos completamente ligados ao momento. E isso protege-nos. Outra técnica que gosto de utilizar é sentir-me grato. Sentir gratidão. Quando estamos a agradecer por alguma coisa — por termos saúde, por exemplo, ou por podermos fazer aquilo que mais gostamos — ficamos gratos com a vida e não há espaço para mais nada. Se calhar não são técnicas: são formas de viver.
Já agora, como era a vista lá de cima? Ou não se consegue ver nada
Quando larguei o cabo da mota, fiz uma trajetória de modo a ir para uma área mais interna — vamos lá: para irmos mais para dentro da onda, digamos assim. Essa é uma zona mais profunda e crítica da onda. Quando estava a fazer essa trajetória fiquei de frente para onda e foi aí que me apercebi de como a onda era grande e quão veloz podia ser em cima dela. Consegui ver tudo: aquela ia ser a onda mais poderosa que já tinha surfado. A partir daí, a sensação é a de descer uma montanha enquanto se está a ser perseguido por uma avalanche.
Sim, mas não é novato nesta coisa das ondas gigantes…
Não, até fui um dos nomeados para os galardões XXL de maior onda gigante da Liga Mundial de Surf em 2014 e no ano passado. Ainda assim, foi preciso esperar dez anos para encontrar “a” onda gigante. Foi preciso muita paciência. Mas vamos lá ver: quando vou para a água, não vou à procura de uma onda gigante ou de uma onda maior ou mais pequena. A única coisa que procuro quando vou para a água é divertir-me, passar momentos inesquecíveis na natureza — que é isso que adoro — e acima de tudo passar bons momentos com os meus amigos. As ondas grandes entraram na minha vida de forma natural em que comecei a sentir cada vez mais calma e ligação com o mar. Notei que essa ligação era maior em cima de ondas gigantes.
Mas era seu objetivo bater o recorde?
Não vou à procura de bater um recorde ou de apanhar uma onda maior do que a de outra pessoa. Vou à procura de me divertir o mais possível e de viver novamente aquele sentimentos que tínhamos em criança: quando estávamos a brincar não pensávamos em mais nada. É isso que me acontece quando apanho uma onda daquelas. Entro noutra realidade. Acaba por ser a natureza. A natureza e o destino é que fazem se calhar com que a maior onda do mundo tenha vindo ter comigo. Consegui estar à altura para a surfar. É mais forte do que a nossa vontade: também tem de estar um pouco destinado. Aquela onda foi uma dádiva. O mar foi muito meu amigo [risos].
Como é que celebrou?
Por acaso foi um momento muito especial em que eu e o Alex demos um abraço. Lá está, tipo… Os recordes vão e vêm, o mediatismo pode ir e voltar, mas a sensação e sentimento de alegria que nós guardamos é algo que vai ficar para sempre nas nossas memórias. E que vai marcar para toda a vida. É sempre sobre isso: amizade e espírito de equipa. A primeira pessoa a quem liguei foi à minha namorada, a Joana. Mas logo dentro de água houve uma grande celebração porque estavam ali muitos surfistas a observar-me, a mim e ao Alex. Estavam a tentar perceber o que é que nós estávamos a fazer. Quando acabei a onda, estava tudo completamente louco, tudo aos gritos! Todas as pessoas que estavam na água — até mesmo aqueles que já têm muitos anos de Praia do Norte –, disseram-me logo que tinha sido a maior onda de sempre. Toda a gente se apercebeu que aquilo a que tinham acabado de assistir tinha sido muito especial.
O que é que lhe disse Garrett McNamara? Afinal vai roubar-lhe o recorde…
Ainda não falei com ele. Ele ligou-me duas vezes, mas eu estava na água. Vi a publicação que ele fez, por isso penso que deve estar muito feliz. Ele está super feliz com o facto de ter sido eu a apanhar esta onda. Ele já tinha confessado a muita gente, inclusive a mim, que se fosse para alguém bater o recorde dele, gostava que fosse eu. Nós gostamos muito um do outro, somos muito amigos. Já nos ajudámos muito um ao outro, já salvámos muitas vezes a vida um do outro. O Garrett estava lá quando surfei as duas maiores ondas da minha vida. Foi ele que me puxou para essas ondas. Ele é uma pessoa com muito bom coração e certamente está muito feliz. Se tiver mesmo batido o recorde dele, ele ficará muito feliz.
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Acha que este é o momento mais importante da sua carreira?
Hmmmm (silêncio). Penso que sim, que está a ser. Sim. Também já fui duas vezes finalista do Ride of the Year Awards na categoria da maior onda do mundo e isso foi importante porque, na Europa, se calhar só dois ou três surfistas é que conseguiram estar mais do que uma vez nessa final. Portanto, sei lá, se isto realmente for como toda a gente está a pensar — que a onda seja realmente um recorde do mundo –, sim, este é o momento mais alto da minha carreira enquanto surfista profissional de ondas grandes.
Há uma rivalidade entre surfistas para encontrar ondas como esta?
Sim. Mas confesso que não sou muito competitivo: gosto de estar no mar para relaxar e se calhar por isso é que esta onda me apareceu. Não fui para a água para isso, mas andava inspirado para que acontecesse. Cada um é como cada qual. Eu, pessoalmente, não sou muito assim. Gosto, claro, de me superar. Sou competitivo comigo próprio e gosto de testar os meus próprios limites. E de melhorar enquanto atleta e como pessoa.
Então agora o que é que quer fazer para superar isto?
A seguir, uma das coisas de que gostava — é mesmo um objetivo — era conseguir ajudar ao meu companheiro de equipa, o Alex Botelho, a apanhar a maior onda a remar. E também ajudá-lo a entrar no Big Wave World Tour. Esses são os meus objetivos prioritários porque também é bom darmos coisas boas aos nossos amigos, principalmente àqueles que nos rodeiam todos os dias. E depois é esperar pela outra: em vez de ser a “Big Mama”, que venha a “Big Grandmama”. Depois da mãe, que venha a avó [risos]!