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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Joana Gama: "Quem me dera que tivesse havido um podcast ou um livro a dizer-me: 'calma'"

A comédia, a rádio, a TV e a olaria (porque não?). E a depressão, o medo, a insegurança e a mania de fugir dos problemas. Joana Gama fala de tudo isto num novo livro. E nesta entrevista também.

Dizem os sábios da comédia que, quando se conta uma piada, o objetivo é apresentar o seguinte dilema às pessoas, em jeito de equação: vamos de A para B, mas acabamos em C. É no C que está a graça, porque somos apanhados de surpresa. Uma provocação que não esperamos. Uma punchline que nos tira o tapete. Joana Gama, entre rádio, televisão, podcasts (Banana Papaia ou Psychoterapia) um casamento (e divórcio), uma filha (Irene, de seis anos) uma não adolescência e uma tentativa de suicídio, andou muito tempo em A, sem saber como chegar a B. Tentou o C várias vezes, não fosse ela comediante — agora, mais do que nunca, ainda que duvide — mas nunca sentiu que lá chegasse verdadeiramente. Atirou-se para o tapete, ou para debaixo dos lençóis, passando demasiado tempo a pensar para com os seus botões porque raio é que tinha, no fundo, um qualquer defeito.

Agora, porém, parece ter acertado, com C grande. Pelo menos, transparece essa confiança. O de estar a viver bem consigo. Graças à terapia, sobretudo, mas também à filha e, bem vistas as coisas, a um processo de aceitação gradual. De saber que não é esquisita, é só “especial”.

Alguém que me cale, é o primeiro livro de Joana Gama (e é apresentado este sábado na Feira do Livro de Lisboa, às 16h30), que pelas páginas procura revelar todas estas peças que vão construindo alguém “com medo de ser diferente”. Onde tanto lemos o que pensa uma mulher sobre pornografia, reflexões sobre comprimidos, período, namoro ou a avô Irene, a sua referência adulto-infantil. Um “exercício de autoanálise” para ajudar mais gente a encontrar na diferença uma forma de ser. E para que mais consigam ir partilhando o que lhes vai na alma, sem se sentirem julgados.

Nesta conversa com o Observador foram raros os momentos cómicos. Nem tudo na vida tem graça. E nem tudo tem de ser um drama. Porque, afinal, Joana Gama está “finalmente bem”. Além disso, tem uma filha para criar, que quer que seja livre. Tem também os seus projetos e a certeza de que este ano, é o ano do “all in”. O de meter as fichas todas. “Ou vai ou racha”, como diz. Ainda que, se for preciso, larga o stand up e vai fazer workshops de olaria. Ou volta para a televisão. É esperar para ver, mas aproveitar muito bem o agora, agarrá-lo e partilhá-lo. Quer seja com humor, ou com murros no estômago.

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A capa de “Alguém que me Cale”, de Joana Gama (Arena)

No livro transparece a ideia de que conviveu muito sozinha, que gosta de passar despercebida. Mas agora, deu-se completamente a conhecer, mais do que com os outros projetos. E vai estar a dar autógrafos na Feira do Livro de Lisboa…
Já tinha dado autógrafos, mas sobre outro livro, do blogue “A Mãe é que Sabe”. Mas está a ser um exercício interessante porque parece que não meço bem as consequências a médio/longo prazo. E é isso que [muda para um tom de gozo] me faz ser “autêntica, genuína e fora da caixa”. Só que com estas entrevistas e com os autógrafos, estou a aperceber-me do que escrevi [ri-se]. Do quanto me expus. Ando nervosa com isso. Uma coisa é expor voluntariamente o que quero, outra é fazerem-me perguntas, as pessoas falarem comigo como se me conhecessem muito bem e eu não sei nada sobre elas.

Isso ainda não tinha acontecido?
Com o blogue sim, onde expus imenso a maternidade ou a depressão. Mas agora é pessoal ao máximo.

Num dos textos fala sobre o ir a um centro comercial e não ser reconhecida. Mas com este regresso aos palcos, com o podcast “Banana Papapaia” mais este livro, isso é quase impossível.
Esse episódio não tem a ver com a minha fama atual, isso não me “subiu”. Levo mesmo uma vida solitária, não sou nada sociável nem socializável. Acho que não vou ter de lidar muito com isso, porque não vou aos eventos, aos cafés ou às festas. Não me acontece muito, estou protegida aí.

