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Ao longo das últimas duas décadas – a caminhar para a terceira – João Onofre afirmou-se como um dos artistas portugueses mais importantes da sua geração. O seu corpo de trabalho reúne vídeo, desenho, escultura, fotografia, performance e obra sonora, e clarificou a sua abordagem como artista plástico e visual vital no panorama artístico contemporâneo
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Ao longo das últimas duas décadas – a caminhar para a terceira – João Onofre afirmou-se como um dos artistas portugueses mais importantes da sua geração. O seu corpo de trabalho reúne vídeo, desenho, escultura, fotografia, performance e obra sonora, e clarificou a sua abordagem como artista plástico e visual vital no panorama artístico contemporâneo

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Ao longo das últimas duas décadas – a caminhar para a terceira – João Onofre afirmou-se como um dos artistas portugueses mais importantes da sua geração. O seu corpo de trabalho reúne vídeo, desenho, escultura, fotografia, performance e obra sonora, e clarificou a sua abordagem como artista plástico e visual vital no panorama artístico contemporâneo

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

João Onofre: "Tenho a sensação de que falta um empenho mais crítico por parte de muitos artistas"

Nas últimas duas décadas afirmou-se como um dos mais conceituados artistas portugueses. De regresso à criação, com uma exposição na Galeria Cristina Guerra fala sobre a obra feita e o estado da arte.

Paira sobre nós um falcão peregrino. Observa-nos num movimento elíptico, de predador em busca de presa. Somos observados por ele, e não o contrário, embora possamos traçar um retrato seu em movimento. Quase como um panótico, teorizado pelo filósofo Jeremy Bentham, suscita-se um exercício de poder dominado por quem observa – neste caso, o animal sobre o espetador. Poderia recordar-se o filme Figures in a Landscape (1970), de Joseph Losey, em que dois fugitivos tentam permanecer ocultos face à perseguição vigilante de um helicóptero, cujo único desígnio é capturá-los. No nosso campo de visão, sobressaem diversos ecrãs. Estamos perante Barbary Falcon (in awe of), obra do artista português João Onofre, que abre a sua mais recente exposição Untitled (in awe of), patente na Galeria Cristina Guerra, que pode ser visitada até dia 18 de novembro. É o seu regresso às exposições individuais, depois da exposição antológica do seu trabalho apresentado na Culturgest, em Lisboa, em 2019.

Ao longo das últimas duas décadas – a caminhar para a terceira – João Onofre afirmou-se como um dos artistas portugueses mais importantes da sua geração. O seu corpo de trabalho reúne vídeo, desenho, escultura, fotografia, performance e obra sonora, e clarificou a sua abordagem como artista plástico e visual vital no panorama artístico contemporâneo. Se em 2019, a exposição Once in a Lifetime [Repeat] evidenciava esse lugar que tem vindo a ocupar, em 2023, regressar ao seu universo estético e plástico testemunha a sua relevância na contínua busca pela experimentação indeterminada. Na sua obra residem alguns dos grandes temas da história da arte, como a morte, o amor e o fracasso, que cruza com uma linguagem pontuada de referências à cultura pop, a artistas que surgiram muito antes dele e a um ideal onde não se escapa a uma certa ironia – como leitura sobre o tempo em que vivemos. ‘Quem tem medo de João Onofre?’, poderia dizer-se, parafraseando o célebre título da peça de Edward Albee. Inevitavelmente, a sua obra coloca-nos em confronto connosco próprios e ele é o realizador-arquiteto dessa película que traça um retrato sobre a arte e os seus modos de ver.

