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Este texto foi inicialmente publicado a 28 de dezembro de 2020 e é agora lançado de novo, devidamente aualizado, a propósito da morte do ex-Presidente angolano nos cuidados intensivos numa clínica de Barcelona.
[“A Corte de Luanda” é uma investigação do Observador sobre a rede de poder que se formou à volta de José Eduardo dos Santos e da sua família. Durante vários meses, uma equipa de jornalistas percorreu milhares de quilómetros e contactou dezenas de fontes — em Portugal e, principalmente, em Angola. O resultado é publicado um ano depois do escândalo Luanda Leaks e está dividido em quatro partes, seguindo as personagens da Corte: José Eduardo dos Santos, Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e os delfins João Lourenço e Manuel Vicente. Esta investigação deu também origem a uma série inédita do Observador em podcast: pode ouvir a Parte I, “O Viajante”, a Parte II, “O Chefe”, a Parte III, “A Cara do Pai”; e a Parte IV, “O Mimoso”.]
Ela suportava o calor, o português que não entendia e o funge de que ele tanto gostava. Habituara-se a ter só dois vestidos de algodão sem mangas, a lavar um enquanto vestia o outro, e a esquecer os troféus ganhos nos campeonatos de xadrez. Aquilo, porém, era demais. Um dia, perguntou ao homem alto por quem se apaixonara em Baku, no Azerbaijão: “Esta é a nossa casa ou o jardim zoológico?”. Baratas, osgas, lagartos, ratos, formigas, aranhas, lacraus, cobras, morcegos — tantos bichos partilhavam com eles as paredes com telhado de colmo em Brazzaville, em 1974, que Tatiana Kukanova refilou com José Eduardo dos Santos, como contou mais tarde a uma amiga angolana que falou com o Observador sob anonimato.
Menos de uma década depois, o cenário era outro. O homem de porte elegante vivia no Futungo de Belas, na mansão de onde o primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, dominara Luanda e o país nos dois últimos anos do seu mandato. Daqui passou, já no século XXI, para um palácio com o melhor mármore do mundo, o de Carrara, decorado por grandes nomes do design internacional, onde a então primeira-dama (Ana Paula dos Santos, e não Tatiana), exibia um guarda-roupa exuberante: vestia peças de uma designer angolana, mas também gastava fortunas em Paris e em outras expedições de compras em capitais estrangeiras. Carros de alta gama, joias de valor astronómico, iates, festas de milhões de dólares e até a aquisição de um avião de 12 lugares por 62 milhões de dólares, numa altura em que o país, com os cofres a esvaírem-se com a crise do petróleo, cortava programas de apoio social – tudo isto José Eduardo dos Santos quis ou autorizou.
O luxo seguiu-o quando, em setembro de 2017, saiu do palácio cor-de-rosa da Cidade Alta e deixou a sombra das acácias do enclave construído pelos colonizadores no século XVII, no cimo da colina de São José, para uma magnífica mansão (uma miniatura do palácio presidencial, escondida por muros altos amarelos) virada para o Atlântico, que é quase um quarteirão no bairro rico da burguesia colonial de Miramar, a dez minutos do musseque onde terá nascido.
E acompanhou-o para o outro lado do oceano, num exílio escolhido (ou forçado?) em Barcelona, onde vive agora numa casa de seis milhões de euros, três mil metros quadrados e três pisos no Bairro de Pedralbes (Pedras Brancas, em catalão), conhecido como o “bairro da elite”.
Foi aqui que viu explodir o escândalo Luanda Leaks em janeiro deste ano, quando milhares de documentos revelaram ao mundo como a filha mais velha usou dinheiros públicos para os seus negócios. E é aqui que acompanha à distância, mas com o telecomando nas mãos, acredita Justino Pinto de Andrade, histórico dissidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), os processos judiciais que ameaçam o império familiar e fragilizam dois dos seus filhos — Filomeno, que esteve preso preventivamente e foi condenado a 14 de agosto a 5 anos de cadeia; e Isabel, que já foi considerada a mulher mais rica de África. Os guardas que o protegem não o livram das acusações generalizadas que se colaram à sua imagem desde que deixou a presidência de Angola: corrupção, nepotismo, má gestão, intolerância política, ditadura. Aquele que quis ficar para a história como o príncipe da paz, o patriota que (re)construiu a nação (e dá nome à sua página no Facebook), arrisca-se agora a cristalizar como príncipe da corrupção.
A riqueza ostensiva que rodeava a sua família resultou de muitos anos de práticas menos claras num petro-Estado marcado pelo desvio do erário, contrastando com a miséria da maioria dos angolanos.
O pai da Corte milionária de Luanda disse um dia conhecer a pobreza. Falou verdade, como se verá a seguir: nasceu e cresceu pobre. Se a experiência lhe ofereceu argumentos, não lhe impôs solidariedade: envelheceu rico e, segundo Rafael Marques, o rosto angolano da luta contra a corrupção durante o eduardismo, fê-lo “pilhando e saqueando o país”, indiferente à longa agonia de uma população que tinha tudo para viver melhor.
“Pensavam que eu não tinha família?”
O ruído das Singer rasga a tarde quente do Sambizanga. Quatro homens debaixo de sombrinhas, descalços no chão ocre, remendam calças, cosem vestidos, juntam panos, fazem casacos. É o canto de terra batida dos alfaiates. Atrás, num labirinto de placas de zinco a escaldar no cimo de paredes descarnadas, em reboco ou sem tinta, espraia-se um bairro nervoso. Olhos que acusam o hábito de droga, objeto comum do negócio deste musseque de Luanda, vigiam cada gesto de estranhos, neste caso a jornalista, que só ali entra porque um dos grupos senhores da zona a acompanha.
Mulheres de longas pestanas falsas, batom vermelho, a roupa a revelar o corpo e os olhos no telemóvel, bem como homens de tronco nu ou camisetas de alças (uma delas do Sporting), bebem cerveja. O choro de um bebé mistura-se nos gritos das zungueiras (vendedoras de rua) com as bacias cheias de abacates, bananas, cocos, mandioca ou gelados — sacos de plástico transparente por onde se chupa o conteúdo colorido que mais parece um granizado. Fala-se kimbundo e português; discute-se o Benfica e o Sporting; o preço do arroz e das coxas de frango; acertam-se contratos em murmúrios. À volta dos pinchos (pequenos pedaços de carne) a assar em grelhadores de rua, juntam-se grupos ruidosos; miúdas ensaiam passos de kuduro. Do bar ao lado saem os ritmos do kizomba que abafam as gargalhadas das crianças num toca e foge com os cães no xadrez de tábuas, paredes, chapas e panos que dividem espaços.
Foi neste bairro que o senhor absoluto dos destinos angolanos durante 38 anos nasceu, a 28 de Agosto de 1942. Ou não? “O antigo Presidente vinha aqui jogar, num campo de desporto próximo. Isto tudo fechava, enchia-se de tropa, um dia antes de ele vir já dormíamos cercados”, conta Francisco Bastos, que antes de se sentar a uma máquina de costura “exercia a vida militar” de que pensou desertar. Mas “dizer que ele nasceu cá é impossível“. “Os mais velhos dizem que não, ninguém conhece os pais nem a casa dele”, garante, levantando a voz para se fazer ouvir entre os cânticos vindos de uma igreja evangélica ali ao lado.
O mesmo dizem Nando Silva, de 67 anos, Horácio Virgílio, de 49, e Tó Zé, de 39: “Quando começaram a dizer isso fomos pesquisar, andámos por todo o bairro a perguntar a toda a gente onde ficava a casa deles, e ninguém soube dizer nada”.
O local de nascimento de José Eduardo dos Santos não tem escapado à controvérsia. Há uns anos, membros da oposição política questionaram-lhe a naturalidade, exibindo uma cédula de nascimento, que uns dizem ser falsa, onde surge Almeirim, em São Tomé e Príncipe, e o nome José Eduardo Van-Dunem.
A biografia oficial é clara: nasceu em Luanda, ponto final. Quanto ao nome, é sabido que fazia parte do ramo mais pobre desta conhecida família de Angola, os “Van-Dunem do quintal por oposição aos Van-Dunem de casa” explica ao Observador um jornalista angolano que prefere falar sob anonimato. José Eduardo ter-se-á sentido ostracizado pelo lado rico da família e, por isso, “como bom estalinista”, apagou o apelido. Porém, quando o pai morreu e se tornou público que o avô Avelino Francisco Pereira dos Santos Van-Dunem pertencia à família, José Eduardo não deixou de atirar a um amigo: “Então, pensavam que eu não tinha família? Pois eu também sou Van-Dunem!”
O pai, Eduardo Avelino dos Santos Van-Dunem, fora emigrante em São Tomé. Regressado a Luanda com a mulher, Jacinta José Paulino, moraram numa casa de adobe com os dois primeiros filhos, Isabel e Avelino, que acabou destruída por uma chuva torrencial. Ergueram então uma de chapa onde, num “ambiente de extrema pobreza”, o futuro inquilino do Palácio da Cidade Alta nasceu, alegrando o casal que perdera há pouco tempo uma filha, narrou o irmão mais velho ao Jornal de Angola.
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Coube a Avelino, que morreu em 2016, escolher o nome para aquele bebé débil: “Ninguém contava que ele fosse viver e eu, como já era crescido, chamei-lhe Viajante, quer dizer, alguém que apenas vem e vai embora”, cita-o o historiador angolano Patrício Batsîkama, na sua tese de pós-doutoramento As heranças simbólicas que José Eduardo dos Santos legou para a 3ª. República de Angola.
O Viajante, como é tratado pela família, sobreviveu e cresceu sob o olhar atento dos dois irmãos mais velhos (tem mais três: Luís, Lucrécio e Marta). O pai, calceteiro da Câmara de Luanda, e a mãe, quintandeira (vendia no mercado próximo de casa, o de São Paulo, que ainda hoje se impõe, frenético, na paisagem do bairro), saíam muito cedo de casa e José Eduardo ficava à guarda de Isabel. Um cuidado de que nunca se esqueceu: homenageou a irmã dando o seu nome à primeira filha, revelou Isabel dos Santos à TPA.
O pai mostrava-se estrito: “Obrigava-nos a levantar cedo para ajudá-lo nas atividades de pedreiro. Tinha um feitio… Quando acordasse, às 5h00, ninguém mais podia ficar na cama. Sempre nos incutiu uma educação rígida. No bairro ou na rua tínhamos de obedecer e respeitar as pessoas. Essa rigidez moldou o nosso carácter”, confessou Avelino ao Jornal de Angola.
José Eduardo entrou para a escola primária do bairro e depois para a da Missão Evangélica: os dois avôs eram pastores metodistas e ele fez parte do grupo de jovens desta igreja.
Feita a quarta classe, teve de inventar lágrimas para se matricular no Salvador Correia, o liceu das elites de Luanda. O prazo para se inscrever terminava nesse dia, mas ele não tinha o certificado necessário pronto e o irmão Avelino, em puro desenrascanço, pediu-lhe que usasse a saliva para simular choro e desespero e assim convencer a funcionária a ser flexível. Resultou.
Os problemas não terminaram aí. Faltava ainda o dinheiro para pagar as propinas. Avelino pediu isenção para o irmão e nada. Não desistiu: fez “duas mesinhas de cabeceira e um beliche para oferecer aos dois chefes da administração central”. Resultou. Tornou-se assim num dos primeiros negros a frequentar aquela escola nos anos 50, assinala a escritora e poeta angolana Ana Paula Tavares ao Observador.
No liceu — hoje Escola Mutu Ya Kevela, nome do rei Kaluanda que se revoltou contra os portugueses em 1902 —, onde foi contemporâneo do político Miguel Anacoreta Correia, não se destacou. “Muito reservado, as pessoas conheciam-no fundamentalmente do futebol, era um excelente interior esquerdo”, diz o ex-deputado do CDS ao Observador. Chegou a fazer parte da equipa do Futebol Clube de Luanda e nunca perdia uma oportunidade para jogar. Uma paixão que lhe ficou para sempre, sendo um adepto fiel do Futebol Clube do Porto.
Também jogava voleibol e basquetebol: anos depois, já Presidente, no Futungo de Belas, continuava a encestar, para além de treinar no ginásio com um personal trainer. Um hábito que não perdeu quando deixou o poder e a Cidade Alta e passou para Miramar.
O camarada dos Nzaji canta aos 71 anos e suprime a frase “Eu que não tenho fortuna”
Para ajudar a família, arranjou emprego na farmácia do hospital Maria Pia e entregou o primeiro salário ao irmão Avelino. Entre o trabalho, a escola e o futebol, ainda lhe sobrava tempo e vontade para a música. “Ofereci-lhe a primeira viola, feita por mim” contou o irmão Avelino. Revelou-se como guitarrista e cantor nos Kimbambas do Ritmo (fundado em 1959) e, depois, no muito efémero Derrepente que se transformou no conjunto Nzaji ( trovão, ou faísca, em kimbundu), consolidado na URSS (onde ajudou a dar a conhecer Angola, palavra que os russos confundiam com Mongólia) e tornando-se no grande nome da canção revolucionária dos anos 60 e 70.
Ainda adolescente, “JOES”, como também era tratado, envolveu-se na política com os grupos clandestinos dos bairros suburbanos de Luanda que lutavam pela independência de Angola.
A música, como já se percebeu, não ficou de fora. Não só tocava guitarra e cantava, como compunha. Patrício Batsîkama garante ao Observador que José Eduardo dos Santos é o autor de uma canção folclórica muito popular: “Kaputu Mwangolê”, com a letra “os portugueses em Angola querem matar os angolanos”. A conhecida canção “Ivuenu, Ivuenu, Anangola” também tem a sua assinatura, revelou em 2013 Maria Mambo Café, que cantou no Nzaji, bem como alguns trechos e arranjos do hino do MPLA, criado antes de 1963.
Continuou a escrever e a interpretar canções de intervenção na República Democrática do Congo, então Zaire – em Leopoldville (Kinshasa, a partir de 1966) –, onde dava aulas de português aos refugiados angolanos, tocava no projeto embrionário do Nzaji e dizia poesia de Agostinho Neto e António Jacinto. Isto para além de formar um clube de futebol, o Ngola Livre (o nome a denunciar logo a sua ação política, Ngola significa Angola) que, segundo Patrício Batsîkama, era visto pela PIDE (Política Internacional e de Defesa do Estado português) como uma “sombra do MPLA” já que o equipamento tinha as mesmas cores do movimento.
https://www.youtube.com/watch?v=zcvB8joj-P8
A música acompanhou-o também na URSS (tal como o futebol, terá feito parte do Neftchi, da primeira liga soviética, embora nunca tenha saído do banco) onde lançou um disco com quatro canções suas. Quando fez 72 anos, o filho Coréon Dú (que hoje, depois do “Luanda Leaks”, diz que “ninguém escolhe a família em que nasce”) e o cantor angolano Matias Damásio ofereceram-lhe um CD que reeditava essas canções revolucionárias, como a “Doutor Neto”.
O gosto pela música foi ainda mais duradouro do que o poder totalitário. Fã incondicional da brasileira Roberta Miranda (que disse ter sido acordada um dia às 3h da manhã por um telefonema do Presidente angolano que queria a sua opinião sobre “a política e o povo locais”), convidou-a mesmo para o seu casamento com Ana Paula dos Santos.
Primeiro encontro com senhor Presidente De Angola ,José Eduardo Dos Santos http://t.co/cUHSSV6U
— Roberta Miranda (@RobertaMiranda1) December 21, 2012
Gostava de Roberto Carlos, mas foi a Seal que o então Presidente ofereceu um livro de fotografias de Angola depois de o ver dançar com Ana Paula dos Santos, num jantar de angariação de fundos para a Fundação Lwini, criada pela então primeira-dama em 1998.
Embora não se soubesse quase nada sobre o quotidiano presidencial de José Eduardo dos Santos, uma coisa era certa: gostava de ver televisão, “por volta das seis e meia da tarde”, quando passavam “programas virados para a juventude”, e entusiasmava-se com os jovens cantores dos videoclipes, “mesmo os mais alternativos”, contou a filha Tchizé à TV Zimbo em 2012.
Contudo, não optou por um dos nomes da nova geração quando quis surpreender a mulher e mostrar que, aos 71 anos, a voz não lhe faltava (a afinação um pouco). Zédu, a alcunha que o popularizou, pegou numa guitarra e cantou no aniversário de Ana Paula dos Santos um tema de amor lançado em 1964 pelo brasileiro Lindomar Castilho, “Alma, Coração e Vida”.
Pormenor: adaptou-lhe a letra. Suprimiu, por exemplo, a frase “Eu, que não tenho fortuna”. Se não o tivesse feito, mentiria descaradamente. É impossível dizer-se que José Eduardo dos Santos não tem riqueza, apesar de ninguém ainda ter conseguido provar qualquer soma astronómica em seu nome. Em 2011 circulou que teria acumulado 20 mil milhões de dólares (mais de 16,5 mil milhões de euros) o que o levou a fazer um desmentido num discurso perante o Comité Central do MPLA.
Já estava muito longe o dia em que fugira para o país vizinho, a República Democrática do Congo, com 19 anos. Avelino tinha bem presente esse momento. O irmão alistara-se no MPLA em 1956, quando o movimento surgiu, e a 7 de novembro de 1961 abandonou Angola com medo da PIDE. Ele preparava-se para ser operado a uma hérnia e José Eduardo, que nada comunicou aos pais, apareceu com um amigo para se despedirem. “Vi que eles estavam decididos e não contrariei. Não valia a pena. Ofereci-lhes algumas roupas e calçado e desejei-lhes boa sorte”, justificou ao Jornal de Angola.
Só voltou a ter notícias do irmão através de uma tia, enfermeira no antigo Zaire, que os acolhera. De resto, sabiam “que ele estava vivo” pelos postais de boas festas que José Eduardo enviava para a sobrinha Jacinta, sem palavras, só com desenhos de casas. Nem se aperceberam que ele integrara, em 1962, a guerrilha do MPLA, o Exército Popular de Libertação de Angola (EPLA).
Tão pouco se expunha (e assim se manteve nos 13 anos seguintes) que, a julgar pelos arquivos da Torre do Tombo, consultados pelo Observador, os radares da PIDE não se fixaram muito nele. É referenciado em 1965 como membro da direção da Juventude do MPLA, dirigida por Daniel Chipenda, e pouco mais.
A 28 de fevereiro de 1966, a polícia política portuguesa chegou a solicitar ao Serviço de Ficheiros “informação” do que constasse “acerca de José Eduardo dos Santos”. Se houve resposta, esta não integra os documentos da PIDE/DGS da Torre do Tombo. O seu nome aparece apenas em listas de angolanos a estudar na então URSS.
Sete anos à espera para casar com a campeã de xadrez
Em 1963, José Eduardo dos Santos conseguiu uma bolsa para estudar na antiga União Soviética, o que seria determinante na sua história de poder — os russos foram (quase) sempre aliados de peso no seu percurso. Com outros jovens angolanos, apanhou um avião da Air France até ao Gana, com escala em Bamako e Lagos. Aí, mudou para um avião soviético que o levou a Moscovo, passando por Casablanca e Belgrado. Na capital da URSS, os angolanos foram distribuídos por várias cidades e José Eduardo seguiu para Baku, a grande cidade costeira do mar Cáspio e centro de treino ideológico.