A pergunta inicial do livro é: como é que algo que sai de si pode ser digno de um livro. Quando é que percebeu que podia ser digno?
Continuo a achar que não é.

Então nunca vai achar. Mesmo que seja um sucesso.
Não sei. Não me vai bater minimamente. Fico feliz com as mensagens positivas, mas, por alguma razão, não conta. É difícil achar que aquilo que sinto é digno de um livro porque respeito muito os autores, obras literárias e cultura no geral. Não me sinto minimamente inserida nesse mundo. Depois, porque estou só a falar sobre mim, não fiz investigação, nem trabalhei para isto. Seria muito pedante achar que a minha vida aos 33 anos, de uma rapariga privilegiada, daria um livro. Não dá, mas deu. Prefiro pensar neste livro como um exercício de autoanálise  que poderá ser útil e encurtar caminho para outras pessoas.

Não surge então aqui como um ajuste de contas consigo própria.
Não, é uma partilha. Está a fazer-me bem, porque ao longo da minha vida senti-me pequenina aí: não tenho nada para dizer aos outros. Sendo muito diferente da minha família, que é educada, letrada, sempre me senti a ovelha negra. Este livro é uma libertação disso tudo. “OK, então, sendo eu, porque não será válido também?”.

A sua família já leu?
Não sei, não vou falar sobre isso. Nem sei se vão falar comigo sobre o livro.

Há um contrato.
Sim, um contrato silencioso, nunca falamos sobre isso.

"Não me quero tornar uma embaixadora de nada em stand-up. Claro que temos um propósito, e o meu será a dessacralização da dor e que as pessoas não se sintam sozinhas. Mas não quero ser a embaixadora da sanidade mental ou da bissexualidade."

Porquê?
Tem a ver com o facto de sermos muito diferentes. Querem-me dar a liberdade para ser. E também não quero muito ouvir o que têm para dizer porque é disso que me quero libertar.

Pergunto isto porque quem trabalha em áreas como a comunicação ou o humor pode não ser levado a sério pela família. E neste livro explora assuntos mais sérios. Não é para ter aprovação familiar?
Não, isso não me interessa muito. Também não estou a fazer de propósito para ter ou não ter. Mas estou assim [faz gesto de nervosismo], sabe?

Entendo. Uma pessoa que partilha tanto como a Joana está à procura de quê?
De validação. Acima de tudo é o mesmo que me acontece em palco. Tenho, por alguma razão, problema em sentir que não pertenço a lado nenhum. E isso afeta a minha noção de existência, como se não fosse vista. Procuro muito ser relacionável. Para perceber: “OK, não sou maluca”. Há quem tenha medo de morrer, eu tenho medo de ser maluca. E quanto mais pessoas me dizem que percebem ou que se identificam, então é porque não há nada de errado comigo. É mais disso que ando à procura. De me sentir especial e não esquisita. Ou então só normal, mas acho que já não vou muito a tempo.

Talvez nem lhe interesse ser normal.
Um normal aceitável. De poder namorar com um homem fixe. Que sou viável para uma televisão generalista. Não quero ser indie, quero ser eu e ver no que dá.

Estar dentro do mainstream, mas ter a sua identidade.
Poder controlar a minha esquisitice. Uma vez o Rui Unas, no Maluco Beleza, disse-me: “Tu sacas cavalinhos, mas estás atenta”. Sim, há uma escolha no que digo. Sei o que estou a fazer.

Mas dá a sensação que não.
No “Banana Papaia” parece que não, mas estou efetivamente a trabalhar. Se depois vou para casa pensar se me apetece que a minha família ou que os pais do colégio da Irene saibam tudo sobre o meu genital… se calhar não me apetecia. Mas é um risco calculado.

Mas o livro não é controlado.
É a verdade. Já me aconteceu muito em relações passadas, pedirem-me para não falar. Dizia para, então, não fazerem coisas das quais tinham vergonha. Porque se é verdade, porque não partilhar? Não percebo muito bem a questão da privacidade. Se nos conhecêssemos todos melhor, nos mostrássemos mais, criaríamos relações mais saudáveis uns com os outros.

A depressão já é uma das grandes pandemias dos nossos tempos. Com as redes sociais, aquilo que era tabu, passou para o palco. De forma massiva até. Ao se inserir nesse meio, ao expor-se tanto, não sente que poderá estar a banalizar este problema?
Não acho que seja mau.