Na continuação desta sua recente mostra, estão presentes mais duas obras de Onofre: Untitled (It’s About That Time Corner Piece), a “prequela” de uma peça mostrada em maio deste ano no espaço Rialto6; e Untitled (trio of voices for (João) tenor, falsetto and ASMR — Buckley and Beckett’s Song to the Siren full on rotating platform 4:3 loading shimmer version), 2023. Em ambos os casos, a música surge como elemento fundacional ou que lhe serve de guia. No caso da primeira, peça de canto inspirada noutras feitas por artistas como Dan Flavin, Felix Gonzalez-Torres ou Bruce Nauman, João Onofre parte da partitura do tema It’s About That Time, de Miles Davis. As notas sopradas pelo trompetista Ricardo Pinto sob o vidro quente formam um conjunto de vasos, que surgem agora como esculturas. “De alguma forma, estas peças estão mais próximas da música em si do que uma gravação da mesma em disco”, diz. O seu resultado era indeterminado e, assim sendo, voltamos à experimentação que está, desde cedo, presente no trabalho do artista. Lida “com os limites industriais do trabalho em cristal” e cada uma das peças está agora selada, como se para prender a própria respiração que as criou.

"Untitled (in awe of)", patente na Galeria Cristina Guerra, pode ser visitada até dia 18 de novembro. É o regresso de Onofre às exposições individuais, depois da antológica em 2019 na Culturgest

Vasco Vilhena

Já na segunda obra, em vídeo projetado, Onofre aprofunda a relação sensorial através de uma intuição, falando sobre a cultura de vídeos ASMR: “Acredito que as pessoas querem ter uma proximidade a alguma coisa; à menina que penteia os cabelos em silêncio ou à pessoa que sussurra algo ao ouvido e que transmite uma certa acalmia”. A música de Tim Buckley (com muitas outras versões conhecidas), traz à tona a apropriação de um tema popular de fantasia – a velha história de atração entre marinheiros e sereias – que existe no nosso imaginário desde a Odisseia de Homero. Fala-se de atração e desejo, mas também de morte. A utilização de ASMR cria um efeito de condução perante os observadores que “estão à deriva”, mas onde não deixa de existir uma certa entropia, formada pela mesma voz gravada em diferentes tonalidades. “É um estado de fluidez do ator, no qual nos perdemos em círculos e onde há sempre um ciclo que se repete”, salienta. Ajustamos o nosso encontro face ao que ouvimos. Como explica o curador Andrew Renton, na folha de sala da mostra, é “como se os conflitos interiorizados da canção fossem exteriorizados e encarnados nas performances”, na qual Onofre confere materialização às vozes que ouvimos e que de outra forma se desvaneceriam.

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Mas não se pense muito sobre o que realmente pode significar, escreve Renton. “Grande parte do trabalho de Onofre coloca objetos à nossa frente contra todas as evidências e conhecimento prévio.” Entre as alusões e tentativas de tradução, o que conta é a forma como o espectador se posiciona e que questões escolhe. De que forma podemos olhar para estes trabalhos e com ele nos envolvermos? A questão impõe-se à medida que olhamos para os muitos trabalhos que foi apresentando ao longo dos anos. Parte da nossa história relacional para com a sua obra leva a um exercício de contemplação onde acabamos muitas vezes perdidos. A verdade é que a performance não termina nunca.

Uma arte que se (re)cria

Nascido em 1976, formado em pintura pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa – onde atualmente leciona – com uma passagem pelo Goldsmiths College, em Londres (onde concluiu o mestrado), e outra pela Universidade de Coimbra, João Onofre iniciou o seu percurso no final da década de 1990, num gesto artístico e reflexivo que ainda hoje se pode identificar no seu trabalho. “Vivo no mundo e observo. Muitos dos artistas que tenho como referência sempre tiveram essa característica. Quero que o meu trabalho reflita uma observação mais cuidada e crítica do mundo”. Em todo o caso, as obras que produz, realça, provocam “interpretações metafóricas” e sugerem diversas analogias. Deixa esse lado de leitura ao espectador, embora clarifique a noção da transmutalidade ou de pura convergência cultural que é latente no que cria. Estas obras existiriam sem um passado, questionamos o artista.