Licenciou-se em 1969 em Engenharia de Minas (segundo os documentos da PIDE e o historiador Batsîkama) ou em Engenharia de Petróleos (segundo a biografia oficial) no Instituto de Petróleo e Gás de Baku, liderando ao mesmo tempo a Secção dos Estudantes Angolanos na URSS. Na capital do Azerbaijão, conheceu Tatiana Kukanova. Ela, campeã de xadrez, estudava Geologia; e ele, talvez com o crachá da JMPLA ao peito – um emblema de liga leve, dourado, com o fundo azul e um facho vermelho – queria muito casar com aquela russa loira. Teve de esperar seis a sete anos.
E aqui, como em muitos outros momentos da vida do ex-Presidente angolano, as versões variam. Uns, como uma amiga de Tatiana que falou ao Observador sob reserva de identidade (pedido repetido por muitas pessoas contactadas para este artigo) sustentam que a dificuldade veio do racismo do meio em que vivia, da sua família e dos seus pais: “Ninguém via com bons olhos que uma branca se casasse com um preto”.
Outros, como a antropóloga Margarida Paredes, amiga do casal nos anos 70, apesar de acreditarem que “a família de Tatiana se tenha oposto porque a sociedade soviética era profundamente racista” veem o motivo decisivo no partido. “Esperaram seis anos pela autorização do casamento porque o MPLA tinha como política não permitir o casamento dos camaradas com mulheres estrangeiras”, diz ao Observador a portuguesa que se fez guerrilheira no MPLA. Já Isabel dos Santos atribuiu, numa entrevista de 2012 ao Financial Times, a responsabilidade da demora a um dos mais poderosos serviços secretos do mundo, o russo KGB.
José Eduardo dos Santos nunca esclareceu este pormenor da sua vida. Nem este, nem quase nenhum. “Não gosto de falar de mim”, disse a José Eduardo Moniz, numa entrevista à RTP, em 1990. Aliás, a quase inexistente informação sobre o ex-Presidente, até mesmo sobre o cancro que teve durante muitos anos e que o terá levado para Barcelona, por exemplo, fez com que gestos sem história como a partilha no Instagram de uma selfie pela filha mais nova, Joseana, em 2014, animasse as redes sociais. Ali está José Eduardo dos Santos, sem sapatos (abandonados debaixo da cadeira), aparentemente a ver televisão e sem o Big Bang Angola (relógio de luxo da marca suíça Hublot com as insígnias do país e um diamante, que custa entre 12 e 20 mil euros) que lhe ofereceram em 2012.
Talvez por isso não cause estranheza uma das palavras escolhidas por José Eduardo Agualusa, escritor luso-angolano e crítico do ex-Presidente, para o definir: “Opaco”. Uma opacidade, reforça a investigadora Margarida Paredes, que cobria o seu autoritarismo: “Ninguém sabia o que ele verdadeiramente pensava”. O britânico Edward George, especialista em assuntos angolanos, teoriza e alarga a mesma ideia. Chama ao regime criado por José Eduardo dos Santos uma “criptocracia” — sistema com alavancas do poder ocultas.
Discrição é mesmo a sua imagem de marca. Todas as pessoas com quem o Observador falou e que trabalharam ou contactaram com JES, assinalam o mesmo: reservado, fechado, formal. Alguns veem aí uma das armas que o ajudaram a perpetuar-se no poder (mas já lá vamos): foi o segundo chefe de Estado africano mais tempo em exercício e sem nunca ter sido nominalmente eleito. À sua frente estava apenas Teodoro Obiang, o déspota da Guiné Equatorial, e com uma vantagem curtíssima, um mês e alguns dias. A revista Forbes posicionou-o num outro ranking: o terceiro não monarca com mais anos na cadeira presidencial do planeta.
Discreto sim, mas “vaidoso e arrogante (nas reuniões mandava calar os ministros)”, soma o sociólogo angolano Paulo Inglês. “Não era como outros ditadores africanos, não fazia a ostentação de riqueza como o vizinho [e amigo] Mobutu [Sese Seko]. A sua extravagância era outra: a de mandar em Angola, uma quase obsessão”.
Os inimigos não conheciam o que lhe ocupava a cabeça, os amigos aparentemente também não e “as mulheres muito menos”, afiança uma amiga de uma delas, Maria Luísa Abrantes, “Milucha”. Tudo isto tornava-o imprevisível e “perigoso, além de calculista”, aponta Marcolino Moco, primeiro-ministro de 1992 a 1996 (que também trabalhou com Zédu a partir de 1986 no MPLA, de que foi secretário-geral).
Dava raríssimas entrevistas, todas muito estudadas, algumas com cábulas visíveis, sem perguntas surpresa, sem qualquer espontaneidade. As conferências de imprensa não faziam parte dos seus hábitos e mesmo os seus discursos públicos, escritos por outros, sempre lidos, sem improvisos e muito repetitivos, foram poucos.
“Quando aparecia em público, contra o seu hábito, a sua presença era muito valorizada”, sublinha o embaixador António Monteiro. O diplomata português lidou com José Eduardo dos Santos entre 1990 e junho de 1993, ao integrar a delegação que mediou as negociações e a execução dos acordos de paz em Angola e ao chefiar a missão temporária de Portugal junto das Estruturas Político-Militares em Luanda.
Um certo mistério sobre si ajudou a cimentar o culto da personalidade: “A cara dele estava por todo o lado, no nosso dinheiro, no nosso bilhete de identidade…”, queixa-se ao Observador Luaty Beirão, um dos 17 jovens activistas (os 15+2, os chamados revus, de “revolucionários”, movimento de 2015 que marca o início do desgaste político de JES) que fez 36 dias de greve de fome depois de ser preso.
A ninguém passava despercebido o 28 de agosto, dia de aniversário, que era quase feriado. José Teixeira, motorista da Kubinga (uma espécide de Uber angolana) diz que era “um dia de alegria para todo o mundo, para todos os angolanos”, com “passeatas, maratonas, muitas festas, bebidas baratas e música, grandes jantares [como este em que se vê Zédu, Ana Paula e vários filhos a dançarem ou este em que a filha Joseane conta como ele tem ‘espírito leve’]”.
Havia atividades culturais, concertos e muito desporto, como a conhecida “Taça do Presidente”. “Até torneios internacionais se realizavam numa lógica de endeusamento do líder“, concorda Sérgio Calundungo, coordenador do Observatório Político e Social de Angola (OPSA).
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Por outro lado, como falava pouco, abria a porta a que outros se aproveitassem disso para aplicar as suas próprias decisões, invocando “ordens superiores”, frase muito repetida em Angola, frisa um jornalista angolano que não quis ser identificado.
Além de tímido e fechado, “resolvendo as coisas através de terceiras pessoas”, era também muito “dissimulado”, fazia as coisas pela calada, adiciona Marcolino Moco.
O ex-primeiro-ministro angolano, que foi o primeiro secretário da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) e hoje é professor universitário e administrador não executivo da Sonangol, dá como exemplo “o embuste feito a todo o país” com a aprovação da Constituição em 2010, em que o Presidente viu reforçados os seus poderes “quase sobrenaturais” ( Vital Moreira chamou-lhe uma constituição “hiperpresidencialista”, Rafael Marques um “sistema imperial”).
No ano anterior, quando o MPLA avançava no seu programa para as eleições presidenciais e fazia a agenda nacional de consenso com base na anterior Constituição, Zédu viajou para o estrangeiro e, no regresso, passou por Portugal, onde anunciou inesperadamente o novo modelo de eleição do Presidente: deixava de ser escolhido diretamente, seria o primeiro nome do partido mais votado nas eleições legislativas.
Os baldes de gelado do Baleizão no aniversário de Isabel e uma ferramenta muito útil para o poder
Ser circunspecto só trouxe vantagens a José Eduardo dos Santos. Esse traço de personalidade pesou, como veremos adiante, na sua sucessão a Agostinho Neto, apesar de então já ter nome reconhecido no MPLA. Subira caladamente dentro do partido desde Baku.
Acabados os estudos de engenharia, fez durante um ano um curso militar de Telecomunicações (que lhe seria providencial para mais tarde manter o poder) e os russos ficaram tão agradados com as suas atividades que o premiaram com a medalha Patrice Lumumba. Seguiu para Brazzaville, no Congo.
Só em 1970 voltou a pisar Angola. Regressado a Luanda, não entrou logo em casa dos pais. “Chegou de madrugada e foi dormir para o jardim. Não bateu à porta. Quando acordámos e o vimos, foi uma alegria enorme”, relatou o irmão Avelino. O espanto de trazer com ele uma mulher branca não passou disso mesmo. “Era a escolha dele e não o podíamos contrariar.”
O MPLA colocou-o então em Cabinda, como operador do Centro Principal de Comunicações da Frente Norte, e depois como responsável-adjunto dos serviços de telecomunicações na 2ª Região Político-Militar do MPLA, de cujas finanças tratou mais tarde. Neste posto, aguardou muitas vezes navios como o Daphnis ou o UniÁfrica, vindos de Cuba e da URSS, que atracavam em Ponta Negra e deixavam para o MPLA, descobriu a PIDE, o seguinte:
- 150 caixas de cobertores;
- 200 caixas de fardamentos;
- 300 caixas de botas;
- 60 caixas de meias;
- 50 caixas de cintos;
- 600 caixas de armas;
- 5 jipes;
- 400 sacos de açúcar;
- 500 caixas de leite;
- 6 tambores de óleo de palma.
Em 1974, seguiu novamente para Brazzaville, representar o partido, e no mesmo ano foi eleito para o Comité Central e para o Bureau Político do MPLA, ficando a coordenar o setor político e diplomático. Aos 32 anos já era um alto dirigente do movimento. Tatiana e a filha Isabel acompanhavam-no.
Foi aí que Margarida Paredes o conheceu “discreto em tudo e contido, pouco dado a exteriorizar emoções, o que é interessante por ser o contrário dos estereótipos que os europeus constroem sobre os africanos”. Esse é precisamente um denominador comum na opinião de todos os angolanos e portugueses ouvidos pelo Observador para este trabalho: o ex-Presidente de Angola não se encaixa na caricatura que o preconceito étnico faz muitas vezes de um poderoso líder africano.
Autora do livro Combater Duas Vezes, Mulheres na Luta Armada em Angola (editora Verso da História, 2015), Margarida Paredes recorda o primeiro encontro ao Observador. “Quando cheguei à delegação do MPLA, no bairro Bakongo, ele estava sentado na secretária que existia à entrada do edifício, como chefe da representação do MPLA na capital congolesa. Ficou muito surpreso com a minha chegada, não sabia quem eu era (fui a única portuguesa a chegar ali sem ser atrelada a um homem), mas mostrou-se mais educado do que desconfiado”. Falava “baixinho e pausadamente — cuidado, ele não era bonzinho, podia ser muito duro”.
Coube à guerrilheira ensinar português a Tatiana (o casal falava russo entre si) com a ajuda de um dicionário de russo/francês. A vida em Brazzaville era difícil. A casa “pequena, sem comodidades nenhumas”, onde viviam com a filha, ficava dentro dos terrenos da delegação do MPLA. Tinham que esperar pelos navios soviéticos, como o UniÁfrica, que descarregava não só munições de armas ligeiras, revólveres e fardas como também roupas civis e medicamentos.
“Naquela altura, viver em condições precárias era uma das exigências da luta da libertação. Com as cisões da Revolta Activa e a Revolta do Leste, a URSS transferiu a ajuda financeira para a Revolta Activa e passámos mal, houve fome no MPLA de Agostinho Neto”. Desse tempo, a agora investigadora na Universidade Federal da Bahia, no Brasil, guardou na memória um “homem de família, muito caseiro, um bom pai – a Isabel era muito querida por José Eduardo dos Santos”.
Assim continuou ao longo dos anos: fez da primogénita milionária, colocou-a à frente da poderosa Sonangol, alegadamente favorecendo-a nos negócios com o Estado, como a Procuradoria-Geral da República de Angola escreveu no processo de arresto dos bens de Isabel dos Santos, no fim de 2019. Mas isso foi muito depois. Quando Tatiana invocava, rindo, os tempos da casa com bichos de Brazzaville, viviam em Luanda, para onde tinham regressado em junho de 1975.
O economista Filomeno Vieira Lopes viu José Eduardo dos Santos “chegar de táxi, vindo do aeroporto, e dirigir-se para o prédio do Bureau Político do MPLA”. Ficaram a viver numa moradia com quintal e de recheio espartano (“só um ou dois sofás” lembra uma amiga da família dessa época, sob anonimato), que tinha sido do português Carlos Manuel Aguiar, filho do dono da Jomar (indústria de madeira), na rua que hoje se chama Comandante Stona.
A casa branca com arcadas ainda lá está, mesmo ao lado da do ex-primeiro-ministro que JES humilhou publicamente, Marcolino Moco. Os guardas das casas vizinhas dizem que pertence agora a Isabel dos Santos.
Foi nesta casa que a família acompanhou a subida de JES dentro no partido a partir de 1975. Assumiu a coordenação do departamento de Relações Exteriores do MPLA, visitou várias capitais africanas, ganhando contactos internacionais (que lhe seriam de grande valor mais tarde, não só no governo como nos negócios da família, com muitas ligações ao estrangeiro), e acumulou com o departamento de Saúde.
Nesse ano ascendeu ainda a ministro, o que teve algum impacto económico na vida dos três. Isso não impediu que uma festa de aniversário de Isabel não tivesse mais do que dois baldes de gelado do Tarique, dono do Baleizão – uma amiga contou ao Observador que teve de ir a casa buscar bolinhos e bolachas, comprados com senhas de embaixadores, na Angodip, a loja dos diplomatas, para compor a mesa.
Uma coisa não mudara: José Eduardo dos Santos continuava pouco sociável. Amigas da primeira mulher que preferem não ser identificadas dizem ao Observador que, por regra, se mostrava distante, “quase desprovido de afectos – não olhava as pessoas nos olhos quando falava”. Isabel era uma excepção: quando chegava a casa “sorria-lhe e fazia-lhe uma festa na cara”. Para a filha, arranjava tempo: ensinou-a a ler e a escrever, revelou Isabel dos Santos na entrevista à Televisão Pública de Angola, TPA.
No mesmo sentido segue uma vizinha de Alvalade, hoje com 80 anos: “Ele passeava, muito vaidoso, com a filha pela mão, trazia-lhe lápis de cores quando ia ao estrangeiro”. Nessa altura, “toda a gente passava algum tipo de necessidade, coisas do partido único, e quem recebia uma prenda mostrava aos outros” esclarece o filho, que trabalha numa próspera multinacional. “Eram pessoas agradáveis, a Isabel tinha uma bicicleta e vinha brincar para a nossa rua; muito tímida, não se misturava muito com as outras crianças, apenas com uma amiga, a Magda”, continua ele, que chegou a deixá-la em lágrimas depois de lhe puxar o “jimmy” [termo angolano para carapinha alta].
A mãe ainda se lembra de Tatiana em roupão cor-de-rosa, a chorar, porque tinha discutido com José Eduardo dos Santos: “Ele gostava muito de mulheres”. Era uma família simples — “Ele próprio lavava o seu carro” — e as coisas só “começaram mesmo a melhorar quando ascendeu a Presidente, mas mesmo assim nada por aí além”, recorda. Aí, já os pais de Isabel se tinham separado, ela ficou em Alvalade com Tatiana, uma mulher muito focada (“a filha saiu à mãe”). “Uma vez, numa das boleias que o meu pai lhe dava para a Sonangol, onde ela trabalhava, a Tatiana disse-lhe: ‘O Zé Eduardo pode ser Presidente, mas eu sou engenheira’”, lembra.
Pode ter sido como engenheira que Tatiana (de quem não se conhece uma única fotografia) trabalhou depois no Ministério dos Petróleos, mas não terá sido nessa qualidade que mais tarde entrou no mundo dos negócios dos diamantes, numa empresa criada com a filha, a Tais, com as letras iniciais do nome das duas, já a partir de Londres. A firma chegou a deter 24,5% da Ascorp, que teve o monopólio da compra e venda dos diamantes.
O primeiro carro comprado com garrafas de vinho
A partir de 11 de novembro de 1975, dia da independência de Angola, JES ficou mais próximo de Agostinho Neto. Primeiro ministro das Relações Exteriores da então República Popular de Angola, obteve o reconhecimento internacional do governo e a entrada do país nas Nações Unidas em 1976. Nomeado vice-primeiro-ministro de 1977 a 1978, ocupou a seguir um cargo importantíssimo, o de ministro do Plano. No partido, ascendia a secretário do Comité Central para a Educação, Cultura e Desportos, para a Reconstrução Nacional e para o Desenvolvimento Económico e Planificação (de 1977 a 1979).
Nunca se lhe conheceram grandes bibliotecas nem preferências literárias, mas nessa fase, antes ainda de o MPLA falar no assunto, José Eduardo dos Santos lia Poder Popular (editado pelo Movimento de Esquerda Socialista). Tinha-o pedido emprestado a Margarida Paredes, a quem Nuno Teotónio Pereira enviara um exemplar de Lisboa.
Mesmo sendo ministro, José Eduardo dos Santos ainda não conseguira levar os pais para a “cidade do asfalto”. Margarida Paredes ia com Tatiana levar-lhes “mantimentos, roupas e dinheiro”: “Viviam num dos casebres de pau-a-pique mais pobres do musseque Rangel, sem mobiliário, dormiam na esteira e cozinhavam num fogareiro”.
Iam no carro de Margarida, José Eduardo só comprou um automóvel algum tempo depois e graças a um esquema engendrado por Tatiana. “Com a guerra às portas de Luanda, e depois de os brancos portugueses terem saído, não havia comida”. A portuguesa recebia todas as semanas um caixote que a mãe lhe enviava de Lisboa, pela TAP: “Mandava-me tudo, queijo, bacalhau, sempre duas garrafas de vinho. Eu distribuía o que tinha pelos amigos. A Tatiana sabia sempre quando o meu caixote chegava e pedia-me o vinho. Ela só estava interessada nas garrafas para servirem como moeda de troca. Nessa altura, quem arranjasse uma grade de cervejas era rico e o vinho, então, tinha um grande valor. E eles trocaram as garrafas de vinho por um carro que tinha mudanças automáticas.” Foi Margarida, que nem tinha carta de condução, mas apenas uma autorização do Ministério da Defesa, quem ensinou Tatiana a conduzir.
A russa, “talvez porque vinha habituada à cultura da URSS, usava esquemas de mercado informal, via as oportunidades de fazer dinheiro e aproveitava-se da situação”. “Não tenho a menor dúvida de que a Isabel foi educada pela mãe nesse sentido”, pensa a ex-guerrilheira do MPLA. Uma outra amiga ri-se ao pensar que Tatiana foi a primeira pessoa a quem ouviu falar em dólares: “Ela adquiriu as cadeiras do episcopado e queria que eu vendesse aquilo em dólares!”
A história dos ovos que vendia aos 6 anos de idade, invocada por Isabel dos Santos para atestar o seu jeito para o negócio desde nova, “é mesmo verdade”, assegura o vizinho de Alvalade. A mãe confirma: “Quando JES era ministro do Planeamento, Tatiana já vendia os ovos, conseguidos através dos cartões das lojas”.
Era o tempo da candonga, como se dizia, onde Rafael Marques vê a génese dos mecanismos de corrupção em Angola. “Nesse período, tínhamos outro sistema de segregação. Havia lojas para os dirigentes, outras para os cooperantes, para os estrangeiros — sobretudo europeus —, a loja para diplomatas, a dos quadros (a loja complementar que levou muita gente à universidade para ter cartão) e havia as lojas do povo. Tínhamos acesso a dois ou três quilos de açúcar por mês, para cada agregado familiar, um litro de óleo e pouco mais do que isso”.