Pode ajudar a resolver?
Sim, somos feitos de tudo. Estamos a entrar no contraponto do idealismo que se vive nas redes sociais e da maior parte das celebridades. A banalização da depressão não é má porque pode levar mais gente a tentar curar-se ou a pedir ajuda. Talvez nós vivamos numa geração em que procuramos mais colo ou ser acarinhados. E, por vezes, encontramos nas patologias uma maneira de nos sentirmos diferentes. Não há que ter vergonha da cabeça poder funcionar contra nós.

Peço desculpa pelo exemplo, mas cá vai: quando uma pessoa famosa morre, vemos logo alguém nas redes sociais a puxar o problema para si. A cultura do “eu, eu, eu” está muito na moda. Não há aqui um grande egoísmo no meio disto tudo?
Não, não vejo mesmo nada assim. Há o perigo do diagnóstico imediato por parte da classe médica, e ver-se na depressão uma justificação fácil para momentos de tristeza ou desajuste. Isso faz-me confusão. Nem tudo é depressão. Essa procura por um diagnóstico, que por preconceito se associa à psiquiatria, é muito perigosa.

"Enquanto der para comer, vou trabalhar no que me der gozo. Hoje foi um livro, amanhã faço um workshop de olaria e começo a vender potes"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Não o digo porque o senti a partir do seu livro. Até me pareceu que as partes mais pesadas surgem aqui do nada. Mas não de forma gratuita.
Estou em casa assim. Tenho vivido muito bem na tristeza, nem sequer sei se tive uma depressão. Perguntei uma vez ao meu psicanalista e ele disse-me que por vezes sou maníaca, outras vezes sou depressiva. Achei que era bipolar, mas não. Explicou-me que sou só uma pessoa que tem determinado equilíbrio. A mim preocupa-me, sim, a ansiedade pelo comprimido para resolver um problema. Porque é normal que nos sintamos desajustados com a nossa vida. E devemos ver esses sintomas como uma motivação para sermos mais felizes. Quanto mais pessoas falarem, se for genuíno e aprofundado, sem ser só num post, acho que pode ser muito valioso. Mesmo.

Sobre essa conversa com o Rui Unas, falou de que a sua ambição máxima é ser comediante.
O meu ego, o meu ego…

Certo. Os comediantes estão agora a abrir-se para outros projetos, despir a capa de que tem de ser sempre tudo engraçado, com punchlines preparadíssimas. Este livro e os podcasts são a prova disso mesmo, não?
Foi um exercício que tive de fazer e me custou imenso: como é que posso ser bloguer de maternidade e comediante, fazer o “Banana Papaia” e ser mãe? E depois pensei que se sou capaz, é porque dá. Quanto à comédia, enche-me muito o ego cada vez que sou reconhecida assim ou que me dizem que sou das melhores. Porque é mesmo isto que quero ouvir. Mas, sendo prática, acho que sou uma boa comunicadora, que gosta de humor. É-me natural. Não vou trabalhar para um rótulo. Enquanto der para comer, vou trabalhar no que me der gozo. Hoje foi um livro, amanhã faço um workshop de olaria e começo a vender potes. Descobri que assim controlo a minha ansiedade e que consigo ser feliz.

Mas já interrompeu a carreira cómica uma vez. Como é que agora tem mesmo a certeza de que esse é um dos grandes objetivos? Porque já é, de facto, comediante.
Sou, não sou? Um bocadinho…

Parece-me que sim. Por isso, o que é que falta?
O solo dignifica sempre qualquer comediante. Uma coisa que me fez sentir parte da classe foi ter sido convidada pelo Guilherme Duarte para o Maria Matos. Se calhar não é preciso estar sempre a atuar em bares, não é preciso só viver da comédia para se ser comediante. Porquê agora? Agora estou a trabalhar com a agente do Guilherme Duarte, gente que acredita em mim. E como houve uma melhoria muito grande da minha condição mental, graças a terapia e a maturidade, não é o humor que me domina, mas sou eu que domino quando tenho o humor. Dantes era difícil estar num dia mau e ir a palco, não conseguia dissociar. Estive oito anos sem fazer stand up. A minha vida fez com que me encarquilhasse toda.

Os aplausos já não lhe davam a gratificação suficiente para continuar.
Não queria sair de casa, sequer. E, no início, quando se faz comédia, recebe-se tão pouco dinheiro, pensava “porque é que vou para um teatro à noite, com 30 pessoas no meio de Lisboa, receber 5 euros?”. Sim, com bar aberto, mas não bebo.