“Se considero que a música popular pode ser um elemento plástico e que a cultura não é uma via de sentido único, então a Madonna pode cantar para mim e eu posso cantar para a Madonna. Posso envolver estes elementos no meu discurso. E, dessa forma, interessa-me cruzar, mas a verdade é que antes de o fazer, no início do século passado, já o [Marcel] Duchamp o tinha feito. Quem inicia a história de arte hoje tem noção que nada surge do vazio”, sintetiza. São, por isso, modos de ligação e de encontro. Não tem um doppelganger, afirma, é apenas uma forma de estar que cria mundividência.

“A hipervisibilidade de um artista visual não é má, mas por vezes o culto da personalidade é demasiado e a obra, por arrasto, perde o pendor crítico que seria desejável”, defende o artista.

Nesse jogo de apropriação, o artista português procura aprofundar a sua relação com áreas e técnicas que desconhece ou que pouco domina. Trabalha com cinematógrafos, mestres vidreiros, compositores ou especialistas em aves – tantos ofícios quantos os que forem necessário para as peças que idealiza. “Interessa-me revolver, entrar na história da arte, tirar o que é preciso e voltar. Com sorte, ganhando novos interesses e outras potencialidades”, acrescenta. A pandemia e os últimos anos também lhe deram outro espaço para pensar na criação. E se, antes, os seus trabalhos carregavam uma certa ironia e humor latentes, atualmente e, bem vistas as coisas, nenhuma destas características são declaradas. Sabia Onofre o que é que se poderia tirar do movimento do falcão ou dos vidros soprados? Não. Existiam apenas intuições e também por isso é que muitas vezes o seu verdadeiro trabalho começa na pós-produção.

O mercado e o valor da obra de arte

Numa discussão alargada sobre o panorama da arte contemporânea, abre-se espaço à reflexão. João Onofre dita algumas ideias: “Hoje há mais artistas a produzir, mas as vanguardas do século passado continuam a ser determinantes para aquilo que estes querem estabelecer”. Como artista do ocidente (não fazendo disso uma bandeira), a análise também implica uma reflexão sobre o entendimento que é possível fazer-se da sua obra. “Talvez não tenha receção sem ser no ocidente, mas também não quero forçar as minhas obras a ninguém”, sublinha. Ainda cria para expor, sim, mas é como diz “mais um artista que acha que o mercado, de certa forma, corrói o que possa ser uma arte conceptualmente robusta e menos formalista”.

Há pressão para ter uma obra vendável? “Sim, isso está sempre presente. Mesmo com os artistas, sobretudo europeus e norte-americanos que conheço, isso não deixa de estar presente nas suas mentes. Sinto é que há atualmente um certo reacionarismo do mercado”, explica. Esse conservadorismo do mercado – que já tinha apontado no passado – faz com que muitas galerias ainda apostem nas disciplinas mais tradicionais, nomeadamente na pintura ou na escultura de pequena escala. O problema, diz, estará mais do lado dos vários agentes mediadores do campo artístico do que nos artistas, porém com a participação destes.

“Tenho a sensação de que falta um empenho mais crítico por parte de muitos artistas. No meio disso, subsiste mais a pulsão de mercado, que determina o sucesso e o nome.” Aqui a experiência é a de observador. Onofre fala das muitas exposições e eventos de arte que visita. Se no final dos anos 90 parecia existir um certo retorno à algumas premissas que fundaram o Cabaret Voltaire (e o movimento dadaísta), com uma forma disruptiva e radical de criar artisticamente, hoje a arte parece de novo ensimesmada com os objetos de parede. “Vamos acrescentar mais um quadro, mais um objeto?” interroga-se.

“As exposições que tenho visto nos últimos anos não me cativam e as instituições têm obrigação de fazer mais”, diz João Onofre

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Nessa mesma tónica, João Onofre não deixa de questionar a forma como as instituições pensam as suas exposições – ligando-se desde logo à critica da historiadora de arte Claire Bishop face às mostras expositivas de arquivo. “O que é que um espectador vai fazer a um museu onde por vezes a visita de um dia lhe apresenta 7 ou 8 horas de vídeos e fotografias documentais? De certa maneira, parece que se desviou discursivamente o local de apresentação desses documentários”, explica. “O formalismo e a pulsão destas mostras, onde se arrisca pouco, limita o espaço crítico. Não sei se estas exposições atingem sequer os seus objetivos mais críticos de interpelar o observador para aquilo que esses autores acham que é relevante politicamente”.