Era “o modelo soviético, que gerava todo o tipo de esquemas de corrupção”. “Traficavam-se os ovos, bens alimentares e essenciais que era o que as pessoas mais procuravam, calçado e roupas”. Depois “houve um crescendo”, o sistema passou “a ser feito de biliões” num “modelo com o nome de socialista mas que era extremamente corrupto”.
Durante alguns anos, José Eduardo guiou esse automóvel, ainda longe dos dias em que se deixava conduzir dentro de um aparatoso esquema de segurança. Quando o Presidente saía, as outras viaturas que se cruzassem com a comitiva tinham que encostar na berma e colocar as mãos no volante na posição “10 e 10” — se alguém não o fizesse, arriscava-se a ser baleado. Um português que não cumpriu estas regras terá sido morto assim, alvejado pelos seguranças, escreveu o diplomata português Seixas da Costa no seu blogue.
O motorista José Teixeira lembra-se bem de como era: “Um dia antes, as ruas por onde ele ia passar já estavam todas fechadas. O ex-Presidente não se movia dentro de Luanda sem uns trezentos tropas, isto tudo ficava cheio de militares”, comenta, apontando para as principais vias de Luanda, pouco depois de deixar a Corimba, onde JES construiu um grande condomínio no Morro da Luz, para onde acabou por levar a mãe.
Entretanto, a vida pessoal de José Eduardo dos Santos tornava-se mais atribulada. “Depois da entrada em Luanda da primeira delegação do MPLA, em novembro de 1974, os camaradas ficaram deslumbrados com as jovens urbanas, sofisticadas e cultas e a maior parte abandonou as companheiras da mata (ou do maquis) e casaram-se com jovens mestiças e negras das cidades. José Eduardo não escapou a esta lógica e em 1977, quando era ministro das Relações Exteriores, engravidou a secretária [“Necas”, Filomena de Sousa], a mãe de Zenú [José Filomeno dos Santos]”, revela Margarida Paredes.
A relação com Tatiana, que começara a ter dificuldades em Brazzaville, ia piorando. “Ela tinha muito medo que ele a mandasse de volta para a Rússia”, confidencia uma amiga. Isso ele não fez, mas, “quase na mesma altura de Necas, apaixonou-se loucamente pela Milucha [Maria Luísa Perdigão Abrantes], uma mestiça extrovertida”. “Ela apareceu com ele num jantar e, enquanto dançavam, nós, as amigas, ríamo-nos: bonito mas muito magrinho, bem-educado mas não simpático, muito chochombo [sem graça, introvertido], apagado, o oposto dela, divertida, animada, exuberante”.
Margarida defende que foi Milucha quem conquistou José Eduardo e não o contrário. “Sei que foi ela que o seduziu porque eu e mais três amigos fizemos uma aposta na qual ela se comprometia a conquistá-lo num mês. Ela ganhou a aposta”. Teve com ele dois filhos — Welwitschea José (Tchizé) e José Eduardo Paulino dos Santos (Coréan Dú) – mas não um casamento. José Eduardo dos Santos chegara surpreendentemente a Presidente da República e ela não podia ser primeira-dama.
“Escolheram o mais caladinho”
Quando Agostinho Neto morreu subitamente em Moscovo em 1979, o MPLA anunciou no aerograma urgente n.º 522 que José Eduardo dos Santos o sucedia na direção do partido, do país e das FAPLA (Forças Armadas Populares da Libertação de Angola). Seria uma escolha provisória até encontrarem um novo líder, mas o transitório quase se eternizou: durou até 2017.
Porquê ele quando havia figuras mais emblemáticas? Também aqui as explicações divergem. Rafael Marques, fundador da organização não governamental Ufolo — Centro de Estudos para a Boa Governação, jornalista ativista que há poucos anos esteve preso por denunciar a corrupção do regime mas que em 2019 foi condecorado pelo atual Presidente de Angola, João Lourenço —, argumenta que mais de metade dos quadros do MPLA fora dizimada no 27 de Maio de 1977. “Sem muito por onde escolher, havia que encontrar um nome que não acirrasse mais os ânimos e, como ele era muito calado e pouco se sabia das suas verdadeiras opiniões, servia”.
Ter boas relações com os soviéticos (a quem viria a abrir caminho para os diamantes, o petróleo e o gás), que não estariam muito felizes com a crescente autonomia de Agostinho Neto aos diktats russos, não ser do Huambo nem mulato ou branco, também ajudou. Lopo do Nascimento, o primeiro primeiro-ministro após a independência, revelou que foram aconselhados por dois países amigos, o Congo e a Argélia, a não escolherem nem militares nem mestiços, numa entrevista dada ao Expresso em 2015. “Foi mais difícil convencer o próprio José Eduardo a aceitar, porque ele não queria”.
Só aparentemente, contrapõe Marcolino Moco. “Naquele tempo, não ficava bem num partido marxista-leninista andarmos aos saltos a dizer que queríamos ser isto ou aquilo”.
Para este ex-primeiro-ministro, a nomeação não foi surpresa, pois “ele era o delfim de Agostinho Neto, o ministro do Plano, o mais relevante no governo já que não havia primeiro-ministro”. “Estava melhor colocado na grelha de partida do que os outros, apesar de terem sido aventados nomes como os bakongos Pascoal Luvualu e Ambrósio Lukoki. Neto, já doente, deixou José Eduardo dos Santos como Presidente em exercício e à frente do partido (que tinha ascendente sobre o governo) deixou Lúcio Lara. Depois pesaram outros factores, como o ele ser muito introvertido, pouco se lhe ouvia falar, não se sabia o que pensava”.
Margarida Paredes segue na linha de Moco: “Antes de Neto morrer, ele já era apontado como o seu sucessor. Só Ambrósio Lukoki lhe fazia alguma sombra. Assisti ao corrupio de dirigentes em casa do Lúcio Lara para designarem José Eduardo como o novo Presidente. Pareceu-me que foi uma solução tranquila para todos. Os homens do Presidente Neto, Lara e Iko Carreira, auto-excluíram-se porque não eram negros. Creio que também estavam convencidos de que José Eduardo, como era muito apagado, seria manipulável e eles continuariam a governar. Saiu-lhes o tiro pela culatra”.
Lara acabou por ser afastado, como veremos mais à frente, “Iko foi enviado para o curso de marechal na URSS e Lukoki para o Canadá — tinha começado a limpeza dos homens do Presidente Neto e da era dele”.
Não foram os únicos a subestimarem José Eduardo dos Santos. Jonas Savimbi, o líder da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), qualificava-o então assim à CIA: “Fraco, passageiro, inofensivo”. A história, como se sabe, mostrou o contrário.
O embaixador português António Monteiro gosta mais de referir outros motivos para a opção José Eduardo dos Santos: “Tinha as qualidades que lhe permitiam fazer a síntese entre as duas fações existentes, a de Lúcio Lara e a de Lopo do Nascimento, e sarar as feridas do 27 de Maio. Mais: fora ministro dos Negócios Estrangeiros, era ministro do Plano, afável, circunspecto, empenhado, não dominante”.
Não, “ele não fazia a ponte”, contraria Justino Pinto de Andrade, que lutou pela independência e foi preso duas vezes pela PIDE (uma delas no Tarrafal), uma pela FNLA e outra pelo MPLA (na Revolta Ativa, fação do MPLA crítica do pendor autoritário de Agostinho Neto, o que lhe valeu três anos de prisão). O agora líder do Bloco Democrático, um dos seis partidos que integram a segunda maior força da oposição angolana (coligação Casa-CE), frisa que houve antes uma confluência: “Todos pensaram que podiam manipulá-lo. No MPLA a pior coisa que o inimigo pode fazer é ter ideias e expendê-las. E o Zé Eduardo é uma pessoa muito reservada. Fala pouco. Observa mais. Como entre os que manifestavam opinião havia disputa, escolheram o mais caladinho de todos”.
Lopo do Nascimento “não tinha hipóteses, era do interior, não pertencia ao círculo apertado de dirigentes do MPLA que tinham estado fora de Angola”. Lúcio Lara “tinha o problema da cor da pele” e a animosidade dos quadros que quiseram estudar no estrangeiro: “Era ele que dava as bolsas e recusava-se a mandar estudar fora pessoas com a 4ª classe, dava preferência a quem tinha pelo menos o 5º ano do liceu — como José Eduardo, que não terá acabado o liceu. Como em geral os mulatos tinham mais formação, o que deriva da praxis colonial, eram eles que iam para fora e os outros, com a 4ª classe e vindos das vilas não gostavam.”
Mas, afinal, que posição assumira José Eduardo dos Santos no 27 de Maio de 1977, em que Agostinho Neto calou um suposto golpe de Estado e atentado com a ajuda das tropas cubanas, tendo sido assassinadas milhares de pessoas ligadas ao MPLA? (A Amnistia Internacional chegou a estimar 30 mil, mas o número é controverso, muitos corpos terão sido lançados aos rios ou ao mar e de penhascos, por exemplo).
A questão é tudo menos pacífica. Agostinho Neto nomeou, antes da matança, José Eduardo para fazer um inquérito sobre Nito Alves pedido por este e por José Van-Dunem: havia ou não fracionismo no MPLA ? Do relatório, nunca oficialmente apresentado (segundo Nito Alves, JES nunca o ouviu) só se conheceu uma palavra: “Inconclusivo”.
Um antigo membro do MPLA que esteve preso e foi torturado sob as ordens de JES, e falou com o Observador com reserva de identidade, está convencido que o inquérito foi entregue ao Bureau Político. “Não se sabe mesmo de que lado é que José Eduardo estava. É um político florentino, com um arsenal de técnicas e ambiguidades que parece estar com todos mas não está com ninguém a não ser consigo próprio”, adianta o hoje administrador de uma empresa estrangeira.
Quando José Eduardo dos Santos recebeu ordem de prisão
Na Vila Alice, num fim de tarde em Luanda, Justino Pinto de Andrade revela ao Observador pormenores vindos de 1972 que poderão explicar o papel de JES em 1977. “Quando veio da União Soviética, e desceu para o Congo, não estava muito agradado com o que encontrou. Mas ficou no Bureau, era adjunto de Lúcio Lara em Brazzaville. E quando os contestatários de Lara o prenderam no quarto de banho, o papel do José Eduardo foi enigmático”.
Explica melhor: “O responsável das comunicações do MPLA era o engenheiro Fernando Castro Paiva — que depois integrou a Revolta Ativa — e tinha dois adjuntos, José Eduardo e Evaristo Quimba. Castro Paiva recebeu a notícia de que Lara estava a ser sequestrado pelos companheiros e disse a José Eduardo que comunicasse ao Presidente Neto, que estava na Tanzânia, o que estava a acontecer em Brazzaville. E parece que ele assobiou para o lado. Não agiu com a presteza que seria expectável naquela altura. Significa que José Eduardo, em princípio, devia estar, em parte, também de acordo com algumas das reivindicações feitas pelos contestatários”.
Estes “apresentaram depois as suas reivindicações a Neto mas ele afastou liminarmente a escorificação da direção. Segundo eles, a própria Maria Eugénia Neto [mulher de Agostinho Neto] tinha que ser afastada porque não queriam uma primeira-dama branca numa Angola independente. Exigiam que Lúcio e Ruth Lara também saíssem. E Neto reagiu: ‘Camaradas, não me revejo numa organização com esta cultura’. Até terá usado a expressão ‘pelos vistos isto agora também é a UPA [União das Populações de Angola, que esteve na origem da FNLA, o outro movimento de libertação de Angola, a par do MPLA e da UNITA], já não é mais o MPLA’”, referindo-se ao slogan do movimento ‘Um só povo uma só nação, não há raças, não há tribos’”.
O grupo de comandantes, liderado “pelo Monstro Imortal [Jacob João Caetano]”, não gostou do que ouviu. E Neto disse: “Se é assim, eu abandono a direção, escolham outro presidente”. Segundo Justino Pinto de Andrade, “a resposta deles foi: ‘Muito bem, já temos outro, o camarada José Eduardo’”. Ou seja, JES “sentou-se pela primeira vez na cadeira de presidente do MPLA em 1972” num curtíssimo período de tempo, “aquele que durou o pedido de demissão de Agostinho Neto, que depois lhes deu a volta e voltou atrás”. É por isso que Justino Pinto de Andrade diz que “José Eduardo foi presidente do MPLA duas vezes”.
Ora, continua o sobrinho de Mário Pinto de Andrade, o primeiro presidente do MPLA (ou não, nos últimos anos o partido tem dito que foi Ilídio Machado): “Alguns desses indivíduos que fizeram isto ao Lara, deram corpo depois ao 27 de maio de 1977. José Eduardo estava no Lubango, recebeu a notícia do que se passava em Luanda e ficou com a ideia de que os revoltosos tinham ganho. Reuniu a delegação do MPLA que o acompanhava e propôs uma mensagem de apoio ao camarada Nito Alves [antigo ministro do Interior de Angola, expulso do partido em 1977 e que liderou o suposto golpe de Estado falhado]. Alguns disseram que era precipitado fazer um comunicado (naquela altura) com esse teor porque as coisas ainda não estavam resolvidas nem clarificadas. E houve esta contenção”.
Só que, acrescenta o professor universitário, “isto ficou na memória de alguns e transmitiram-no à segurança de Estado”. E continua: “Numa reunião do Bureau Político do MPLA, Onambwé [Henrique Santos] que era o segundo homem da segurança de Estado — na prática era o verdadeiro líder da DISA, a antiga polícia secreta angolana —, denunciou José Eduardo e deu-lhe ordem de prisão”. Mas Agostinho Neto “travou Onambwé e disse-lhe para ter calma, porque senão em breve não havia quem pudesse estar sentado ao lado de alguém”. “Neto percebeu que se deixasse o terreno completamente livre para Onambwe seria um desastre, porque daquela mesa [de dirigentes] não escapava ninguém”, afirma.
É por causa desse passado de 1972 que “o relatório de JES foi inconclusivo, dizendo não haver evidências de fracionismo”: “Já havia uma certa cumplicidade. Não que José Eduardo fosse um homem de golpes, não, mas alguns desses indivíduos tinham estado com ele no problema de Lara”.
Também Paulo Inglês considera “fundamental” o papel de JES, figura misteriosa, no 27 de Maio: “A postura dele é ambígua, é uma caixa de vidro embaciada que partilhava a ideologia dos nitistas e depois de escolhido para Presidente vai tentar recuperar os fiéis de Neto.”
Margarida Paredes vai em sentido contrário. No seu livro, escreve que a “lógica de recuperação e inclusão das vítimas do 27 de Maio começou durante a 1.ª República, pouco tempo depois de José Eduardo dos Santos ter sido nomeado Presidente, quando o novo estadista acabou com os fuzilamentos e libertou muitos presos políticos”.
A investigadora considera que “a política de clemência e a integração na governância do MPLA dos presos políticos do 27 de Maio levou a que hoje circule em Luanda uma nova narrativa, sugerindo que o antigo ministro das Relações Exteriores teria sido um simpatizante das teses de Nito Alves e ilibando-o de responsabilidades na repressão”. Alguns colocam-no mesmo “numa das reuniões clandestinas com o malogrado comandante”.
Em declarações ao Observador, Margarida Paredes interroga-se: “Como é que o responsável pelo relatório que investigou o ‘Fraccionismo’ teria tido simpatias pelo nitismo? Não me parece”. E acrescenta um episódio ocorrido durante a repressão do 27 de Maio (que se alongou por cerca de dois anos): “O seu melhor amigo de longa data, “Loy”, Pedro de Castro Van-Dunem, foi preso pela DISA num tanque de guerra e José Eduardo mostrou bastante coragem em mandar parar o tanque e tirá-lo de lá. Possivelmente salvou-o da morte”. Quando chegou a Presidente, nomeou-o ministro e teve várias pastas ao longos dos anos, até morrer em 1997; o seu nome foi dado a uma grande avenida de Luanda.
Ironia das ironias, em dezembro de 1977 o MPLA mudou de nome no seu primeiro congresso — passou a ser MPLA-Partido do Trabalho — e assumiu-se oficialmente como marxista-leninista, uma das reivindicações de Nito Alves. Nessa reunião, José Eduardo dos Santos cimentou a sua posição no partido, aliado de peso no seu percurso de poder e enriquecimento dos seus: reeleito membro do Comité Central e do Bureau Político foi nos dois anos seguintes secretário para a Educação, Cultura e Desportos, para a Reconstrução Nacional e para o Desenvolvimento Económico e Planificação. Até que chegou a Presidente.
Para o indecifrável José Eduardo dos Santos, nada importava o que fazia dele o sucessor de Neto. No discurso da tomada de posse, optou pela modéstia pragmática: “Não é uma substituição fácil. Nem me parece uma substituição possível. É apenas uma substituição necessária”.
Um Presidente com buracos nas meias
A prazo ou nem por isso, o novo Presidente da República de Angola chegou ao Futungo de Belas no fim de Setembro de 1979. Entrou sozinho na casa que foi de um rico português, perto do Atlântico, com as ilhas do Mussulo e de Cazenga em frente. Tatiana não o acompanhou. Milucha também não. Pelo menos oficialmente, confirma ao Observador Domingos Bandeira, o mais antigo funcionário do palácio presidencial.
Já se tinha separado de Tatiana, a quem terá dado uma vivenda e uma pensão, além de um subsídio à filha Isabel, escreveu o general soviético Valentin Varennikov, que ajudou o MPLA na guerra contra a UNITA, nas suas memórias, citadas pelo jornalista José Milhazes no blogue Da Rússia.
Mas o partido não admitia que Milucha se casasse com José Eduardo dos Santos. Uma amiga reconhece ao Observador que provocava alguns escândalos — é conhecido o episódio em que puxa os cabelos a Necas, a secretária de José Eduardo, então ministro do Plano —, o que desagradava ao Comité Central do MPLA. Anos mais tarde, um vídeo em que Milucha, no casamento da filha de Bornito de Sousa, de repente se mete à frente do casal presidencial para dar dois beijos a JES ignorando a primeira-dama, correu as redes sociais.
Margarida Paredes justifica a proibição de outra forma: “Como o primeiro marido de Milucha, o médico Tilu, foi fuzilado na repressão à revolta nitista do 27 de Maio, ela não encaixava no papel de primeira-dama imaculada, sem um passado problemático. A DISA tê-la-à avisado que, se quisesse o papel de amante, tudo bem, mas se tencionasse casar-se com ele, a matavam. Nessa altura, José Eduardo dos Santos ainda não tinha feito a limpeza na DISA e esta achava-se todo-poderosa”.
A verdade é que nunca se casaram. Milucha frequentava o Futungo de Belas e levava algumas amigas com ela. Uma delas recordou ao Observador a visita em que beberam cervejas com um José Eduardo ainda bem diferente do homem que vestiria fatos Hugo Boss: “Mal arranjado, nada sofisticado, deixava ver um buraco no calcanhar das meias castanhas que usava”.
Presidente de um país em guerra, a sua vida pessoal continuava problemática. Milucha não tolerava as suas infidelidades. E ele cada vez mais parecia merecer o adjetivo que se ia repetindo, “mulherengo”: em 1988 nasceu-lhe mais um filho, José Avelino, de uma quarta mulher, Maria Bernarda Gourgel.
E, no entanto, Margarida Paredes não o vê como um conquistador. “Tímido com as mulheres, não sabia dizer ‘não’ quando assediado. E podia ter tido as que quisesse porque sempre foi considerado o homem mais bonito do MPLA”.
Havia uma graça ligada à liberdade de costumes no MPLA: “Dizia-se que valia tudo menos tirar olhos e que só existiam três dirigentes que não eram polígamos. O Agostinho Neto, que não tinha oportunidade porque era controlado pelos seguranças, o Lúcio Lara, que não tinha tempo porque só tinha olhos para o partido, e o José Eduardo, porque não queria”, ri-se Margarida Paredes.