Mas há muitos exemplos de comediantes que agarraram nos seus problemas, como a depressão e a ansiedade, e transformaram aquilo em conteúdo. A Joana, agora que está melhor, sente-se mais apta para subir aos palcos. Contraria a norma. Curioso.
Quando não estou bem é muito evidente. Se a noite correr mal, começo a ser passivo-agressiva com o público. Chegava a perguntar porque é que não se riam. Não consigo fazer humor quando estou deprimida. Quando estou bem, há aquele lado meu de “fuck it”, que foi o que fiz para o livro, e pergunto: então? O que é que acontece? Posso morrer de vergonha, mas já me aconteceu tanta coisa que poderia ter tido mais vergonha que não vai ser por isto. Quanto a temas depressivos, não os consigo ainda incluí-los na comédia. Consigo brincar com a minha persona, mas ainda não consigo fazer texto sobre isso ou sobre o lado mais emocional da maternidade. Existe ainda uma separação da Joana com escrúpulos e a Joana sem. E a Joana que sobe a palco não tem grandes emoções.

Mas vê-se a tocar nesses temas?
Sim, mas não me quero tornar uma embaixadora de nada em stand-up. Claro que temos um propósito, e o meu será a dessacralização da dor e que as pessoas não se sintam sozinhas. Mas não quero ser a embaixadora da sanidade mental ou da bissexualidade. Não faço questão. A comédia tem de ser livre e independente de uma agenda para que seja divertida.

Projetos como “Como é que o Bicho Mexe” do Bruno Nogueira, de forma mais honesta e próxima…
Posso ser um bocadinho pedante aqui?

Claro.
Ele não fez nada que nós não tenhamos já feito no “Banana Papaia”. Aquilo foi o acumular de muito talento, química e gestão estratégia da parte dele. Mas essa tendência dos diretos já havia.

"Compreendo que não seja fácil estar com uma mulher que fala sobre tudo, que recebe mensagens com 'dick picks' ou a dizer 'fazia-te'. Mas o amor é possível, tem é de se trabalhar."

Mas conteúdos como o “Banana Papaia” ou como o do Bruno Nogueira vão ser mais normais, ou quando a Covid-19 deixar, as pessoas vão é querer ver stand-up ao vivo, como antigamente?
É uma tendência mundial, do que tenho ouvido falar. Como tudo é cíclico, já vivemos o tempo dos sketchs fechados, da extra produção ou dos guiões fechados. Agora estamos numa era de maior libertação, porque a maior parte de nós não tem essa capacidade de programar, produzir e fazer. Procuramos muito mais a gratificação imediata. Este é um formato que permite ser livre e satisfazer o público com um décimo do trabalho. Mas é um risco muito grande, porque há muitas pessoas que, achando que o formato é fácil, pensem que também o conseguem fazer.

Sim, a televisão cria essa distância.
Pois, mas em podcast parece que há duas pessoas. E não é bem verdade. Apesar de parecer tudo fácil, tem de haver escuta ativa, timing de comédia, química entre as pessoas e é preciso ser um ator crítico, como no teatro. Só falar não é nada.

A Netflix tem uma grande variedade de comediantes no catálogo: homens, mulheres, negros, asiáticos, etc. Cá o mercado continua ainda com os mesmos “players” destacados, um pouco homogéneo ainda. Quando é que acha que a narrativa cómica vai ter mais mulheres e mais etnias, por exemplo? Ou como está chega?
Nunca me senti discriminada por ser mulher na comédia, antes pelo contrário. Tenho tido muita ajuda e projeção por causa disso.

Existe essa discriminação?
Calculo que sim, porque há muitas colegas minhas que o dizem. Não estando aí, só posso dar apoio.

Já temos vários nomes conhecidos: Cátia Domingues, Bumba na Fofinha, Rita Camarneiro, Luana do Bem, Joana Marques…
Primeiro tem a ver com o rácio. Há menos mulheres do que homens, mas talvez seja o mesmo rácio para a quantidade proporcional de homens que há. Mas é uma questão sociológica: pede-se ao género feminino que represente mais papéis sociais. No meu caso foi o ser mãe, casar, por exemplo, que me afastou dessa dinâmica de ir a bares. Depois, também há algo que nos é ensinado na nossa cultura, que é o índice de ser “fuckable”. Muitas mulheres acham que se forem a palco, se falarem sobre os temas sem escrúpulos, deixam de ser fazíveis ou amáveis. E então não trabalhamos tanto, porque é difícil  livrarmo-nos dessas amarras.