Mas também há hoje artistas engajados politicamente à partida, cujas exposições são por vezes um espaço contrário face a essas convicções. Procura-se o mainstream? “Acho que não vale a pena fazermos autorretratos em cortiça à escala real”, diz. “Há obras que contribuem para uma lógica de evento, onde o potencial crítico se diminui na maionese.” Mas é preciso esclarecer: “A hipervisibilidade de um artista visual não é má, mas por vezes o culto da personalidade é demasiado e a obra, por arrasto, perde o pendor crítico que seria desejável”. No meio disso e perante um mercado “dominado em grande parte por lógicas mercantis”, estabeleceu-se um paradigma do qual é difícil escapar, em que as obras de arte parecem então comutadas ao espaço onde se apresentam ou ao contexto histórico que se vive.

Falta correr riscos

Num ano em que se comemora o centenário de Madalena de Azeredo Perdigão, regressamos às palavras que deram mote ao manifesto dos Encontros ACARTE e João Onofre diz querer continuar a correr riscos. No fim de contas, o que lhe importa ainda é a sensação de experiência: “Experimentar e não saber exatamente aquilo que vai acontecer. Descobrir algo e não apenas pela parte estética, mas também pela reação que pode provocar”. Quanto ao panorama português, há uma nova geração de artistas que o entusiasma, mas falta tomar o pulso às instituições.

Numa competição saudável que se deve gerar entre museus e espaços expositivos, “existe a obrigação de se construírem exposições com os fundos necessários para que propostas dos artistas portugueses possam, de certa maneira, ter as mesmas oportunidades de produção que artistas de outras proveniências”, diz Onofre.

“As exposições que tenho visto nos últimos anos não me cativam e as instituições têm obrigação de fazer mais”, reflete. Há mudanças em curso. O novo Museu de Arte Contemporânea MAC/CCB e a reabertura, em 2024, do Centro de Arte Moderna, da Fundação Calouste Gulbenkian, por exemplo. Abre-se uma janela de oportunidade para se redefinirem prioridades? “Sem dúvida, é um momento importante. As instituições continuam limitadas em termos de orçamento, mas sobretudo a Gulbenkian, se tiver uma visão orçamental compatível com o que é trabalhar em arte contemporânea e com as exigências que ela tem hoje internacionalmente, pode de facto ter um impacto importante. Já o novo museu do CCB, na sua ótica, parece deitar por terra ou colidir com o papel do Museu do Chiado, que terá “de ter uma outra linha de atuação”.

Em qualquer destes cenários, defende Onofre, é “importante e necessário que se mostre obras de referência de artistas portugueses” em diálogo com obras de referência de artistas internacionais. Numa competição saudável que se deve gerar entre museus e espaços expositivos, “existe a obrigação de se construírem exposições com os fundos necessários para que propostas dos artistas portugueses possam, de certa maneira, ter as mesmas oportunidades de produção que artistas de outras proveniências”.

Chegados a 2023, a obra de João Onofre resiste à nossa expetativa de determinação e permanece, em certa medida, inatingível. Encara sobretudo contrastes e polos muitas vezes antagónicos, onde nem sempre fica claro o seu desígnio final. Nem tudo está à mostra e a nossa curiosidade como espectadores aguça-se por isso mesmo. Resta “a mesa por baixo a sonhar”, citando um verso de Herberto Helder, autor que também poderia conferir a imagem de poema contínuo à obra deste artista português. A sua leitura da nossa realidade pode começar nos ecrãs e nos cenários performáticos, montados para nos destabilizar, mas é também a sua voz artística que nos entrega um diagnóstico importante para o futuro.

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