Fosse como fosse, as relações com as mulheres não o afastavam dos graves problemas que tinha pela frente. “Herdara o poder em circunstâncias particularmente difíceis, com o país em guerra civil intensa”, frisa Patrício Batsîkama, e “um sistema que economicamente não funcionava, o petróleo ainda sem a expansão que se viria a registar”, observa António Monteiro.
Do marxismo-leninismo para o “eduardismo”
Tinha 37 anos e prometeu reconstruir o país. Tentou-o, à sua maneira, mesmo que parecesse ser à maneira do partido, erguendo sem entraves um império pessoal e familiar.
Primeiro, dominou o MPLA. Aparentemente obediente à cartilha de Agostinho Neto, construiu sem pressas o “eduardismo”: libertou os fracionistas presos, integrou-os no regime, enxotou da roda do poder potenciais adversários, afastou quem não tinha estado do seu lado e corrigiu a orientação ideológica do movimento.
Até meados dos anos 80, seguiu o modelo marxista-leninista enquanto fazia a guerra com a ajuda dos amigos cubanos e soviéticos. “José Eduardo dos Santos viveu num colete de forças até 1985, com muitos indivíduos da direção do MPLA a exigir que ele não se desviasse nem uma virgulazinha do que Agostinho Neto pensava”, assinala Justino Pinto de Andrade. Mas, nesse ano, “foram todos varridos numa verdadeira purga interna no ‘congresso dos argelinos’ (assim se chamavam os quadros não negros, alguns fugidos de Portugal, que fruto dessa sua coloração Neto mandava estacionar na Argélia, e iam descendo a conta-gotas, à medida que ele geria as resistências internas no MPLA que não os queriam na luta dentro de Angola).”
A partir de 1986, JES ia-se organizando para uma economia de mercado enquanto procurava a paz com a ajuda dos amigos africanos e, mais tarde, dos portugueses. Já se percebia então que estava a criar relações indispensáveis na África Austral e na região dos Grandes Lagos, que mais tarde o admiraram como “homem sábio”.
O embaixador António Monteiro lembra-se bem dele nas negociações para o acordo de paz de Bicesse: “Calmo, sempre com coragem para tomar decisões e fazer cedências que pareciam fraquezas sem o serem. Inteligente, interpretava muito bem as diferentes correntes do MPLA. Conseguiu uma simbiose feliz com este partido muito forte. O que mais me impressionou foi que cumpriu sempre os compromissos assumidos. Nunca o vi em estados alterados, emocionais, mas sempre pausado, sereno na maneira como falava e encarava o andamento das negociações e a previsibilidade do que poderia acontecer”.
Este retrato “de homem de Estado, racional, simpático ainda que distante”, saía reforçado por contraste com a postura intempestiva de Jonas Savimbi, durante o período que levou às eleições: “Muito impositivo, mais emocional, alterava o tom de voz, chamava-nos para nos criticar, para nos dizer que tínhamos falhado, que estávamos contra ele, sempre de dedo apontado a dar reprimendas; José Eduardo não, chamava-nos para perceber o que se tinha passado, ouvia as pessoas, estudava o interlocutor”.
António Oliveira, o padre português que negociou do lado da UNITA com o MPLA ainda antes do 25 de Abril, tem a mesma opinião. “Fui o intermediário de Savimbi quando as negociações ainda eram secretas em 1974, e em 1990 era, naturalmente, persona non grata para o regime de Luanda. Quando viajei para Angola com a Cruz Vermelha, no C-130 perguntaram-me se estava disponível para falar com José Eduardo dos Santos. Eu, que já me desencantara com o que se estava a passar na Jamba desde 1989, com o desaparecimento de certas pessoas, aceitei”, relata ao Observador.
“Fiz críticas e ele soube ouvir”, foi muito diferente do que se passara com Savimbi. “Em 1989, quando eu manifestei ao líder da UNITA o meu desagrado com a queima das feiticeiras, a morte de famílias inteiras dos seus opositores, etc., ele não gostou. N’zau Puna [próximo de Savimbi, homem forte da UNITA de que foi comandante, mais tarde deputado do MPLA e embaixador de Angola no Canadá] avisou-me: ‘Se não fosse um padre católico já não saía daqui com vida’. José Eduardo dos Santos ouvia e dialogava”.
O padre, que foi para Angola em 1970 como missionário na zona de domínio da UNITA, sublinha que o ex-Presidente era “um político muito lúcido e inteligente, que soube mudar perante a queda do mundo comunista e aproximar-se do mundo ocidental; moderado, tentou reconciliar o regime com a Igreja”. Diretor do Colégio Universitário Pio XII durante 27 anos, sublinha “a praxis assumida por JES assim que tomou posse: começou a devolver o património da Igreja”. Uma atitude “muito diferente da de Agostinho Neto, que perseguia a Igreja e lhe nacionalizara os bens (o primeiro Presidente de Angola até vaticinava: ‘Daqui a 50 anos não haverá cristão nem igreja nenhuma aqui em Angola’)”. O padre católico lembra: “Nessa conversa que tive com JES, ele assumiu que no tempo do Neto eram os cubanos e soviéticos que mandavam”.
Aberta a economia ao mercado depois da queda do muro de Berlim, o Presidente tirou razões a Washington para o combater na guerrilha – na balança dos negócios, o petróleo do MPLA pesava mais do que os diamantes da UNITA.
Despedidas as tropas de Cuba (do outro lado também o contingente sul-africano de apoio a Savimbi se retirava), estava pronto para enterrar o partido único e experimentar o multipartidarismo, ouvindo a ala mais moderada liderada por Lopo do Nascimento e Marcolino Moco. Este realça que essa foi a única real mudança que viu nele em quase quatro décadas de poder: “Fez isso sempre no seu calculismo. Aliás, há dez anos disse que tinha sido obrigado a adoptar este tipo de democracia ocidental”.
Abertura sim, mas devagar: eleições só num “futuro longínquo”, repetia José Eduardo dos Santos a José Eduardo Moniz, na RTP, em Janeiro de 1990. Nos festejos da independência da Namíbia, a 21 de Março desse ano, pediu a Durão Barroso, então ministro dos Negócios Estrangeiros, para os portugueses fazerem a ponte com a UNITA.
Antes disso, já se incomodara com Frederik Willem de Klerk, disse à SIC em 2013 numa das suas pouquíssimas entrevistas: “No contexto da procura de uma solução global para o conflito regional da África Austral, encontrei-me com o novo presidente da África do Sul. Devíamos falar de Angola e ele diz-me: ‘Assim como eu estou a negociar com Nelson Mandela, é a sua vez de negociar a paz com Jonas Savimbi’. Eu respondi assim: ‘Mas Nelson Mandela é um herói da luta pela libertação nacional, um indivíduo que esteve preso 27 anos, passou sacrifícios a lutar pela independência e pelos direitos civis do seu povo. Não é o caso de Jonas Savimbi’. A discussão interrompeu-se aí e separámo-nos”.
O casamento com Ana Paula Santos e o “selo do povoamento”
A vida sentimental de Zédu não foi linear, mas isso nunca pareceu melindrar o Presidente. À excepção de uma mulher que veio já no século XXI dizer ser sua filha e o obrigou a desmenti-la publicamente, o silêncio, sobretudo neste campo, foi sempre regra inviolável.
O partido, porém, queria um Presidente dentro dos cânones. Casado e não com Milucha. Ele escolheu Ana Paula dos Santos, 18 anos mais nova, uma das hospedeiras de bordo do avião presidencial. Apesar de se ter dito ateu, a Igreja casou-os em maio de 1991 (Ana Paula estava grávida), e um ano depois o Papa João Paulo II abençoou-os.
O casamento deu lugar a anedotas. “Nós dizíamos que ele parecia o ‘Selo do Povoamento’, porque tinha casado ou vivido com uma mulher branca, outra mestiça e outra negra”, sorri Margarida Paredes.
O foro pessoal ganhava assim alguma acalmia com Tatiana em Londres, Necas em Estocolmo (secretária da embaixada) e Milucha nos Estados Unidos. Mas não desapareceram rumores de outros casos amorosos do Presidente e de outros filhos para além dos nove que são do conhecimento público.
Mais tarde, houve ainda o assumir de um filho que durante muito tempo não fez parte da família, José Avelino Gourgel dos Santos, “Joess” que foi criado por Paulo Kassoma, homem de confiança de José Eduardo dos Santos (primeiro-ministro entre 2008 e 2010 e presidente da Assembleia Nacional de 2010 a 2012 e secretário-geral do MPLA durante a vice-presidência de João Lourenço).
“Engravidou a namorada e depois pediu ao amigo para casar com ela e aceitar o filho como seu”, assegura uma amiga de Milucha. O rapaz teria uns 12 anos quando Zédu o mandou chamar, por “imposição de Ana Paula dos Santos”, contou ao Observador uma outra fonte próxima da família. “O miúdo ficou revoltado. Ele andava com o meu afilhado no colégio francês e descreveu-lhe que José Eduardo estava sentado atrás de uma secretária e disse: ‘Vem, meu filho, aos meus braços, que sou teu pai’”, revelou a amiga angolana. “Joess” chegou a namorar, em 2020, uma das filhas do atual Presidente João Lourenço, Cristina Giovanna.
De tantas mulheres, só uma o terá acompanhado quando a página do poder virou e a glória do poderoso patriarca entrou em fase decrescente: Milucha, que, segundo uma amiga disse ao Observador, o visitava na “Casa Amarela” depois de 2017, quando Ana Paula dos Santos já não vivia com ele, e que publicamente o defendeu das acusações de corrupção, já em 2020. Disse que o fazia por “convicção”, não por ter sido favorecida por JES. “Fui a pessoa mais humilhada pelos serviços dele”, disse numa entrevista, enquanto Tchizé acusava Ana Paula dos Santos de se achar “dona de Angola” e de ter obrigado a mãe a “exilar-se” durante 21 anos nos EUA.
“José Eduardo foi muito apaixonado por Milucha quando estava no Futungo de Belas. Apesar da oposição do MPLA, ainda a conseguia levar para comícios. Ligava-lhe sempre quando ia para o estrangeiro e era muito romântico”, continua a amiga da jurista que, depois de voltar a Angola, foi presidente da Agência Nacional de Investimento Privado, em 2014, incluída na lista das 20 “mulheres que fazem mexer o continente” e em 2018 uma das 50 mulheres de negócios mais influentes de África, tendo sido a primeira africana a integrar um dos boards da Câmara de Comércio Estados Unidos-África).
Zédu cuidou sempre bem dos filhos: quase todos estudaram no estrangeiro — a maioria no Reino Unido — e os conhecidos do grande público tiveram negócios ligados ao governo angolano. “Aos outros ele também deu bens”, garante um ex-ministro de JES. Mas houve uma outra família que mereceu a sua cuidadosa e permanente atenção: aquela que lhe garantiu o poder — o MPLA.
O telefonema de Cavaco Silva para salvar Fátima Roque
Em 1992, José Eduardo dos Santos apagou “Partido do Trabalho” do MPLA, “Popular” do nome do país, e a Assembleia do Povo passou a Assembleia Nacional. Preparava-se para eleições, alinhando pelo diapasão ocidental.
Assinado o Acordo de Paz em Bicesse, perante a troika – Portugal, Estados Unidos e URSS, a 31 de Maio de 1991–, disputou votos com Savimbi. A UNITA dominava mais de 70% do território, uma sondagem norte-americana dava-lhe a vitória.
José Eduardo não perdeu a serenidade, aprecia António Monteiro, que lhe perguntou: “O que vai fazer, se perder?”. A resposta: “Olhou para mim espantado e disse: ‘Vou para casa’”. O embaixador português diz que “não parecia apegado ao poder”, mas não foi isso que o futuro mostrou.
A campanha do MPLA, organizada por marketeers brasileiros, foi muito bem pensada, elogia o antigo embaixador português na ONU: “O slogan era ‘Angola no coração’ e José Eduardo apareceu em público, contra o seu hábito, muito tranquilizador, bem enquadrado no apelo aos afectos, à convivência de todos, à inclusão dos outros”.
Uma vez mais, a sua postura ganhava na comparação com a de Savimbi, excelente orador mas muito agressivo. “Fez uma campanha desastrosa, fardado, apelando à violência, recusando os nossos conselhos. Dizia: ‘Vocês em Lisboa sabem como falar para os portugueses, eu sei como falar para os angolanos’”, lamenta o padre Oliveira.
Pelos vistos não sabia. José Eduardo dos Santos venceu com 49,57% e as regras acordadas pediam uma segunda volta. Savimbi, com 40,6% dos votos, não aceitou os resultados, a guerra recomeçou e dentro de Luanda viveu-se o horror. “Foi a experiência mais traumática da minha vida, abria a janela e via pessoas a morrer. Apelei ao cessar-fogo, o governo estava disposto a ceder mas a UNITA, que desencadeou tudo, não aceitou”, lamenta António Monteiro.
Houve “uma escalada de violência nas ruas, o MPLA distribuiu armas à população e foram três dias terríveis”. Falou-se em decapitação da UNITA, 10 mil a 50 mil pessoas, opositoras ao MPLA, morreram no que ficou conhecido como o “Massacre do Dia das Bruxas” de 30 de outubro a 1 de novembro de 1992.
Há quem ilibe José Eduardo dos Santos desta carnificina, dizendo que, tal como no Maio de 77, não queria derramamento de sangue. Um empresário português que conhece bem Angola e que só aceitou falar sob anonimato, sublinha que JES tentou travar os generais que queriam arrasar a UNITA: “Pedia-lhes para terem calma, para esperarem, alertava-os para o facto de terem a comunidade internacional com os olhos fixos neles”.
Exemplifica com o que aconteceu no hotel Tivoli, onde se hospedava a dirigente da UNITA Fátima Roque — que deixara de ser professora universitária em Lisboa para se candidatar pelo partido de Jonas Savimbi — e então mulher de Horácio Roque, que, em pânico, ligou ao banqueiro a suplicar ajuda porque a iam matar. O português telefonou ao então primeiro-ministro Cavaco Silva (de quem JES sempre gostou e ouviu, diz fonte próxima do ex-Chefe de Estado português ) e a Durão Barroso, que falaram com José Eduardo dos Santos e este terá tido uma ação na libertação da intelectual da UNITA. Não, “José Eduardo não é um sanguinário”, conclui o empresário português. Sim, “José Eduardo é um sanguinário, o massacre da UNITA foi a mando dele” discorda uma angolana com ligações a altas figuras do regime.
Fátima Roque admite, ao Observador, que JES “a protegeu”, mas que “mandou matar muitos amigos” — quase todos os dirigentes da UNITA foram assassinados. “Acho que escapei porque era mulher, branca e rica”. Não esquece o trajeto que fez quando os diplomatas António Franco e António Monteiro a conseguiram tirar do hotel Tivoli e levar para o hotel Império: “O carro ia aos ziguezagues para não passar por cima dos corpos”. Ficou presa durante mais de três meses no Império, com os ninjas à porta do quarto de onde não podia sair.
“Houve muita pressão para eu ser libertada, de Cavaco e Barroso a Mário Soares [então Presidente da República], mas também da comunidade internacional. Até o sub-secretário norte-americano foi num avião privado de Washington a Luanda pedir que me deixassem ir em troca da revisão da política dos EUA para Angola. E José Eduardo dos Santos não aceitou. Ele só me libertou quando quis, na verdade”.
Marcolino Moco levanta outra “hipótese plausível” para o sucedido em 1992. JES sabia que na segunda volta das eleições corria sérios riscos de não vencer e tinha em Savimbi um adversário que “era um orador extraordinário, tinha um partido forte, ainda armado, e em democracia usufruía da vantagem dos números porque tinha a maior tribo”. Por isso, José Eduardo dos Santos teria feito com que o instigassem a ir para “onde o podia ganhar: a guerra”. Lembra que “Savimbi era muito inteligente mas muito emotivo, fervia em pouca água” e já não contaria com a ajuda dos sul-africanos e dos Estados Unidos.
Marcolino Moco tem razão, em parte, contrapõe António Monteiro, para quem JES demonstra, mesmo depois de 1992, muita flexibilidade. “Dizia que a paz não tinha preço e que estava disposto a ceder o que fosse necessário. Ele, que ganhou as eleições [sem maioria absoluta], achou que era importante para o processo de paz partilhar o poder”. Fez isso, diz António Monteiro, nas negociações de Adis-Abeba e Abidjan e em 1994 — já os Estados Unidos tinham reconhecido o governo de Luanda e o MPLA ganho o Huambo de Savimbi — em Lusaca, de onde saiu o Governo de Unidade Nacional. “Com esta decisão afastou o princípio do winner takes it all”, assegura o antigo embaixador português.
A polémica do quadro e da peça
Nos dez anos que se seguiram ao “Massacre do Dia das Bruxas”, Zédu desdobrou-se em duas frentes: a da guerra e a das negociações. E, claro, nada de eleições, o tempo era o das armas, os dias serviam para consolidar a sua força dentro do partido.
Ricardo Soares de Oliveira definiu, num artigo da revista Africa Report, o caminho traçado: José Eduardo dos Santos, “astuto jogador de microgestão política”, centralizou o seu poder ao longo dos anos, “se necessário fosse neutralizando o seu próprio governo e partido”. Dito de maneira mais crua pelo hoje administrador de uma empresa estrangeira que foi do MPLA: “Fez uma política de terra queimada, cilindrou ciclicamente todos os que lhe poderiam fazer frente, mesmo que amigos fiéis”.
Em Luanda, diz-se que “era uma pessoa que não gostava de ter segundas pessoas”, afirma Justino Pinto de Andrade.
JES ficou sem contestação interna. “O 27 de Maio funcionava como uma espada de Dâmocles, ninguém se queria meter em qualquer coisa que levasse a ser fracionista, a disciplina de um partido que domina as forças armadas funcionava mesmo”, esclarece Marcolino Moco.
Este ex-primeiro-ministro sabe o que é ser eliminado politicamente. Trabalhou no governo quatro anos com o ex-Presidente, que descreve como “um homem autodisciplinado, senhor de uma memória de elefante, que esquecia pouco, tinha um certo espírito vingativo, muito organizado, criador de equipas de trabalho que preparavam as suas intervenções ”. A relação dos dois era formal, “nada de jantares como o Agostinho Neto fazia, nada de graças, com ele era tudo sério”. Foi exonerado quase a acabar o mandato, sem aviso prévio, depois de uma guerra surda no parlamento em que José Eduardo dos Santos lhe tentou retirar os poucos poderes executivos que tinha. Passou ainda pela humilhação de um movimento patrocinado por JES, o Movimento Nacional Espontâneo, festejar a sua saída numa manifestação em que lhe chamaram “bailundo” (referência por vezes usada para significar burro, atrasado).
Há muitos outros casos. Políticos que se destacavam, amigos ou não, viam-se empurrados do círculo do poder. O caso do general João de Matos, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas (FAA), peça fundamental na guerra e demitido um ano antes de ela terminar, é frequentemente citado. Alguns eram acusados de inexistentes tentativas de golpe de Estado e enviados para o estrangeiro, como embaixadores. Assim sucedeu a um amigo de JES, que terá tido um papel fundamental dentro do Bureau Político para que fosse escolhido para suceder a Agostinho Neto e foi durante muitos anos o número 2 do eduardismo: Alexandre Rodrigues “Kito”.