Aquela ideia de que a mulher só terá mais graça se for parecida com um homem?
Percebo que se sinta isso, mas se vir bem já passa por uma dicotomia que não é correta. Talvez seja falta de representatividade. Não temos é de ser princesinhas, apesar de poder resultar em palco. Há personas assim. É uma questão de prisão de cada uma de nós na sua cabeça e do que quer que pensem de si e de si mesma.

Em relação ao mercado da comédia em Portugal. Diria que é tóxico, ainda que nunca se tenha sentido discriminada? Ou convive-se bem?
Não sinto nada disso. Às vezes sinto algum azedume. Mas isso sou eu em relação às outras pessoas. E nem sempre é saudável. Irrita-me ver quem tenha tantas oportunidades, apesar de ter mérito. Mas também quero ter! É uma inveja, que não é saudável, mas acho que faz parte da ambição.

Mas porque é que não teve?
Não me dediquei ainda a sério. Só no último ano é que me tornei freelancer e estou a trabalhar mais nesta área. Acho que é isso. A Cristina Ferreira diz que “setembro é já amanhã”, mas, no meu caso, 2020 é mesmo o ano do vai ou racha. Estou a pôr as fichas todas. Se o stand up não correr bem, paciência. Se o livro não correr bem, talvez não escreva mais. Não vou ser daquelas pessoas fracassadas que continuam a correr na mesma direção. Não tenho problemas em ir para uma agência, mas estou a sério nisto.

"Posso perfeitamente apresentar festivais ou a Prova Oral com o Fernando Alvim. Darei sempre o meu toque humorístico. Não é uma traição ao lado mais underground, é um complemento à minha felicidade"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Se este caminho em nome próprio correr bem, voltaria à televisão?
Sim. Dou um exemplo: quando me perguntaram se queria fazer o Café da Manhã da RFM em 2012, disse que não. Toda a gente ficou muito chocada porque era a rádio com mais audiência. Respondi que não era o meu parâmetro. Não me dá mais alento mais gente conhecer-me. E não estou a fazer género.  Não sei se é o facto de me achar uma merda tão grande que isso não faz mossa ou precisar de me dissociar disso para continuar a fazer este livro, por exemplo. Se tivesse a noção de quanto gente vai ler, talvez não o escrevesse.

Prefere não saber.
Estou bem assim. Mas gostava de ter um projeto na televisão. Se preciso? Não, porque não tenho um objetivo claro. Se surgir um projeto numa televisão mais generalista… agora já não existe, mas não via porque é que não poderia ter uma rubrica no programa da Cristina na SIC.

Essa transferência de humoristas para os programas da manhã aconteceu, no caso do António Raminhos ou da Joana Marques.
É reconhecer o talento em quem produz os seus conteúdos. Acaba por ser muito barato meter alguém que tem noção que o ritmo está a cair, em vez de contratar uma equipa de guionistas e de atores para fazer esse trabalho. Posso dizer-lhe que tive a oportunidade de trabalhar num grande formato recentemente e, por acaso, disse que não.

Porquê?
Tenho algum pudor com coisas populares, ainda.

Gosta de estar à margem.
Por um lado é medo de falhar. Por outro, não sei, ir fazer terrinhas na Praça da Alegria não é a minha cena.

O caso do Salvador Martinha é bom para esta conversa. Foi fazendo o seu percurso, quer em televisão ou stand up, depois chega à Netflix. Agora faz projetos fora desse circuito, conteúdos dele, e as marcas vão atrás. Consolidou o nome no mercado. A Joana sente-se à margem, mas já vai montando também esse legado. Uma mini Cristina Ferreira, vá…
Olé! Mas não teria um perfume chamado “Meu”, chamava-lhe “Eu” [ri-se]. Não estou a cavalgar para  a popularidade, estou a tentar ganhar dinheiro com coisas que gosto de fazer. Sou comediante, é um facto. Tenho de dormir agarrada a isso. Mas fui radialista durante anos, fiz televisão e ser uma coisa não exclui a outra. Posso perfeitamente apresentar festivais ou a Prova Oral com o Fernando Alvim. Darei sempre o meu toque humorístico. Não é uma traição ao lado mais underground, é um complemento à minha felicidade.