Outros eram mais tarde chamados a desempenhar novos cargos, desde que em nada ofuscassem o Presidente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o general Fernando Miala, chefe do Serviço de Inteligência Externa que esteve preso durante dois anos. Um telegrama da embaixada norte-americana em Angola para o secretário de Estado dos EUA revelado na Wikileaks usava a sua “ascensão e queda meteórica” como “um raro vislumbre das maquinações e lutas de alto nível na política de sucessão em Angola”. Em 2012 voltou como emissário especial do Presidente — hoje é o poderoso chefe dos Serviços de Inteligência e Segurança do Estado de João Lourenço.
Assim, sem precisar de pendurar cabeças nos candeeiros da praça pública como o ditador do Uganda Idi Amin, José Eduardo dos Santos ia aniquilando politicamente os adversários reais ou potenciais.
Já o fazia desde 1982, como o atesta um exemplo emblemático com o histórico Lúcio Lara, na polémica da peça e do quadro (conhecida como “Maka da peça e do quadro”), na que é chamada a primeira “purga eduardina”. No 40.º aniversário de José Eduardo dos Santos, um grupo de funcionários fez “uma brincadeira”, qualifica Marcolino Moco, para saudar o Presidente: uma peça teatral e um quadro em que o então Presidente, desportista, vestido de fato de treino, tocava viola com raparigas à volta. A caricatura não foi recebida com humor e Lúcio Lara e sua mulher Ruth, acusados de estarem por trás da ideia, foram afastados, tal como Ambrósio Lukoki, ministro da Educação, e Costa Andrade (Ndunduma), poeta, antigo guerrilheiro e biógrafo de Agostinho Neto. Pior destino teve Rui Galhanas, o autor do quadro: a prisão.
Os jovens do ANC fuzilados e a saia desfiada para salvar alguns
Em 2000, num grande jantar em Havana durante a cimeira dos G77, José Eduardo dos Santos, em conversa com Fidel Castro, desabafou, segundo uma testemunha: “Estou cansado, quero-me ir embora. Por mim, saía já”. Não saiu nos 17 anos seguintes.
A paz chegou finalmente em 2002. Foi uma morte, nunca bem esclarecida, que lhe abriu a porta. A 22 de fevereiro, Jonas Savimbi caiu numa emboscada no mato. O governo apressou-se a repetir que morreu em combate. Mas sucederam-se os testemunhos de que Savimbi não teria oferecido resistência, até se teria rendido, mas que as ordens de José Eduardo dos Santos eram para não o deixar vivo.
O seu cadáver rodeado de moscas foi exibido sem pudor nas televisões. Junto de uma árvore, farda verde desalinhada, boxers à mostra, sem botas, a marca de um tiro no pescoço e muitas outras feridas. O número de tiros não era consensual, variava entre 7 e 15, e durante muitos anos a UNITA pediu um inquérito às circunstâncias da morte do líder, já que se fosse verdade que ele estava desarmado, ferido e não resistira, o seu assassinato prefigurava um crime de guerra pelo qual José Eduardo dos Santos teria de responder.
Quatro dia depois, José Eduardo dos Santos viajou para Washington, para se reunir com o Presidente George H. W. Bush. Iniciava-se uma nova era em Angola. José Eduardo dos Santos podia finalmente reler, com gosto, o poema de Agostinho Neto: “Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera”.
O Presidente unificou o país, integrou os militares da UNITA e da FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) nas Forças Armadas, e os generais do partido inimigo no esquema de poder. “Alguns de nós, do MPLA, ficámos arredados da distribuição da riqueza em prol dos da UNITA”, declara Marcolino Moco. Ao mesmo tempo, iniciou um ambicioso processo de reconstrução nacional com a ajuda da China e do Brasil, recuperando (mal, veio a ver-se depois) estradas e cidades e lançando projetos, muitos deles megalómanos, como uma rede de aeroportos injustificável, por exemplo.
Por causa da forma como geriu o processo de paz, muitos, como Patrício Batsîkama, autor do único livro conhecido sobre o ex-Presidente, José Eduardo dos Santos e a Ideia da Nação Angolana, olham para ele como o “congregador de todos, o convergente, o homem que alcança a identidade territorial e o Estado-Nação”. Não cedeu aos gritos de “morte ao inimigo derrotado” do interior do MPLA.
Segundo Batsîkama, da mesma forma que, em 1977, José Eduardo dos Santos “argumentou que não havia necessidade de matar inocentes”, agora buscava a reconciliação nacional, não a vingança total. Por isso, escutou o aplauso internacional pela “forma pacificadora” como conduzira o processo. As palmas não são unânimes. Muitos não esquecem que matou o líder da UNITA, depois de já ter decapitado o movimento em 1992, e que comprou os restantes dirigentes.
“Acho sempre graça às pessoas que fazem esses pronunciamentos [de que não extinguiu a UNITA pelo sangue], e que devem esquecer que mesmo Hitler tinha judeus no seu próprio exército — porque não é possível, humanamente, eliminar todos. Mas é só olharmos para o historial da UNITA e vamos ver o quanto se perdeu de vidas. E não estamos aqui a falar de vidas da UNITA: estamos a falar de vidas de angolanos”, insurge-se Rafael Marques.
Nem o argumento de que isso aconteceu durante a guerra atenua o seu olhar condenatório: “E depois, o que é que restou? É só vermos o estado em que se apresentaram os dirigentes sobreviventes da UNITA. Alguns mal se conseguiam pôr de pé. Que ameaça representavam? E hoje vemos a oposição que temos, que ameaça representa?”, pergunta.
O professor universitário Filomeno Vieira Lopes rejeita a ideia de JES nunca ter mandado matar um inimigo. “É evidente que isso não é líquido. As coisas nem sempre são a quente. Muitas são feitas a frio”, conclui o professor universitário que foi demitido da Sonangol a mando de JES em 1991 (antes de a petrolífera “entrar num esquema fraudulento de dar 10 milhões de dólares para a campanha do MPLA”) e que foi violentamente espancado pela polícia em 2012, já como dirigente do Bloco Democrático.
Durante anos, José Eduardo dos Santos auto-intitulou-se e foi aclamado como o arquitecto da paz. Houve mesmo um movimento para lhe atribuir o prémio Nobel da Paz, ideia que ainda hoje arrepia os seus opositores, e não só, para quem ele “tem as mãos cheias de sangue, e não apenas do inimigo militar”.
No “não só” entra uma prisioneira na cadeia da Estrada de Catete que falou com o Observador sem revelar o nome. “Jamais esquecerei os gritos dos que iam para a morte em 1983.” Quem eram? Membros do ANC (Congresso Nacional Africano), da África do Sul, que estavam em Angola a receber treino na guerrilha para combater o apartheid. Problema: recusaram-se a lutar contra a UNITA, numa guerra alheia. Estavam 40 detidos na prisão da Estrada de Catete e, de acordo com Rafael Marques, o próprio Thabo Mbeki, Presidente sul-africano entre 1999 e 2008, sofreu aí várias sevícias.
Desses, 26 foram fuzilados e os outros salvos porque a interlocutora do Observador conseguiu denunciar o caso à embaixada do Reino Unido: “Roubámos papel e lápis na enfermaria, escrevemos o nome dos do ANC que ali estavam, desfiámos um bocado da saia comprida de uma prisioneira, com os fios enrolámos a lista que escondi no soutien e, durante a visita da minha irmã, ao abraçá-la passei o papel para o decote dela”. Ainda se emociona ao falar de Grace e Kate, que anos mais tarde lhe trouxeram a Luanda uma carta de Winnie Mandela a agradecer-lhe a sua intervenção.
Outros 70 jovens do ANC não tiveram a mesma sorte: foram executados em Malanje pelos mesmos motivos. “Não, José Eduardo dos Santos não é um homem de paz”, indigna-se a ex-prisioneira.
“É um senhor da guerra, tanto quanto Savimbi. Ele não fez a paz, ganhou a guerra matando o inimigo e venceu porque teve o apoio do mundo inteiro. Fez uma política de terra queimada”, insiste Rafael Marques, o jornalista que é o 70º Herói Mundial da Liberdade de Imprensa.
“Os homens e mulheres que morreram efetivamente por este país e tiveram como resultado o abandono, são os que fizeram a paz”, defende Rafael Marques. “A paz também foi resultado do cansaço dos angolanos”, acrescenta o ativista na sua voz muito pausada na sede da Ufolo. “E as pessoas, no seu quotidiano, mesmo sem um projeto de reconciliação nacional, preferiram reconciliar-se entre si.”
Numa coisa Luaty Beirão e Patrício Batsîkama concordam. Ainda não há paz. “Pode haver paz das armas, mas não há paz no prato”, afirma Luaty. “As pessoas não têm comida, não têm emprego, não têm educação, não têm saúde”, mantém o activista. “A paz não é o calar das armas. É a criação de uma cultura de paz, é uma construção, é um dado” afirma o historiador e antropólogo.
Os esquadrões da morte e os corpos atirados aos crocodilos
A imagem de paladino da paz desgastou-se nos últimos anos do governo de JES, reconhece Marcolino Moco. “A repressão aos jovens activistas que foram presos, os corpos de outros dois que encabeçavam uma manifestação atirados aos crocodilos e alguns desaparecimentos, por exemplo, mostram como o ex-Presidente endureceu o seu carácter pacifista”.
O ex-dirigente do MPLA refere-se à perseguição feita aos jovens no conhecido processo dos 15+2 em que 13 foram presos por estarem a discutir um livro (Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura, Filosofia Política da Libertação para Angola, do académico angolano Domingos da Cruz, uma adaptação de From Dictatorship to Democracy de Gene Sharp) e levou alguns deles à greve de fome. O braço de ferro foi intenso e só seriam libertados depois de muita pressão internacional.
Há outros casos que ensombram a parte final da gestão de José Eduardo dos Santos, principalmente a partir de 2012, quando o medo dos angolanos perante um sistema opressor parecia ter diminuído (na mesma proporção em que a população jovem se munia de telemóveis e ligação à internet) e algumas vozes romperam o silêncio asfixiante em que viviam.
Em Maio desse ano, um grupo descontente com o governo reunido em casa de um rapper foi brutalmente agredido com barras de ferro e catanas.
Em novembro de 2013, um opositor da política de JES foi assassinado quando, dentro da lei, estava a colar um cartaz anti-Governo. O regime reprimiu o funeral: um contingente de polícia armada saiu para a rua com tanques e um helicóptero. Não vigiou apenas — usou gás lacrimogéneo para acabar com a marcha de protesto pacífico que seguia para o cemitério.
Dois anos depois, em Maio de 2015, terá ocorrido um massacre da seita A Luz do Mundo, no Huambo. A polícia quis prender o líder, Julino Kalupeteka, e dispersar a multidão que se juntou no cimo de um monte à espera do fim do mundo mas houve confrontos e quatro agentes morreram. As forças policiais retiraram-se para regressar e disparar sobre os fiéis. Os números de mortos são muito diferentes consoante as fontes de informação: as oficiais falam em 13, testemunhas oculares em 700 e a UNITA em 1008. O assunto chegou ao alto comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que pediu uma comissão independente para investigar o sucedido, logo recusada pelas autoridades angolanas. Analistas angolanos viram nesta acção da polícia um aviso aos umbundos do Huambo que tradicionalmente estão do lado da UNITA.
Mais recentemente, numa investigação feita entre abril de 2016 e novembro de 2017, Rafael Marques denunciou os “esquadrões da morte”. Agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC) tinham executado sumariamente 92 jovens, alegadamente delinquentes. O ativista referiu, na altura, que estas práticas extrajudiciais tinham um pendor político. Já em 2018, no mandato de João Lourenço, o ministro do Interior veio negar a existência dos esquadrões admitindo excessos de alguns agentes. Porém, este não foi caso único — Rafael Marques noticiou no Maka Angola, por exemplo, a morte de João Dala, que não resistiu aos ferimentos de 15 horas de uma tortura atroz, com alicates e catanas, pela SIC.
Mas muitos, como um executivo angolano de uma multinacional e crítico veemente do regime de JES, continuam em 2020 a defender o seu papel moderado e pacifista: “Ladrão, sim; assassino e sanguinário, não”. Atribuem antes os atos de repressão e os assassinatos a excesso de zelo dos seus subalternos e não a ordens expressas do então Presidente.
“Será que ele mandava fazer isso? Ou as pessoas para lhe agradar agiam assim ou sentiam ‘este está a incomodar o chefe, vamos dar um jeito?”, interroga-se David Mendes, deputado independente pela UNITA e presidente da associação Mãos Limpas, que durante anos se opôs ao antigo Presidente.
Invocando o tempo em que trabalhou com José Eduardo dos Santos como secretário de Estado do Ambiente (2000 a 2008) conclui: “Não acredito que mandasse matar pessoas.” Refere que “até os ditadores muito suaves” têm “sanguinários que os cercam, não toleram e por vezes trazem informações deturpadas”. O advogado já o disse uma vez e repetiu-o ao Observador: “JES era refém dos militares, ele podia ter o poder, mas o poder real era deles. Porque é que ele saía com 300 homens armados? Era ele que queria ou os generais diziam que só estava seguro com eles?”.
Mário Pinto de Andrade, secretário para os Assuntos Políticos e Eleitorais do Bureau Político do MPLA, não tem dúvidas de que “o maior legado do ex-Presidente é a paz”. “Quem viu este país, em guerra, como eu — que andei no interior —, nunca mais quer guerra. A própria oposição respeitava-o, até a UNITA. Mas o seu governo, do ponto de vista económico, cometeu erros. Temos de saber diferenciar o trigo do joio. Ele próprio reconheceu, pediu perdão aos militantes e aos angolanos no congresso e disse que só não erra quem não governa”.
Nada desmente o papel que JES desempenhou para a paz do país, insiste António Monteiro, para quem ele “fez a construção da nação mais ainda do que a construção do Estado”. No entanto, ressalva, “deveria ter deixado há uns anos o poder, antes de ser conotado como o Presidente da corrupção”.
Os milhões dos generais
Ora aqui está um assunto incontornável do reinado de José Eduardo dos Santos. Há quatro décadas que a imprensa nacional e estrangeira denuncia casos e expõe práticas de corrupção. Angola tem sido mesmo um dos países mais corruptos do mundo a julgar pelos números da Transparency International. Os últimos dados, anunciados no início de 2020, apresentaram uma melhoria considerável: teve 26 pontos em 100 na escala da transparência, passando da 165.ª para a 146.ª posição dos 176 países analisados.
A organização, com sede em Berlim, atribuiu este progresso (apesar de estar muito abaixo da média, que é de 43 pontos) à luta contra a corrupção, bandeira da governação de João Lourenço que veio abalar José Eduardo dos Santos. A filha Isabel viu as suas contas e bens arrestados e foi acusada pela Procuradoria da Justiça de Angola de desviar fundos públicos, de branqueamento de capitais e de gestão danosa, sendo alvo de vários processos criminais e cíveis em que o Estado reclama 4,4 mil milhões de euros. O filho Filomeno Santos, Zénu, foi condenado a cinco anos de prisão pela transferência para o estrangeiro de 500 milhões de dólares do Fundo Soberano de Angola que ele dirigia.
Combate à corrupção: a bandeira de João Lourenço que se tornou numa espada de dois gumes
Pela primeira vez, José Eduardo dos Santos é citado num despacho judicial em Angola. O Procurador-Geral da República, ao determinar o arresto dos bens da filha Isabel e do genro Sindika Dokolo (que morreu a 29 de outubro último num acidente de mergulho no Dubai), refere várias vezes que o ex-Presidente de Angola autorizou o desvio de cerca de 115 milhões de dólares do erário público e favoreceu a filha no comércio de diamantes.
Como se não bastasse a investida judicial, em janeiro deste ano surgiu o escândalo “Luanda Leaks”: o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação revelou mais de 715 mil ficheiros, que detalhou alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido que lhes terão permitido retirar verbas públicas de Angola através de paraísos fiscais.
José Eduardo dos Santos não é diretamente visado nestes processos, mas, diz uma fonte próxima da família, “é como se fosse, quem toca nos filhos, toca nele”. Ficou “tão perturbado e chocado com este duro golpe” que uma fonte do Bureau Político do MPLA adiantou ao Observador que foi aconselhado a não ver televisão.
“Talvez, a nível da Europa, não se tenha a noção do que é ter o filho homem preso. Para nós, em África, é muito. É humilhante“, comenta David Mendes, advogado que investigou a fortuna de JES e denunciou esquemas de corrupção do regime, mas que agora vira as críticas noutra direção. “Não me venham dizer que são os filhos de José Eduardo dos Santos que tomaram conta do país: não é verdade. Havia uma elite do partido no poder”.
David Mendes, que tentou impugnar a nomeação de Isabel dos Santos para a presidência da Sonangol, soma razões: “Conhecemo-nos todos em Angola. Sabemos quem são os ricos nesta terra“.
Mas não se saltem capítulos. Como é que Angola se tornou num “Estado Negócio” — como Filomeno Vieira Lopes o qualifica — onde a corrupção é encarada como normal?
Grande parte da raiz do problema estava no próprio José Eduardo dos Santos, sustentam ativistas como Rafael Marques: “O seu legado é não só de repressão, opressão e saque do povo; o mais importante é a destruição da moral da sociedade angolana. Foi o líder que mostrou o caminho para a corrupção, defendendo-a como ação política, institucionalizando-a”. Todavia, acrescenta: “Também não vamos ser injustos no sentido de dizer que era só José Eduardo dos Santos, porque todos se puseram a fazer patifarias. Porque sabiam que em última instância, historicamente, quem seria julgado seria Dos Santos”.
Enquanto o administrador de empresas que conhece bem o MPLA e Angola não tem dúvidas — “Ele era o zénite da corrupção, comandava o sistema cleptocrata” —, Patrício Batsîkama procura enquadrar: “A cleptocracia era claramente visível e não só na família presidencial. O Presidente precisava de uma classe consistente de empresários angolanos, tínhamos independência política mas não económica. Muitos receberam muito dinheiro, mas levaram o país à falência, dirigiram Angola como se fosse a boutique deles. Pensaram que o dinheiro era para gastar em casas, carros e mulheres, e não, era para investir”.
Esta estratégia de distribuir riqueza para criar um tecido empresarial nacional foi várias vezes assumida por José Eduardo dos Santos. “Depois de a Guerra Civil ter terminado, na ânsia de criar uma burguesia endinheirada angolana e de distribuir a riqueza de Angola pela elite militar e política ele fez um discurso onde defendeu ‘a acumulação primitiva do capital’ e a adesão a uma lógica capitalista do mercado. JES nunca foi inocente, foi tudo deliberado“, afirma Margarida Paredes ao Observador, a partir do Brasil.
O economista Sérgio Calundungo diz que “ainda está para aparecer quem criou e pôs na cabeça de Dos Santos a ideia da acumulação primitiva de capitais”. O coordenador do Observatório Político e Social de Angola refere como essa teoria é “tão antiga e tão pouco estruturada”, apesar de ter sido objeto de livros no país que diziam “quão estratega José Eduardo dos Santos estava a ser” ao falar nisso.
O que cresceu não foi uma classe empresarial forte, mas, nas palavras de Ricardo Soares de Oliveira, “uma classe de rendeiros” que monopolizou os grandes negócios, erguendo fortunas pessoais sem alguma vez terem investido nos sectores produtivos. “A elite no poder converteu-se entusiasticamente ao capitalismo de compadrio”, assistindo-se a uma “privatização do poder”, continua este especialista em assuntos angolanos.
José Eduardo dos Santos não só escancarou a porta à corrupção e a institucionalizou como, mais do que condescender, a normalizou e legitimou, com frases como “nenhum angolano vive só do seu salário”, recorda José Eduardo Agualusa.
Não se julgue, porém, que os mecanismos de corrupção centrais nasceram com a abertura ao capitalismo. Já na década de 80, à conta da guerra, José Eduardo dos Santos gatinhava nesse chão ao montar um sistema propício à fraude.
O longo conflito armado e uma administração pública esvaída de quadros no processo de descolonização deram-lhe argumentos para assumir “o controlo do fluxo das receitas petrolíferas” e “criar um Estado paralelo centrado na Presidência e na Sonangol”, fazendo-a reportar diretamente ao Futungo, escreve Ricardo Soares de Oliveira no livro Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil (Ediçõe Tinta da China 2015): “Ao manter a Sonangol fora da esfera de ação do partido-Estado, JES adquiriu um extraordinário grau de poder discricionário sobre mais de oitenta por cento das receitas públicas, as quais caíam em catadupa pela estrutura do poder abaixo — nas condições impostas por ele”.
Certo de que “dinheiro é sinónimo de poder”, como diz Justino Pinto de Andrade, assegurada a fonte dos petrodólares, agiu em conformidade — usou-o para dominar rapidamente os únicos dois poderes que lhe poderiam fazer frente: o militar e o partido. Transformou o MPLA num partido-Estado, reconverteu os generais em empresários, passando a imagem de recompensa pelo que sofreram na guerra, mensagem que até é aceite pelos opositores. “Enquanto angolano, não posso aceitar que indivíduos que lutaram pela independência e bem-estar deste país fiquem a viver na miséria ou que os estrangeiros tenham um nível superior ao deles”, concede David Mendes.
Em 2017, Emílio Odebrecht, que estava a ser julgado no Brasil no caso Lava Jato, concretizou este modo de agir. Um dos donos desta grande construtora que durante o “eduardismo” deu cartas em Angola revelou que José Eduardo dos Santos lhe pedira para a empresa ajudar ex-generais a serem empresários.
Se a distribuição da riqueza por alguns já se faz nos anos 80, o impulso para o desvio do dinheiro e recursos públicos também. Ricardo Soares de Oliveira dá como exemplo “a tentativa de gestão de um saco azul através do comércio de petróleo da Sonangol no Reino Unido” que não teria sido possível sem “o aval político a alto nível”.
No entanto, continua o académico, foi em 1992, com o ressurgir da guerra, que “o sistema paralelo sustentado pelo petróleo se tornou ‘essa construção gótica de acumulação de riquezas‘” como lhe chamou o economista e consultor internacional Olivier Vallée. Um edifício que floresceu no período da paz, sob o lema de reconstruir Angola, e que só viria a começar a ruir quando as rendas do petróleo caíram a pique, na segunda década do século XXI.
O irmão que vendia açúcar, as jogadas de milhões e as piscinas cheias de champanhe
Até 1992, José Eduardo dos Santos não privilegiava a família, assegura uma amiga de duas das suas mulheres. E terá sido só a partir da união com Ana Paula dos Santos, em 1991, que a vida de JES se começou a encher de luxos. Já o irmão era Presidente “quando Avelino ainda vendia bebidas e açúcar ao quilo numa cantina do bairro Rangel”. José Teixeira, antigo trabalhador numa plataforma de petróleo, lembra-se bem dele neste musseque onde também vivia.
“O Avelino tinha uma casa humilde, era uma pessoa simples. Quando o irmão o ia visitar todo o bairro ficava cheio de militares. Nós nunca víamos o ex-Presidente, ele tinha sempre medo do povo, não andava livremente como o Presidente português Marcelo Rebelo de Sousa. Chegava nos carros de vidros fumados e tinha sempre os guardas em volta, a escondê-lo, andava com as tropas todas”. Sabe que JES tentou tirar o irmão várias vezes do Rangel mas em vão, ele recusava sempre. Até que lhe propôs uma casa no projeto de habitação Nova Vida, uma urbanização de muitos prédios, com rendas acessíveis. “Ele respondeu que não iria sem os seus amigos do bairro, cinco ou seis ‘mais-velhos’. Zédu arranjou casa para todos e ele foi”.
Mas, para além deste episódio, Avelino terá sido um dos poucos familiares próximos que não beneficiou visivelmente da posição do irmão — o mesmo não se poderá dizer do genro, o general Bento Kangamba, casado com a filha Avelina (que foi secretária pessoal do tio e hoje é diretora adjunta do Gabinete do Presidente João Lourenço), ou do filho Catarino, que foi secretário-geral da Casa Militar. A partir da década de 90, José Eduardo dos Santos foi incluindo paulatinamente a família na oligarquia baseada na renda do petróleo, em que o poder político estava ao serviço de negócios privados.
Não foram apenas os filhos a ter acesso ao mundo empresarial ou a posições de vantagem: a irmã Marta dos Santos terá recebido 800 milhões de dólares (mais de 700 milhões de euros à taxa de câmbio da altura) do BESA (Banco Espírito Santo de Angola) para fazer um projeto imobiliário em Talatona, segundo Paulo Morais, da Associação Transparência e Integridade. Uma senhora com quem “não se brinca” avisou o ex-banqueiro português Ricardo Salgado, a quem o sócio de Marta dos Santos, o empreiteiro José Guilherme, ofereceu 14 milhões de dólares como uma “liberalidade”.
O irmão Luís Eduardo dos Santos foi administrador não executivo da TAAG e viu-se envolvido num caso de corrupção com uma companhia espanhola, a Indra, que esteve nas eleições de 2008, 2012 e 2017. O jornal El Confidencial revelou que o irmão mais novo de JES alegadamente recebeu 108 mil euros de comissões em 2008 e que em 2012 desapareceram mais de nove milhões de euros em contas na Suíça.
Estes são apenas dois exemplos de ligações familiares extra-filhos de JES no circuito do poder. Há uns anos, os jornalistas angolanos fizeram uma lista onde figuravam mais de 16 ministros, secretários de Estado ou administradores de empresas estatais que eram primos ou sobrinhos do ex-Presidente e da ex-primeira-dama, Ana Paula dos Santos.
Beneficiou a família, mas também o inner circle ou aqueles que quis neutralizar ou dominar, como os generais, os juízes, os jornalistas, os empresários ou os adversários políticos — um antigo quadro da UNITA confirmou ao Observador que os homens do MPLA “chegavam com malas cheias de dinheiro” para os convencer a mudar de partido. “Mostrou ser um homem que sabia ler a natureza humana, essa é a inteligência dele; sabe que as pessoas são vaidosas e gostam de poder e ele ‘comprava-as’ assim”, analisa Paulo Inglês.
“Criou uma rede clientelar estabelecida no seio da administração pública, exército e sectores estratégicos da sociedade em geral, dando bens e benesses para garantir uma teia de cumplicidades, fidelidades e dependências”, observa a antropóloga Margarida Paredes. Simultaneamente, desenvolvia uma “grande capacidade de criar alianças com diferentes grupos sociais e étnicos que depois descartava, quando essas ligações o começavam a ameaçar”, continua a investigadora.
Se dúvidas restassem, veja-se a estimativa do Banco Mundial no final do mandato de JES: 32 mil milhões de dólares (quase 27 mil milhões de euros) vindos das exportações do petróleo não entraram nos canais legais mas sim nas condutas que abasteceram as lealdades servis das elites militares, políticas e económicas ao então Presidente.
Foi já nos anos 90 que a privatização da guerra permitiu o enriquecimento de uma elite com ligações à escala global. Vários escândalos a envolverem JES e a sua entourage vieram a público, sendo o mais famoso o Angolagate, com o filho do então Presidente francês, François Mitterrand. A venda de armas soviéticas e francesas em 1993/95 em troca de petróleo, cujas avultadas comissões foram alegadamente pagas a José Eduardo dos Santos e a figuras próximas, pôs durante mais de uma década Luanda e Paris a ferro e fogo. Ou ainda o “Triângulo das Bermudas”, esquemas financeiros que envolviam um offshore para permitir a angolanos bem posicionados o acesso a dinheiro. O FMI, num relatório citado por Ricardo Soares de Oliveira no seu livro, calculou que desapareceram 4,22 mil milhões de dólares (3,5 mil milhões de euros) das finanças públicas de Angola entre 1997 e 2002.
Em 1999, um relatório explosivo da organização de direitos humanos britânica Global Witness denunciava uma teia intrincada de corrupção que partia do Futungo e se entrançava com intermediários estrangeiros de cadastro nada recomendável ligados ao Irão-Contras ou ao Kremlingate. “Um Despertar Cru — o Papel das Indústrias Petrolífera e Bancária na Guerra Civil Angolana e a Pilhagem dos Recursos do Estado” não usava meias palavras: “Há uma privatização ‘de facto’ da guerra, que está a gerar vastos lucros para generais de topo dentro das Forças Armadas Angolanas, bem como para os negociantes de armas internacionais. Em vez de contribuir para o desenvolvimento de Angola, o petróleo angolano está diretamente a contribuir para acentuar ainda mais o declínio”.
O favorecimento de alguns agudizou-se depois da morte de Savimbi. “De 2002 para cá, o Presidente fez a gestão do Estado a favor da sua pessoa e da sua família”, analisa Marcolino Moco. “Caiu no logro de desfazer as instituições do Estado, quebrou as comportas legais para tudo poder fazer na atribuição da riqueza”, acusa.
Era o tempo da paz, do “Angola começa agora”, da reconstrução, que abria as portas a mais corrupção, com obras que fizeram do país um estaleiro gigante permanente, muitas delas injustificadas, não fiscalizadas e mal executadas.
Eram os tempos loucos dos generais, que já tinham começado nos anos 90, com fortunas gastas em “farras, mulheres e muitos excessos” diz ao Observador, sob reserva de identidade, um luso-angolano que esteve nas milícias do MPLA e trabalhou para um dos grandes generais. Conta histórias macabras de mortes no século XX — “Matei muitos, hoje só queremos a paz ” — de medo e de violência mesmo depois da guerra. “Ou aceitavam o que dizíamos e iam na vertical ou recusavam e iam na horizontal”. Mas recorda também três exemplos com aviões que revelam o desvario do dinheiro que se manteve até este século: um avião, de um dos generais, chegou a Luanda cheio de garrafas de vinho caríssimas embarcadas em França e Portugal; outro desapareceu para sempre cheio de dinheiro a caminho de uma província; outros enchiam-se todos os fins de semana de angolanos ricos que iam a Lisboa fazer compras.
Este antigo combatente nas fileiras do MPLA relata ainda como o jogo trazido pelos chineses se enraizou nas altas esferas do dinheiro angolano. “Faziam jogadas de um milhão, via-se mesmo que não lhes tinha custado a ganhar o dinheiro, iam uma vez por mês jogar ao Casino de Lisboa.” E fala também em festas sem limites: “Participei numa, nos anos 90, no fundo da zona verde, no bairro de Alvalade, em que a piscina estava vazia e nós fomos abrindo garrafas de champanhe e despejando-as lá para dentro até a encher por completo”.
“Em Angola, a corrupção mata”
O problema, alerta Rafael Marques, é que, “em Angola, a corrupção mata: a população é privada de recursos básicos para a sua sobrevivência”. Por isso, diz que José Eduardo dos Santos “nunca foi magnânimo“: “Um homem que mata o seu povo pela corrupção, pela incúria, pela incompetência e pela repressão não pode ser um homem magnânimo. Quem se salvou com essa magnanimidade de José Eduardo dos Santos? Aqueles que, dentro do seu próprio partido, fizeram e desfizeram e ele não fez absolutamente nada”. Resume tudo numa frase: “Para José Eduardo ter o poder que tinha, teve que destruir as bases da dignificação dos angolanos na educação e na saúde”.
Os factos, que Zédu não podia ignorar, estão aí, nos relatórios de Desenvolvimento Humano da ONU, do Banco Mundial ou da Unicef. Quando deixou o poder, perto de 40% dos então quase 25 milhões de angolanos viviam abaixo do limiar de pobreza, com menos de 1,7 euros por dia; Angola registava uma das maiores taxas de mortalidade infantil do mundo (em cada mil crianças, 157 morriam antes dos cinco anos); a esperança de vida não passava dos 56 anos; mais de um terço da população não tinha água potável e 60% não tinham saneamento básico. No ranking de desenvolvimento humano da ONU, o país estava no 149.º lugar (em 188), atrás de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe.
Se os dados não bastam, chamem-se as imagens. Nos últimos dois anos do mandato de José Eduardo dos Santos, Portugal horrorizou-se com as notícias do desespero nos hospitais sem meios para responder aos doentes, com cadáveres deitados ao lado dos ainda vivos. Em Angola, a malária, a febre-amarela e a cólera eram tão endémicas quanto a corrupção. Não havia caixões suficientes; os corpos eram lavados na rua junto do lixo hospitalar e outros resíduos; vendia-se whisky para se desinfetarem as mãos; aos familiares era pedido que fossem à “candonga” comprar medicamentos, luvas, espátulas, compressas.
Durante a epidemia de cólera, Rafael Marques assinou uma impressionante reportagem onde registou a saída de 235 corpos em cinco horas de uma morgue de um hospital da capital. Agora, resume: “Estão a morrer mais pessoas hoje em Angola, pelo menos em Luanda, do que nos últimos anos da guerra”.
Angola podia na altura ter um dos maiores consumos de champanhe per capita, como contabilizou uma reportagem da SIC, e os angolanos podiam comprar 16% dos artigos de luxo vendidos em Portugal no mandato de JES, mas a maioria da população fazia apenas uma refeição por dia, muitas vezes só de arroz ou mandioca, diz ao Observador uma fonte da elite angolana. Quase um terço das crianças nunca tinha ido à escola, e metade não acabava o ensino primário, atirando Angola para o fim da África subsariana e das antigas colónias portuguesas.
No entanto, Zédu não foi o Presidente de um país pobre, pelo menos até 2014. Números que ele conhece melhor do que ninguém: o território era uma potência do petróleo (que em 13 anos rendeu 500 mil milhões de dólares), sendo o segundo país exportador da África subsariana, e de diamantes (o segundo maior exportador do mundo) e fazia parte do terço de países que mais cresceram entre 2000 e 2011.
Um relatório de 2013 do Africa Progress Panel, dirigido por Kofi Annan, ex-secretário geral da ONU, dava Angola como “um dos exemplos mais acabados” de uma situação em que as empresas do Estado se escondem num sistema financeiro que não cumpre regras mínimas de transparência e favorece figuras públicas ou políticas. O documento afirmava que era o país que mostrava “da forma mais poderosa a divergência entre riqueza de recursos e bem-estar social”.
O “pai grande” não deu de comer a todos
Encostado a uma palmeira na marginal elegante de Luanda, um ex-militar na casa dos 40 anos, desempregado de olhar fixo num pescador que procura peixe na baía, diz sem emoção: “Roubaram tanto que nos deixaram na miséria quando podíamos ter uma vida digna”. O sujeito da frase é amplo: “A família do Presidente José Eduardo, os generais, os amigos, o MPLA”.
O ex-Presidente não? A pergunta não tem resposta factual, percebeu o Observador depois de a repetir vezes sem fim em Luanda. Não tem empresas em nome dele, tem mansões em Angola e na África do Sul, uma grande fazenda no nordeste do Brasil, “mas isso não vale grande dinheiro”, afiança David Mendes, que durante anos investigou os bens de JES e zurziu contra a corrupção. “Pode ser que a filha o representasse mas, segundo os nossos estudos e as informações que temos, objetivamente, não é um multimilionário. E mesmo o que sabemos das contas que tem não é grande dinheiro se compararmos com o de Manuel Vicente”, assegura o advogado.
Para Domingos Jaime Ngola, que antes da Covid-19 esperava que uma editora portuguesa o chamasse a Lisboa para editar um livro de poemas, é indiferente. “Se não roubou, promoveu e permitiu o roubo, logo é responsável”, diz o licenciado em Direito que está há muito tempo sem um emprego.
Já em 1999 a Global Witness assacava a responsabilidade última a JES: “A corrupção começa com o chefe de Estado, rodeado por uma clique de políticos e clientes de negócios”.
José Eduardo dos Santos controlava todos os negócios, adiantava o relatório desta ONG, baseando-se numa auditoria da Ernst&Young às contas da Sonangol em 1992 e 1993 que referia a atribuição de quase 5 milhões de dólares num alínea intitulada “Bónus para o Chefe de Governo”. Por outro lado, a organização ia mais longe ao dizer que em alguns casos, como o da CADA (Companhia Angolana de Distribuição Alimentar) sediada nas Ilhas Virgens Britânicas e que teve um contrato público de 730 milhões de euros para alimentar as Forças Armadas, os generais não eram senão a máscara do então Presidente.
Na verdade, JES não se podia eximir à leitura feita por Domingos Jaime Ngola. Praticou um poder centralizado em que pouco lhe escapava. A Constituição, desenhada ao seu gosto, permitiu-lhe (como continua a permitir a João Lourenço) ser dono do poder executivo, controlar o legislativo (chegando a anular a função chave do Parlamento: fiscalizar o governo) e o judicial (com a nomeação dos juízes dos tribunais superiores e a tutela direta da Procuradoria-Geral da República) e ser chefe das Forças Armadas e policiais.
Por outro lado, dominou a maioria dos media e não se limitou a definir a política económica — intervinha em concreto e em pormenor. Um destacado jornalista angolano especifica que ia ao detalhe de dizer que A tinha 10% e B 5% de determinada empresa das águas. Isto é, dividiu a riqueza com a discricionariedade soberana de servir os seus próprios interesses.
Isto não o impediu de proclamar o sonho de “uma sociedade inclusiva em que todos se sentissem bem e beneficiassem da prosperidade”. Em 2004, com o aumento do preço do petróleo, prometeu uma vida de classe média, toda a gente poderia ter carro e casa. Não aconteceu — o “pai grande” não deu de comer a todos, como muitos acreditaram.
A postura de José Eduardo dos Santos “foi péssima”, condena Adalberto da Costa Júnior, presidente da UNITA. O engenheiro não se conforma com a experiência de ver o país desperdiçar centenas de biliões de dólares: “Angola poderia, sem outro valor, viver dez anos de orçamentos gerais de Estado em reserva, para além daquilo que poderia produzir com uma garantia de estabilidade sem limites. Tudo desapareceu. Não é que tenha sido tudo roubado pelos dirigentes só, mas a falta de controlo levou a que existisse um assalto completo a Angola. Mas um assalto permitido.”
Funge e leitão assado em vez das iguarias do Ritz
No século XXI angolano, a fortuna de alguns era tão despudoradamente ostensiva que os escândalos foram-se repetindo. Um exemplo só, da família presidencial: espalhou-se a notícia de que o filho mais velho de José Eduardo dos Santos com Ana Paula, Eduane Danilo dos Santos, estudante de 25 anos, comprara um relógio por 500 mil euros (em adolescente, a sua mesada ascenderia aos 20 mil dólares) num leilão em Cannes para apoiar a luta contra a sida. Danilo veio depois esclarecer que pagara os 500 mil euros não por um relógio, mas por uma coleção de quadros (na realidade, de fotografias) de George Hurrell e em representação da sua associação “Espírito de Criança”.
Isto para não falar de Isabel dos Santos. Nos mesmos anos em que as epidemias matavam milhares de angolanos, a primogénita de JES mostrava-se cintilante nas redes sociais ao lado de celebridades como a actriz Lindsay Lohan ou a socialite Kim Kardashian (quando apresentou o diamante mais caro do mundo, avaliado em 56 milhões de euros, comprado pela sua joalharia, De Grisogono). O que irritava muitos angolanos. Não precisavam de ser confrontados com a sua vida luxuosa, de que conhecem muitos exemplos.