[o último episódio do podcast Banana Papaia, de Joana Gama e Rita Camarneiro:]

Tudo isto para perguntar uma coisa: não se sente grande humor no livro. É para ser levada mais a sério?
Não houve quase nenhum. Há uma tentativa no início, mas não me saiu. Estou a tentar libertar-me de rótulos. O que é que sai se não estiver a alcançar nada? Se não estamos a fazer o mesmo para o resto da vida. Se trabalhar numa empresa não posso pintar quadros ou tocar jazz? Quando falo a sério raramente me sai humor, como nesta entrevista.

De facto, não tem saído não.
Ah, obrigado por essa nota.

Era uma brincadeira.
Mas não tenho problemas em ser levada a sério. Tenho a sorte de ser articulada.

Não tendo esse problema, admite no livro que “já foi 48 pessoas diferentes”.  Quando é que parou de tentar justificar todos esses “eus”?
Foi recentemente. O impacto do divórcio e a terapia…

Era impossível fazê-lo sozinha?
Demoraria muito mais. Foi um grande shortcut. E estando neste nível consigo olhar para as pessoas e pensar que se fizessem terapia… agora vejo onde está o coágulo. Adorava que fosse de graça para toda a gente. Mas depois do divórcio bateu-me muito. E como em nova tive vontade de morrer, a primeira metade da minha vida até agora foi uma espécie só de dor, dor, depressão, dor. À medida que vou ficando melhor tenho uma grande sensibilidade pelas coisas boas. Já percebi que sou um bocado psycho, mas a única diferença entre mim e outras pessoas é que tenho noção disso.

E que vai ter de levar consigo o resto da vida…
Sim, ajuda-me muito relacionar-me com pessoas, que admiro e respeito, e que também me respeitam. Conhecer a Rita Camarneiro, por exemplo, que tem um equilíbrio muito interessante entre sanidade e insanidade mental. Amo-a profundamente e espelho-me imenso nela e vejo o quanto é válida, rica e interessante e penso: se calhar também é isto que sou. Também é por isso que gosto muito de fazer stand up. Gosto do palco, mas acima de tudo de falar com o público. Porque sinto que temos todos a mesma sintonia. E é difícil encontrar esse grupo, mesmo na escola ou na faculdade, em que nos sentimos em casa. Nunca me senti. Não sei se é por ter andado na Católica, ou por ter andado no Maria Amália, por ser de Oeiras… tive sempre esses problemas. Na comédia sinto-me em casa.

Aos 33 anos constrói então aquilo que deveria ter construído na adolescência.
Sim. Tive amigos, mas nem me deixavam sair. E, às tantas, era tão ansiosa que também não queria ir aos festivais ou passar fins de semana fora. Só agora é que estou a viver a minha juventude, mas com a maturidade dos 33 anos. Só agora é que estou a ser pessoa. E há muita gente que teve teve essa maturidade mais cedo mas que às vezes lhes falta alguma resiliência, por terem tido esse começo mais seguro.

Perdoe-me o francês, mas no seu livro fala de amor. Pegando nas palavras sábias de Miguel Esteves Cardoso, “o amor é fodi**”. Ainda acha que é?
É tão mais quanto nós formos. Neste momento acho que não, porque estou numa relação espectacular. Se fizermos esse processo de “self-healing”, como se chama agora, calham-nos pessoas mais saudáveis. Nada contra os meus relacionamentos anteriores, mas quebram-se padrões. Nesta fase sinto que o problema não é o amor, mas a relação que temos connosco. O que me tem deixado abismada é ter alguém que me aceita como sou. Porque compreendo que não seja fácil estar com uma mulher que fala sobre tudo, que recebe mensagens com “dick picks” ou a dizer “fazia-te”. Mas o amor é possível, tem é de se trabalhar.

"Tudo o que interfira com a privacidade dos outros e que tenha a capacidade de ser sensível, tento não falar. Não exponho quem são os meus pais, por exemplo. Falo sobre o meu ex-marido no meu blogue, mas penso sempre o que é que a Irene vai pensar, um dia mais tarde. Porque não quero fazer mal a ninguém."

Não querendo saber muito da opinião da família sobre o livro, deduzo que seja importante para si a aprovação da pessoa que está consigo agora.
Não a aprovação, mas o encorajamento. Até porque também está a tentar fazer comédia. Como não tenho noção do meu valor, gosto de sentir admiração por quem também me admira. É dizer-me: Joana, vais ser entrevistada para o Observador, tens noção do que isso é? E percebo a importância de ter alguém que me diga, com distância, o que já consegui.