José Eduardo dos Santos não só não pôde dizer que não sabia, como também nunca disse que se opôs a qualquer despesa absurdamente exagerada e supérflua (como os gastos em árvores de Natal vindas de Nova Iorque ou os 500 mil dólares de champanhe chegado de Lisboa) dos seus próximos.
“Não se percebe por que roubavam tanto, ele até é um homem de gostos simples”, comenta Rafael Marques. No faustoso casamento da filha Tchizé (em que terá gasto mais de um milhão de dólares, segundo alguma imprensa da época), virou as costas às “iguarias preparadas pelo chef do Ritz e foi comer leitão assado com funge fora do banquete”.
Compreende-se que, como avança António Monteiro, “quando há guerra e há violência, haja também menos transparência e menos controlo do que se passa”. O difícil é justificar a corrupção depois de 2002 e nos anos em que Angola teve um notório crescimento económico à custa do boom petrolífero.
“Na altura do boom, das chamadas vacas gordas, sentimos que o país estava a nadar em dinheiro, sentia-se por todo o lado”, recorda Reginaldo Silva, um dos mais reputados jornalistas angolanos e sobrevivente do 27 de Maio de 1977, hoje membro da Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana. “Aquele dinheiro estava a ser usado na reconstrução do país, na resolução dos problemas sociais, tentando construir-se uma economia mais sustentável, mas, a bem da verdade, poucas pessoas estavam a enriquecer muito, ao lado das outras tantas que deveriam beneficiar. E, sobretudo, não estava a combater a pobreza com profundidade, que é o nosso grande problema do pós-guerra”.
José Eduardo dos Santos não só passou a controlar as principais empresas e indústrias do país, como, quando o parlamento tornou isso ilegal, transferiu as rédeas para Isabel dos Santos, culminando, em 2016, com a Sonangol, a petrolífera pilar do regime que está na dependência directa do Presidente. Essa foi só a mais chocante passagem de uma empresa, neste caso pública, para a esfera da filha. A primeira, significativa, dera-se em 1999, num controverso negócio que prejudicou os interesses do Estado português: JES entregara por ajuste directo a exploração da região diamantífera do Camatué, na Lunda Norte, a uma empresa de Isabel dos Santos.
Em 2013, a revista Forbes acusou a “Princesa”, como é conhecida depreciativamente em Angola (a par de “Leoa”), de ter feito riqueza à custa da corrupção e da ajuda do pai. Ela reagiu: poucos meses depois, comprou os direitos da revista para uma edição em língua portuguesa. Seguindo o exemplo do pai, sabia calar os adversários sem precisar de violar abertamente a liberdade de imprensa. Como dizia então um general do MPLA a um empresário português, “os que sabem ler são todos nossos, deixamos estes jornais sair só para parecer uma democracia”. “Estes jornais” eram os que denunciavam a corrupção e o nepotismo de José Eduardo dos Santos; na segunda década do século XXI, alguns chamavam ladra a Isabel dos Santos mas em geral não eram encerrados. A repressão e a asfixia da opinião fazia-se de outra forma: processando, prendendo e ameaçando jornalistas e controlando todos os meios de comunicação social com alcance nacional (não havia pluralidade na TV angolana), incluindo a rádio, o meio mais influente fora de Luanda.
A filha mais velha chegou a ser considerada a mulher mais rica de África (com mais de 3,4 mil milhões de euros, calculou a Forbes), a primeira bilionária do continente, embora numa entrevista ao Observador não o tenha admitido.
Sempre disse (e desde que é arguida em processos judiciais tem-no repetido à exaustão) que o pai não teve qualquer influência nos seus negócios. Todos sabem que não foi assim. “Apesar da sua natureza ostensivamente privada, os investimentos de Isabel contam com o maior apoio político. ‘Quando negociamos com ela, sabemos que estamos a negociar com o Palácio’, afirmou um importante investidor português”, escreve Ricardo Soares de Oliveira em “Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil”.
A mesma premissa foi confirmada ao Observador no terraço do hotel Baía por um reputado advogado de negócios e por Reginaldo Silva: “Sempre vi [na] Isabel dos Santos a cara do pai em termos de influência do seu próprio poder e da forma como foi subindo na hierarquia económica e social”. Um “alter ego de José Eduardo dos Santos”, adiciona um analista político angolano.
A filha mais velha pode ser a preferida do pai, mas este não descurou os interesses de outros filhos. Em 2012, criou um Fundo Soberano de 5 mil milhões de euros não fiscalizado pelo Parlamento, que acabou, seis meses depois, em 2013, por entregar ao filho Zenu para gerir.
Passados três anos começam as polémicas com o Fundo: primeiro apareceu nos Panama Papers como eventual veículo para lavar dinheiro; em 2017 surgiu nos Paradise Papers como estando ligado a possíveis ilegalidades. O pesadelo chegou com João Lourenço: exonerado em 2018, ficou em prisão preventiva durante seis meses e acabou mesmo condenado a cinco anos de prisão pelo crime de “burla por defraudação” e “tráfico de influências”.
Também os filhos Tchizé e Coreón Du foram contemplados com benesses: possuem a Semba Comunicação, que geria o segundo canal da TPA até isso lhes ser retirado por João Lourenço. O Maka Angola de Rafael Marques calcula que, só em 2016, em contratos com o Estado, a empresa recebeu 87 milhões de euros. Tchizé, que foi deputada do MPLA até ser suspensa em 2019, chegou também à banca em 2015, ao fundar o Banco Prestígio. A sua diamantífera Di Oro (em que Coreón Du tem 10%) recebeu uma licença, dada por decreto presidencial, de prospeção, inserida num consórcio em que está a brasileira Odebrecht, segundo o MakaAngola.
Um outro filho, José Avelino Gourgel dos Santos, Joess, nascido da relação com Maria Bernarda Gourgel, é conhecido como o empresário dos plásticos, porque a sua empresa, a Neosol, tem 80% de uma grande companhia angolana, a Angoplaste, que tinha uma série de benefícios outorgados por decreto presidencial.
Já três dos quatro filhos que José Eduardo dos Santos teve com Ana Paula — Danilo, Joseana, Eduardo —, entraram igualmente no mundo dos negócios: não se sabe com que dinheiro, constituíram com a mãe o Deana Day Spa e, em Setembro de 2016, Danilo tornou-se no principal rosto dos accionistas do Banco Postal de Angola (em que Joseana, Eduardo e o quarto filho do casal dos Santos, Houston, tinham uma participação minoritária). A licença foi revogada em 2019 pelo Banco Nacional de Angola.
Médicos cubanos operavam sem anestesia: Fidel furioso, Zédu indiferente
José Eduardo dos Santos nunca se sujeitou até ao fim ao escrutínio popular. Nem em 2008, um ano de ouro. Garantida a paz há seis anos, com o país a ser louvado pelos 17% de crescimento económico, ultrapassando por vezes a China, o MPLA venceu as eleições legislativas com mais de 80%. Conforme várias vezes prometido e previsto na Constituição, as presidenciais deveriam seguir-se em 2009, depois de 14 anos em falta.
Não as convocou e também não largou a Presidência — argumentou que estava em curso a reconstrução do país. Em vez disso, alterou a Constituição: com o novo modelo, ganhou mais cinco anos de mandato nas legislativas de 2012 (a primeira vez em trinta anos que obteve a legitimação, ainda que indirecta, do eleitorado) e a possibilidade de se recandidatar. Assim se perpetuava no poder.
“Príncipe Perfeito”, chama-lhe o escritor José Eduardo Agualusa, numa alusão implícita ao poderoso rei português D. João II. Um Putin, compara Filomeno Vieira Lopes — “não é fácil tirá-lo do poder”. Tal como o Presidente da Rússia, JES “dominava técnicas de segurança muito fortes e soube como usá-las para a manutenção do seu poder”. É preciso não esquecer que “ele é um homem de telecomunicações e de segurança”, concorda Justino Pinto de Andrade. “Ficou muito tempo na Rússia precisamente por causa disso, ele nunca trabalhou na área dos petróleos”.
Sem a avaliação direta das urnas, os acólitos de JES diziam publicamente que o “camarada Presidente” tinha o apoio do povo. Talvez, concordam uns, mas não por boas razões. Nas ruas ouvia-se dizer que “sempre é melhor ter lá este, que rouba mas é rico e já conhecemos, do que outro qualquer pobre que ainda vai roubar mais”, afirma um empresário português em Luanda.
O único estudo conhecido da sua popularidade era da Gallup, de 2012: a sondagem dava-lhe o resultado mais baixo dos 34 países subsarianos, apenas 16% dos angolanos aprovavam a ação do Presidente. E o pior ainda estava para vir.
Com o colapso do preço do petróleo em 2014, a estabilidade angolana tremeu.”Um sistema cleptocrata só funciona quando há renda para distribuir”, diz um alto administrador que trabalha com Angola. Quando esta acaba, inquietam-se os interesses instalados, revoltam-se os desfavorecidos.
Surgiam sinais claros de descontentamento. Não só aumentavam os protestos na rua, que tinham começado em 2011 na sequência da Primavera Árabe, violentamente reprimidos, como, momento raro, soube-se de vozes discordantes dentro do MPLA, como a de Ambrosio Lukoki, que deixou a direção do partido.
“As pessoas identificavam José Eduardo como a causa dos seus males, estavam fartas dele”, lembra Luaty Beirão. Zédu podia ter um “bom ar, tranquilo, com aquela carinha de santo em fotografias de há 20 anos espalhada pelo país”, realça Luaty, mas “não conseguia criar empatia com o povo”.
De uma maneira mais simples, o alfaiate Francisco Bastos no Sambizanga, ou José Teixeira, motorista da Kubinga, dizem o mesmo. “Ele não gostava do povo. Não queria saber de nós”.
Terá sido sempre assim? Rafael Marques recorre a um episódio dos anos 80 para frisar que JES “nunca teve grandes preocupações em servir o seu próprio povo”. Um investigador cubano, que esteve em Angola, conta “como nessa década Fidel Castro ficava furioso porque os médicos cubanos em Luanda faziam operações sem anestesia, porque não havia”. Segundo Piero Gleijeses, citado por Rafael Marques, “o líder cubano quis enviar medicamentos básicos e José Eduardo, durante muito tempo, adiou assinar uma carta de crédito de 600 mil dólares para que Angola tivesse medicamentos básicos. Fidel acabou por os mandar, mesmo sem pagamento, porque era preciso fazer alguma coisa.”
O ex-Presidente “não era um indivíduo com grande sensibilidade humana, de perceber os problemas do povo. Pouco lhe importava. É preciso ter uma certa vocação, também. Ou algum tipo de responsabilidade. Ele, para além de ser dirigente político, nunca trabalhou”.
Não era, pois, um Presidente de afectos. Muitos não lhe perdoam a frieza com que reagiu a algumas tragédias. Em 2015, por exemplo, chuvas torrenciais mataram 71 pessoas, 35 das quais crianças, no Lobito. JES limitou-se a emitir uma nota oficial de condolências, não foi capaz de visitar a zona, apesar de a ter sobrevoado no caminho para a tomada de posse do novo Presidente da Namíbia.
No início de 2017 morreram 17 pessoas numa tragédia no estádio do Uíge, na abertura do campeonato de futebol. Mais uma vez, só houve um comunicado da Casa Civil da Presidência. “As pessoas sentiam que ele não se preocupava com elas”, diz uma executiva de uma das mais importantes petrolíferas estrangeiras em Angola.
O pouco capital de simpatia que José Eduardo tinha foi-se desgastando nos últimos anos. As pessoas até já se queixavam de Luanda ficar cercada quando o Presidente saía da Cidade Alta, quando no passado encolhiam os ombros ao aparato de segurança que bloqueava durante horas um trânsito já de si infernal. E ridicularizavam o servilismo que antes respeitavam, em situações comezinhas como esta: JES não se sentava numa cadeira qualquer, no futebol tinha uma especial, “nos eventos também levavam uma cadeira diferente para se sentar”, ri-se um jornalista angolano.
“Não estão a ver como eu estou?”
Em 2016 disse que se ia retirar da política ativa dali a dois anos, mas a notícia foi recebida com ceticismo. Anúncio semelhante se escutara no passado só para não se cumprir. Alguns analistas concluíam que se tratava de uma estratégia política: criava um sentimento de orfandade com a sua suposta saída, e ao mesmo tempo permitia que outros se perfilassem à sua sucessão para depois os aniquilar politicamente. Isso mesmo terá acontecido com Lopo de Nascimento ou com João Lourenço, que teve de fazer a sua “travessia no deserto” durante mais de uma década por ter revelado sonhos presidenciais na altura errada.
JES usou a “tática do Golungo Alto [no Cuanza Norte]: quando queremos atravessar o rio, não sabemos onde está o jacaré; então, vamos lançando pedras aqui e ali e quando ele levantar a cabeça a gente sabe que está ali e passa no outro lado”, comenta Filomeno Vieira Lopes. “O cenário está obscuro, é preciso clarificá-lo e clarifica-se com cascas de banana. Foi o que aconteceu internamente no MPLA”, adiciona o professor universitário.
Em 2001, quando JES disse que não seria candidato se houvesse eleições em 2002 ou 2003, João Lourenço, então secretário-geral do MPLA, colocou-se a jeito para o lugar. Logo a seguir o então Presidente do país e do partido deu o dito pelo não dito e, no congresso do MPLA de 2003, afastou João Lourenço do palco do poder: tirou-o de secretário-geral do partido e nomeou-o primeiro vice-presidente da Assembleia Nacional, “o vale dos caídos do MPLA”, diz Rafael Marques.
Porém, desta vez, JES saiu mesmo em 2017, depois das eleições gerais, quando o país atravessava uma grave crise económica e financeira, realça Carlos Rosado, ex-director do jornal angolano Expansão. Angola era (e é) o país africano com mais probabilidade de entrar em default, não conseguindo pagar as suas dívidas.
Por que decidiu abandonar a Presidência? Os mais cáusticos dizem que foi porque o ciclo do dinheiro terminou. José Eduardo explicou-se numa das reuniões do Comité Central: “O homem nasce, cresce, e morre. A minha capacidade para reunir durante seis horas seguidas acabou. Não veem como eu estou?”. Estava a poucos meses de fazer 75 anos, e estava doente.
Desde 2013 — ano em que chegou a estar oito semanas fora do país — que havia notícias de que estaria a ser tratado a um cancro numa clínica em Barcelona, o que foi desmentido pelo genro Sindika Dokolo. Mas, já em 2006, um telegrama diplomático divulgado pela Wikileaks entre a embaixada do Brasil em Angola e o Ministério dos Negócios Estrangeiros brasileiro, com conhecimento aos Estados Unidos, referia rumores de que JES teria um cancro da próstata e confirmava que ele tinha estado numa clínica do Rio de Janeiro.
Em 2017, meses antes de deixar a Presidência, foi levado de emergência para Barcelona e chegou a circular que tinha morrido, obrigando Isabel dos Santos a fazer um desmentido.
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A doença terá sido a razão que o fez descer do poder, acredita Justino Pinto de Andrade: “Acho que foi o médico dele, lá na Catalunha, que lhe deve ter dito ‘se você sair do poder, levar uma vida normal, repousar, ainda vive mais 15 anos. Se continuar com esses comprimidos todos, com essa vida muito ocupada, vive mais dois anos. Portanto escolha. E ele optou”.
Ou, então, soube, uma vez mais, ler os tempos. O seu poder já não era o mesmo. Cada vez mais contestado nas ruas, “JES era um produto expirado”. “O próprio partido percebeu isso depois das pressões após o movimento Revu”, diz Filomeno Vieira Lopes. E, para sobreviver, o MPLA “sacrificou JES e altos quadros do partido”, conclui Sedrick de Carvalho.
O poder pode ser “afrodisíaco mas também cansa”, sorri um ex-ministro de José Eduardo dos Santos que também foi próximo de Savimbi. Depois de 38 anos de poder total, estaria JES demasiado cansado e doente para tentar domar novamente tudo e todos, agora já sem a abundância dos petrodólares? Ou convenceu-se de que poderia manter o poder indiretamente, através do MPLA, no quadro de um partido-Estado, e que os seus interesses, os da sua família e os dos seus aliados fiéis permaneceriam intocáveis?
As duas coisas, responderam vários políticos e analistas com quem o Observador falou. E foi aí que “cometeu o maior erro da sua vida: projetou o inimigo”, pensa Justino Pinto de Andrade. Foi aí que “perdeu a sua última batalha”, a da sucessão. “Ganhara todas até 2002 e depois, já sem o argumento Savimbi, perdera a do desenvolvimento e da reconstrução do país, e agora perdeu na escolha do sucessor “, julga Reginaldo Silva. Ou, dito de outra forma, por uma fonte ligada ao atual inquilino do palácio da Cidade Alta, “bebeu do próprio veneno”.
Apanhado pelo dilema do prisioneiro
Vamos por partes, porque o plano de JES não foi sempre o mesmo. O escritor Pepetela chamou-lhe “xadrezista”, mas há quem prefira ver nele um grande “planificador”. As duas ideias não se excluem. Não querendo morrer como Chefe de Estado — “Tinha medo do que poderia acontecer aos seus familiares se isso acontecesse “, frisa um político angolano — a primeira decisão que se impunha era definir o momento da saída. E aí parece ter falhado.
“O grande erro foi não ter definido o timing certo. Depois da paz de 2002, as eleições podiam ter sido em 2006 e teria saído o mais tardar em 2012 quando o petróleo e a economia angolana estavam em alta. Hoje, ninguém lhe poderia imputar a conjuntura internacional e africana da crise angolana”, defende Mário Pinto de Andrade, que tem o mesmo nome que o tio, o intelectual e um dos fundadores do MPLA, Mário Pinto de Andrade.
“Ele foi apanhado pelo dilema da segurança que os líderes africanos têm, o do prisioneiro. O dia seguinte foi sendo adiado e, claro, a entourage que o rodeava também contribuiu para isso. Quando se cria num chefe a cultura do medo…”. O reitor da Universidade Lusófona não esquece “que muitos dirigentes do MPLA o empurravam para que ficasse mais tempo no poder”. “Havia camaradas meus, colegas de partido, que imploravam: ‘Não, o chefe não pode sair porque senão vai ser o caos, o dilúvio. E ele ficava ali…”
O “grande estratega” caiu na armadilha do longo poder. “Comportou-se como infalível”, rodeou-se “de pessoas que faziam apreciações do seu desempenho pouco sinceras e demasiados elogios, tornaram-no na pessoa menos informada do palácio presidencial“, assegura Sérgio Calundungo. Um exemplo? “Havia 15 jovens a protestar contra o regime e ele disse: ‘São frustrados, não tiveram desempenho académico’”. Mas também é verdade que ele não recebia com bom grado as críticas, refere um ex-ministro de JES recordando como ele se afastou de Maria Mambo Café quando ela lhe chamou a atenção para as críticas dentro do partido sobre os negócios dos filhos — membro do Bureau Político do MPLA, conheciam-se há muitos anos, dos tempos em que, jovens, se reuniam no fundo da carpintaria do irmão mais velho de JES a congeminarem contra os portugueses.
A verdade é que podia ficar no poder até 2022 — “Não estou a ver alguém, à época, no MPLA, que se opusesse a isso,” diz Mário Pinto de Andrade. Mas saiu em 2017. Teria encontrado o sucessor que lhe desse melhores garantias?
O movimento Revu “criara ondas de choque no interior do partido e a ideia da necessidade de uma nova geração de políticos no interior do MPLA que assumisse as rédeas do país”, diz Filomeno Vieira Lopes. JES tentou juntar o útil ao agradável e, tal como um monarca, terá preparado uma sucessão dinástica, o filho Zenu. Só que o partido, desta vez, teve outra vontade.
Afastada a ideia do filho, JES apostou então tudo em Manuel Vicente: o homem que colocara à frente da Sonangol durante 12 anos, lhe permitira alimentar a sua estrutura de poder e com quem tem alguma relação de parentalidade. Sentou-o em duas vice-presidências: a do partido e a do país. Na primeira, teve algumas resistências — a ala mais conservadora do MPLA nunca recebeu bem um não militar e sem traquejo político, explica Paulo Inglês. No aparelho de Estado não teve qualquer problema, chegando a substituir JES quando ele esteve em tratamento em Espanha e representando-o internacionalmente.
Até que alguma coisa os separou. O quê? Como quase tudo o que se relaciona com José Eduardo dos Santos, há poucas certezas. Em Angola, nada do que parece, é. Isabel dos Santos terá descoberto um esquema paralelo na Sonangol quando assumiu a presidência da petrolífera, e não gostou, adianta o sociólogo angolano e especialista em estudos africanos. Isso poderá ter influenciado o pai, “sempre muito suscetível aos caprichos e desejos da filha”, pensa o investigador do Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela. Um político português conhecedor da realidade angolana adianta mesmo ao Observador que “nos últimos anos JES estava mais fraco, mais vulnerável à ala feminina da família”, leia-se às filhas e a Ana Paula dos Santos.
Um analista político que falou com o Observador sob reserva de identidade adianta que JES ficou chocado quando a filha o informou de que a fortuna de Manuel Vicente seria muitas vezes superior à dela. “JES sabia que ele roubava, com o seu beneplácito, mas nunca pensou que seria tanto.”
Justino Pinto de Andrade concretiza: “José Eduardo dava instruções a Manuel Vicente para colocar dinheiro em vários sítios. Todos beneficiaram do dinheiro da Sonangol, todos eles. E o Manuel Vicente, claro, enquanto dividia uma parcela pelos sacos dos outros, no dele metia metade do bolo, daí o ter-se transformado no mais rico”. E como, “na ideia do JES, o poder é dinheiro, o Manuel Vicente ia ter muito poder pois tinha muito dinheiro. E se juntasse ao dinheiro o poder político, então seria um desastre. Penso que isso também assustou o JES”.
Descartado, Manuel Vicente, quem? Uma outra fonte ligada ao Bureau Político do MPLA diz que terá pensado então numa bicefalia, que juntasse Bornito de Sousa e João Lourenço — solução também defendida pelo chamado corredor de Catete, grupo de dignitários regionais entre o Catete e o Cunene que integra bispos metodistas e figuras de peso no MPLA, acrescenta um político próximo do Palácio. O general António França “Ndalu” e Roberto de Almeida tê-lo-ão demovido. António Pitra da Costa Neto, que foi ministro da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social terá sido abordado. Mas o advogado e membro do Bureau Político do MPLA recusou o convite.
Decidiu-se por João Lourenço. O “mimoso” (assim o conheciam no Lobito), depois do acto falhado de 2001, usou a velha técnica de se fazer de morto. Discreto, calado, sem manifestar grandes opiniões, João Lourenço parecia ser a escolha acertada, o “homem que ia manter a sua presença, mesmo estando fora do poder presidencial”, sublinha Reginaldo Silva. Ironia das ironias, “JES acabou derrotado por alguém que usou a sua tática” conclui Marcolino Moco.
Há quem, como Justino Pinto de Andrade, julgue que JES, “que era um homem de equilíbrio étnico, quis desluandizar o poder, pelo menos na Presidência da República, depois de dois presidentes da área dos kimbundos”: “Terá pensado num meio umbundo. João Lourenço nasceu no Lobito, para conquistar eleitorado do centro e neutralizar alguns eleitores da UNITA”.
Pouco depois de o indicar como seu sucessor, José Eduardo dos Santos leu bem os primeiros sinais de que se poderia ter enganado quando João Lourenço se recusou a usar os discursos que a equipa de JES preparara para a campanha eleitoral de 2017. “Percebeu que João Lourenço, como uma vez disse Isaias Samakuva, não ia ser o seu motorista”, conta Reginaldo Silva. Algumas fontes ligadas ao partido dizem ao Observador que ainda terá tentado voltar atrás, mas a decisão já era pública.
A escolha de JLo, como também é conhecido, “é um erro ou uma consequência não intencional porque JES não contou com o ressentimento de João Lourenço”, diz Paulo Inglês.
Apesar disso, ainda conseguiu influenciar a escolha do novo elenco governativo, incluindo alguns elementos da equipa presidencial — e antes de sair fez aprovar na Assembleia Nacional um decreto que conferia ao Presidente cessante o poder de nomeação das chefias das Forças Armadas Angolanas, da Polícia Nacional e dos Serviços de Inteligência por quatro anos, renováveis por igual período.
Ainda tentou fazer aprovar uma lei que o fixava como Presidente Emérito, garantindo-lhe uma série de regalias vitalícias e imunidade criminal e civil, mas a ideia não foi bem aceite pelo MPLA. “Isso é fantochada do antigo leste europeu. Porquê? Para quê? Porque o Papa é emérito? Fica mais dignificado como ex-Presidente do que como emérito, até parece um cargo de chacota. Presidente Emérito é nos partidos políticos, agora na nação não, até lhe fica mal”, explica Mário Pinto de Andrade ao Observador. A Assembleia Nacional acabou por deixar cair o Emérito e as imunidades de JES ficaram iguais às dos deputados.
Restava-lhe o poder do partido-Estado, o MPLA: quis cumprir o seu mandato até ao final, acabava em 2021. “Só que a conjuntura do momento já não lhe dava essa legitimidade, o Comité Central discutiu isso numa reunião muito quente, a cultura política do MPLA é que o Presidente do país é também o do partido e decidimos fazer um congresso extraordinário para dar dar lugar ao JLo”, esclarece Mário Pinto de Andrade. JES poderia ter resistido, não o fez. “Ele é uma pessoa muito tranquila, nunca levantou a voz, falou sempre suavemente, não fez guerra, e cedeu o lugar”.
O que JES não esperava é que João Lourenço apontasse as baterias da luta contra a corrupção — que até tinha sido um lema seu —, contra a sua família, os seus generais e amigos. E muito menos que aquele que até poderia ter sido o seu delfim em 2001 o responsabilizasse pelo descrédito internacional e pela crise do país. JES ainda se sentiu obrigado a justificar-se numa conferência de imprensa a partir da sua Fundação para dizer que deixara 15 mil milhões de euros nos cofres do Estado.
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Depois, zangado, em abril de 2019 deixou o país num avião da TAP em direção a Barcelona. João Lourenço ainda foi a casa de JES, no Miramar, pedir-lhe que viajasse no avião que sempre usou, alugado pelo seu homem de confiança, o general Dino, com os pilotos que sempre o serviram. O avião estava pronto na placa, era só dizer a hora em que queria embarcar, mas o ex-Presidente recusou. Por questões de segurança, teria medo que o matassem? “Não temos essa cultura. Ia com o Dino e o Kopelipa, homens dele, avião deles… foi por teimosia, estava irritado”, recorda Mário Pinto de Andrade.
Está a ser “apagado” da fotografia do MPLA
José Eduardo dos Santos parece estar completamente sozinho, mas ainda tinha “muitos aliados e muito dinheiro”, avisa Paulo Inglês. A animosidade visível em 2017 e início de 2018 em relação ao ex-Presidente tinha-se vindo a esbater. “A intensidade dessa raiva”, acumulada nos muitos anos em que a família Dos Santos “esteve sentada na cadeira do poder”, foi-se dissipando e “hoje José Eduardo é um ‘mais-velho’ na cabeça de muitas pessoas, merece algum respeito, e, dizem alguns, nem tudo foi mau nos tempos dele”, afirma ao Observador Ricardo Soares de Oliveira.
Em alguns círculos, “até há uma certa forma perversa de admiração de Isabel dos Santos, uma angolana que mesmo assim, dizem, se ‘conseguiu desenrascar lá fora’” continua o professor de estudos africanos da Universidade de Oxford. Muitos elogiam o facto de a “Princesa” ter investido algum dinheiro em Angola e criado empregos. Esta complacência, no entanto, “não significa muito politicamente para Isabel ou para JES”, conclui Ricardo Soares de Oliveira. Mas essa é outra história.
João Lourenço. Três anos no poder com uma ausência omnipresente: José Eduardo dos Santos
Desde fevereiro de 2020 que “começaram a eliminar a imagem de JES dentro de instituições do MPLA, por vezes omitiam o nome dele quando se falava dos presidentes do partido”, revela Sedrick de Carvalho, um dos revus. Basicamente, “passou de semi-deus a pária”, comenta Luaty. E em julho de 2020 começaram a circular novas notas sem o rosto de José Eduardo dos Santos.
Como ficará a fotografia do ex-Presidente na história de Angola? Mais “negativa do que positiva”, acredita Filomeno Vieira Lopes, que não deixa de acentuar que JES não agiu sozinho, a avaliação que se fizer dele terá de ser conjunta: “Isto é um sistema, está um partido implicado”. Quanto à história, acrescenta, “se os historiadores tiverem liberdade para analisarem as coisas, provavelmente poder-se-à chegar a outras posições um pouco mais dramáticas”.
Ficará como um ditador, não duvidam por um segundo Rafael Marques e Luaty Beirão, com o rapper a carregar no tom: “Qualquer pessoa que tenha uma Constituição que lhe dá superpoderes que ainda por cima nem respeita, que está acima da lei, isto é, seja o senhor da lei, a própria lei, só pode ser um ditador. Ele era o mal, o cancro do país.”
Marcolino Moco não vai tão longe: “Evito usar a palavra ditador. Se José Eduardo fosse como Idi Amin eu já não estaria vivo. Mas ele, nos últimos anos, foi pior que Salazar”.
O historiador angolano Patrício Batsîkama também foge da palavra. “Os jornais todos os fins de semana publicavam [em 2017, quando deixou a Presidência] que ele era ditador… Depende do que se entende por ditador… Só se for num conceito eurocêntrico. Tenho sérias reservas em qualificá-lo como tal.”
“Alguma habilidade teve que ter no contexto da Guerra Fria”, concede Sérgio Calundungo. “Tem o mérito de o país não ter descambado em questões tribais (era muito jovem quando assumiu o poder), e nos primeiros anos teve a habilidade de harmonizar e acomodar as grandes elites partidárias — muitos deles mais velhos do que ele. Teve a responsabilidade de fazer a transição de um sistema de partido único para um sistema multipartidário, teve o desafio de lidar com um líder que era carismático — Jonas Savimbi — e chegar a um processo de paz.”
Alguns portugueses contactados pelo Observador são cautelosos no uso do termo, mesmo sabendo que investigadores das Nações Unidas reportaram detenções arbitrárias, tortura e abusos dos direitos humanos em Angola, e não apenas em Cabinda. Ou que a Freedom House considerou Angola um “país não livre”, pois José Eduardo dos Santos e o MPLA perseguiam jornalistas, ativistas e líderes religiosos.
“Os críticos e os que protestam foram encarcerados, espancados, torturados ou executados”, escrevia Tom Burgis em A Pilhagem de Angola (2015). Angola não é um Estado policial, reconhecia este jornalista norte-americano, mas o “medo é palpável”, “toda a gente percebe que é potencial alvo”, até “o chefe dos serviços secretos pode ser saneado”, como aconteceu com Miala.
“Ninguém quer falar ao telefone porque parte do princípio que está sob escuta” continuava Tom Burgis — uma realidade que ainda hoje, quando se fala em mudança de paradigma com João Lourenço, o Observador experimentou com alguns angolanos que ouviu para este artigo, quer em Lisboa, quer em Luanda.
O diplomata António Monteiro, que esteve envolvido no processo de paz e que durante nove anos foi chairman do Millennium BCP, do qual a petrolífera estatal Sonangol é acionista, e agora é presidente da Fundação Millennium, exclui a definição “ditador” por comparação com outros tiranos africanos: “JES marca a pacificação e a reconstrução do país, e falha no desenvolvimento equilibrado, tarefa principal que está a ser realizada pelo atual Presidente João Lourenço em condições difíceis”.
Um político português de direita conhecedor de Angola, que optou por não dar o nome para este trabalho, prefere “um ditador que não grita nem faz ameaças, que é silencioso, a um que manda cortar cabeças”. Chama-lhe antes um “autocrata sereno”. Já o administrador e antigo militante do MPLA que foi torturado não tem dúvidas: “Era um ditador, toda a gente estava ali para o servir, mas fugia ao perfil comum dos ditadores. Frio, implacável e calmo, não deixa de ser fascinante como figura política”.
Contrariamente aos outros ditadores, como Kadhafi, por exemplo, “ não tinha ninguém disposto a morrer por ele”, diz José Eduardo Agualusa. “Ninguém o seguia pelo seu carisma ou pensamento. Apenas por interesse. Não tinha amigos.”
José Eduardo dos Santos só voltou a Angola em setembro de 2021. Não havia qualquer razão para não o fazer, dizia Mário Pinto de Andrade um ano antes. “Todos nós angolanos — e o próprio MPLA e o presidente JLo —, queremos que ele regresse. O Presidente JES não fez mal ao MPLA, não fez mal ao país, é o homem que nos deu a paz. Queremos que viva aqui tranquilo e acabe os seus dias em Angola. Pode voltar porque ninguém lhe vai fazer mal, um homem como ele, com a idade que tem, merece todo o nosso respeito.”
Angola “é um lugar onde devemos estar todos nós”, defende o primo de Mário, Justino Pinto de Andrade, que há muito se afastou do MPLA e agora é oposição pelo Bloco Democrático. “Eu fui adversário de José Eduardo dos Santos, mas não é assim que um indivíduo deve terminar. Entristece-me esse fim. Quer queiramos quer não, foi um lutador pela independência de Angola, sonhou com uma Angola independente, governou este país durante 38 anos. Cometeu uma série de erros, mas também fez coisas positivas. Merece estar em Angola se assim o quiser e a saúde o permitir. Porque, senão, todos os futuros dirigentes terão que fugir de Angola. Se damos este mau exemplo agora com JES, garanto que quando acabar o poder de João Lourenço, ele também sai.”
David Mendes ia mais longe, em 2020, na defesa do regresso de JES. Propunha mesmo uma aproximação mediada pela Igreja ao antigo Presidente. “Dentro da nossa boa maneira africana, podíamos usar os mais velhos, como o cardeal Dom Alexandre do Nascimento, o bispo Emílio de Carvalho, por exemplo, para falar com Dos Santos. O cardeal é mais velho, ele vai ouvi-lo — mesmo não querendo, vai ouvi-lo — e pode influenciá-lo. Precisamos de uma figura que consiga congregar as pessoas.”
Mais cedo ou mais tarde, José Eduardo “vai ter de regressar” e “não vai ser preso”, acreditava em 2020 um ex-político angolano que esteve envolvido na luta pela independência. “Esperemos só que não seja empurrado por Espanha. João Lourenço, que é teimoso e imprevisível, pode fazer com que isso aconteça”.
Não foi precisa mediação nem empurrão espanhol e não houve qualquer prisão. Em setembro de 2021 José Eduardo dos Santos regressou. Mas não para ficar. Chegou a Luanda, poucos meses antes do congresso do MPLA que prepararia o partido para as eleições de agosto de 2022.
Muito se especulou sobre uma eventual motivação política — para além de pessoal, a de assistir ao noivado do filho Joess — na sua ida a Luanda, se chegara para dar um sinal de união no partido, se iria ter alguma intervenção pública, etc. Não teve. Foi recebido sem pompa ou circunstância no aeroporto de Luanda e sem cobertura dos meios de comunicação social estatais — João Lourenço não esteve presente para o cumprimentar — e com data prevista de regresso: ficaria em Angola um mês.
Os dias esticaram-se e ficou meio ano. Não foi ao congresso do partido, não se lhe ouviu palavra pública sobre o partido ou o país. Em seis meses, escutou o Presidente angolano dizer que o seu “regresso era bom para o partido e para o país” e recebeu-o duas vezes na “Casa Amarela”, em Miramar. A primeira foi a 24 dezembro, divulgada pela Cidade Alta como de cortesia “dentro do espírito de celebração do Natal”. A segunda deu-se em março de 2022, quando já circulavam rumores em Luanda de que JES permanecia em Angola contra a sua vontade.
Acabou por voltar no final desse mês a Barcelona, de onde só saíra uma outra vez desde que escolhera a cidade catalã como refúgio: no Natal de 2020 para ir ter com Isabel ao Dubai, depois de faltar ao funeral do genro em Londres.
Mas agora já não estava sozinho. Ana Paula dos Santos viajou para Barcelona em abril com a filha Joseana. Até à viagem a Luanda, vivera apenas na companhia dos seus guardas, com a visita ocasional das filhas mais velhas, Isabel e Tchizé e de um ou outro dos seus indefetíveis generais. Alimentava (ou alguém por ele) a sua página oficial do Facebook, a do JES Patriota, como gostaria de ser recordado, com momentos do seu passado glorioso.
Estava frágil e não era a primeira vez. Já em 2020, quando pela primeira vez em muitas décadas celebrou o dia de anos sozinho, o vídeo em que agradecia as mensagens de parabéns partilhado no Instagram por Tchizé, mostrava um homem doente e enfraquecido.
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Em Luanda, o seu estado de saúde ter-se-à agravado e na segunda semana de maio de 2022 as redes sociais angolanas encheram-se de vídeos e publicações a dizer que o ex-Presidente angolano morrera. Desta vez foi Tchizé quem reagiu no Instagram: “Desejar a morte de alguém é o último grau de decadência humana.”
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A 23 de junho tudo se precipitou. Depois de uma queda em casa, em que esperou 15 minutos por auxílio, e uma paragem respiratóriaa, entrou nos cuidados intensivos da clínica que sempre o tratou em Barcelona. Cinco dias depois não acordou do coma induzido e começou uma guerra pública entre alguns filhos e a mulher Ana Paula. Desligar ou não a máquina que lhe dava suporte de vida, apesar de o coração bater sem ajudar, era a questão que os antagonizava.
No dia 8 de julho chegou a notícia da sua morte e abriu-se nova frente de batalha: o local do funeral. A filha Tchizé pediu uma autópsia, na sequência de uma queixa judicial onde falava de uma alegada tentativa de homicídio do pai. Suspeitava de negligência, omissão de cuidados, maus tratos. E não esquecia a palavra envenenamento, tão cara à crendice popular angolana, que ainda vive sob o fantasma de que essa terá sido a causa da morte de Agostinho Neto, em Moscovo.
Quem é quem na guerra pelos restos mortais de José Eduardo dos Santos
José Eduardo dos Santos morria assim, no meio de uma família dividida, a 8.500 quilómetros do bairro onde se diz que nasceu e ia jogar futebol com o seu amigo Bonga. Já não podia ouvir Maria, sentada no chão, a cortar carne para um alguidar azul no meio das pernas, enquanto ergue um cântico límpido e choroso na tarde fervilhante de domingo no Sambizanga. Nem sequer Yola Semedo, uma das suas artistas angolanas prediletas, a cantar “tu és o poder”. Se a tivesse escutado, não se teria deixado iludir. Há algum tempo que sabia que já não era o poder. Angola já não era dele.
(artigo atualizado no dia 29 de dezembro às 21h00 e a 5 de janeiro de 2021 com correções sobre o carro de José Eduardo dos Santos, no dia 15 de maio de 2022 com a passagem por Luanda e o estado de saúde do antigo Presidente de Angola e a 8 de julho de 2022 com a sua morte)