Falemos da sua filha. Fala muito sobre ela em praticamente todos os seus projetos. Não acha que um dia vai levar na cabeça?
Pensei muito no direito à imagem e à privacidade. Sei que é um exercício egoísta, mas quando crescemos num ambiente artístico, temos outro mindset. A Irene é filha de um argumentista de humor e de uma artista, acho que não vai ter essa mentalidade fechada de me questionar porque fez isto ou aquilo. Em relação ao blogue, de “explorá-la” para fazer dinheiro, vou colocando numa conta poupança. E digo-lhe: se fores contra, estes milhares de euros ficam para a mãe. Mas o mundo está a mudar. Dantes não havia fotografias das crianças e que, quando crescer, vai achar normal.

No entanto, com seis anos, já deve ter tiradas “à adulto”. Não deve ser fácil ser apanhada na curva numa criança. Logo para uma comediante, que gosta de apanhar os outros desprevenidos.
Como o meu ex-marido diz, ela tem o melhor dos dois. Estamos a criar um ser muito interessante, inteligente e verbal. Trato-a como pessoa desde o início. Não lhe quero quebrar a individualidade. A entrada dela na escola foi muito difícil para mim, porque quero muito que seja livre, que seja artística. Que faça grandes show cases de Sia ou que se maquilhe como a Billie Elish.

E também a escudá-la, a tentar que evite determinadas coisas…
Vivo muito com esse medo. Projeto-me muito nela. Não sei se é real ou não, mas às vezes sinto que tem um gene depressivo. Por vezes diz-me coisas que me assustam. Diz-me que não consegue ter sonhos lindos porque a cabeça não deixa, que só pensa em coisas más. OK, então encomendamos um caderno e vamos fazer desenhos todos os dias para o lanche, com a melhor memória do dia anterior. Faço um trabalho ativo nisso. Não sei se vai ser contraproducente ou não. Não sei se estou a criar um Hitlerzinho ou um Ghandi, não faço a mínima ideia. Mas estou a fazê-lo com o máximo de respeito pela individualidade dela.

Já começou a pensar naquilo que todos os pais pensam: o que é que quer que a sua filha seja quando for grande?
Que tenha sempre liberdade para fazer o que a deixa feliz. Até pode ser contabilista, mas que, nas horas vagas, seja bailarina. Não quero que se sinta mal por ter sensibilidade artística.

Como é que fintou o tema da pandemia? Para alguém da comédia, não deve ser fácil fintar algo tão pesado.
Não vejo notícias. A Irene não viu relatos de mortes ou reportagens de nada. Expliquei que andava aí uma doença muito grave, que pode matar os avós, mas que temos de usar máscara e desinfetar as mãos. Mas não lhe dei muitos pormenores, porque não precisa de saber isso. O mais importante é brincar, ser feliz e sentir-se segura. Tem 6 anos, caramba, o que é que querem que lhe explique?

Agora vai para a escola?
Sim, para a primária. Caraças…

Em moldes diferentes.
Sim, mas para ela vai ser normal. Só existe comparação para quem tenha existido antes. Vai entrar na primária sem ter alguns intervalos ou usar máscara. O mais problemático para ela nesta altura foi não estar com os amigos.

Não chegou só estar com os pais.
Não, então com a mãe, que já estava a panicar um pouco. As crianças bebem mesmo o nosso estado. Se estava mal, imagine ela. E não lhe conseguia dar o que queria ou às vezes brincar. Então numa situação de isolamento, a minha sanidade mental foi a abrir…

"Sei que tenho um raciocínio rápido, que sou inteligente e bonita. A partir daí, não há grande coisa"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Trago este tema, para lançar aqui um cliché, que também surge no seu livro: ninguém é a salvação de ninguém, mas um filho até pode ser.
Depende de como se aborda o tema. Vejo tanta gente surda, por aí. Que o filho vem como um pesar, como um obstáculo à felicidade. Ter filhos não é um direito, é um privilégio. Pode ser uma salvação se se tiver esse mindset. O meu pai disse-me uma vez algo que me surpreendeu: tenho a capacidade de me encaminhar para um lado bonito. O meu objetivo é ser mesmo feliz. Quero passar isso à Irene.

Também quer que a sua filha tenha a tal “avó Irene” de que fala no livro, na sua vida.
Sim, inspiro-me muito na minha família para fazer o contrário com a minha filha. Mas a minha avó é a referência de adulta-infantil. Que pintava comigo, por exemplo. Temos de educar com base no respeito e na legitimação e não através do medo ou da autoridade. Uma coisa que incomoda pessoas que conheço é o de não obrigar a Irene a cumprimentar as pessoas. Porque não gosta de abraços, o que me incomoda. Mas se não gosta, não gosta. Não vou moldá-la para ficar mais confortável. Posso falar com um psicólogo, assim de fininho. Mas não a vou modificar.

A opção não é logo ir a um psicólogo.
Não, não.

No entanto,  há sempre aquela ideia de que a melhor fase não é para sempre. E logo agora que está a viver uma.
Eu sei, imagine agora que estou muito apaixonada. Estou cheia de medo. Talvez faça parte. Não me afeiçoei aos meus gatos porque sei que vão morrer. Por isso, dar esse salto de fé numa relação, dói.

Mas não tem uma relação muito íntima com a morte de alguém.
Quando as coisas são traumáticas, ponho-as na gaveta. Tenho uma capacidade de negação gigante. E isso fez com que tivesse de andar em terapia vários anos, punha tudo debaixo do tapete em vez de lidar com as coisas. Acabo por passar pelas partes mais tristes e de desconforto, de forma adormecida. Só mais tarde é que lidei com isso.

Alguém que me cale, é o título do livro. A Joana fala de tudo. Não há um limite?
Tudo o que interfira com a privacidade dos outros e que tenha a capacidade de ser sensível, tento não falar. Não exponho quem são os meus pais, por exemplo. Ando muito nesse limbo. Falo sobre o meu ex-marido no meu blogue, mas penso sempre o que é que a Irene vai pensar, um dia mais tarde. Porque não quero fazer mal a ninguém. Esses são os meus limites. E depois há questões que ainda não estão processadas e tenho medo.

Esta nossa conversa lembrou-me a “Inquietação” de José Mário Branco. Há sempre qualquer coisa que está para acontecer.
No meu caso, provoco isso. Sou uma “hustler”. Só a “Prova Oral” é que surgiu. Não sinto que esteja a ser levado ao colo.

"Gostava muito que mais pessoas vissem que a vida não é só o que é agora. Tenho uma necessidade gigante que mais gente não se sinta tão sozinha como eu. Quem me dera que tivesse havido um podcast ou um livro a dizer-me: calma, aquilo que a tua cabeça te está a ditar agora não vai ser para sempre."

Duas últimas perguntas…
A minha cor preferida?

Não, isso não. Mas de certeza que tem uma explicação profunda.
Sim, muito [ri-se].

Há uma parte do livro em que fala de suicídio e partilha pensamentos e memórias. Porque é que decidiu partilhar?
Porque é verdade. Não é um tema normal mas acho que não deve ser tão pouco usual como nós achamos. Acima de tudo, gostava muito que mais pessoas vissem que a vida não é só o que é agora. Tenho uma necessidade gigante que mais gente não se sinta tão sozinha como eu. Quem me dera que tivesse havido um podcast ou um livro a dizer-me: calma, aquilo que a tua cabeça te está a ditar agora não vai ser para sempre. E não havia nada. Nem houve ninguém.

E este “all in” este ano, é também para não fazer mais a festa sozinha, como diz no livro.
Sim. Preciso mesmo de ver o que é que acontece. Se não acreditar na vozinha que tenho na cabeça, que diz que não sou capaz, quero ver o que acontece. Que sou horrível, que não tenho talento, tenho muito síndrome de impostora. E se não? E se ficar? Preciso mesmo de me pôr em causa?

Não consegue, portanto, dissociar a parte pessoal da profissional.
Nunca consegui. Mas para efeito de futuras entrevistas de emprego, fica registado que sou muito boa a ser profissional, está bem?

Digo isto porque esta área de que estivemos a falar, para além de agora estar nas redes sociais, também é um negócio.
É uma inevitabilidade. No meu caso, juro que é. Não estou a fazer para ser genuína. Quando não sou assim, sinto-me fisicamente mal.

Há quem leve a mal…
Acho que não. Também não me dou com toda a gente. Em contexto empresarial, sou muito caótica: acuso stress primeiro, quando há injustiças não consigo estar calada. Mas… talvez seja um pouco presunçoso da minha parte, mas não sou poser em nada.

As celebridades têm algum medo de dizer que são boas no que fazem, por vezes.
Acho que isso é porque as pessoas têm mesmo falhas e não se sentem aptas. Sei que tenho um raciocínio rápido, que sou inteligente e bonita. A partir daí, não há grande coisa. Tenho isto para trabalhar, mas o resto nem sei se será suficiente.

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