Artigo publicado na altura do centésimo aniversário do ator, a 9 de dezembro de 2016, e recuperado por altura da sua morte, a 5 de fevereiro de 2020

Haverá poucos atores que realmente mereçam o epíteto de “lenda viva” e Kirk Douglas, que esta sexta feira completa 100 anos, é um deles. Começou a trabalhar em Hollywood na idade de ouro da Meca do cinema, em 1946, e nos cinquenta anos seguintes o seu peso na indústria, à frente e atrás das câmaras, nunca saiu da primeira linha, tendo até oportunidade de passar o testemunho ao filho, Michael, que começou por se notabilizar como produtor (“Voando sobre um Ninho de Cucos” valeu-lhe o Óscar de Melhor Filme) e atingiu como actor a consagração que sempre faltou ao pai, o Óscar de Melhor Actor. Mesmo assim, Kirk Douglas foi nomeado três vezes para Melhor Actor, pelos filmes “O Grande Ídolo”, “Cativos do Mal” e “A Vida Apaixonada de Van Gogh”. Em 1996, recebeu finalmente um Óscar Honorário pela carreira.

Embora não sendo o mais versátil dos actores – talvez até mais pela covinha do queixo – Kirk Douglas fez noirs e westerns, dramas e filmes de guerra, comédia e peplum e, ao longo da carreira, contracenou com estrelas de primeira grandeza como Barbara Stanwyck, Lauren Bacall, Doris Day, Kim Novak, Jane Wyman, John Wayne, Eleanor Parker, Anthony Quinn, Laurence Olivier, Yul Brynner e Burt Lancaster, com quem trabalhou em sete filmes, o último dos quais já nos anos 80, “Os Duros”.

Foi dirigido, entre outros, por grande nomes da sétima arte como Jacques Tourneur, Lewis Milestone, Stanley Kubrick, Howard Hawks, Joseph L. Mankiewicz, Michael Curtiz, William Wyler, John Sturges, Billy Wilder, John Frankenheimer, Vincente Minnelli, Brian De Palma e Edward Dmytryk. A história deste último acaba por estar ligada a um dos factos mais conhecidos da carreira de Kirk Douglas. No início dos anos 50, Dmytryk era um dos realizadores mais promissores de Hollywood, mas a sua breve ligação ao Partido Comunista, na década de 40, levou-o a ser interrogado, juntamente com outros nove elementos, pela Comissão das Actividades Anti-Americanas no processo que ficou conhecido como Caça às Bruxas. Por se ter recusado a colaborar, ou seja, por não denunciar outras pessoas ligadas ao Partido, Dmytryk esteve preso durante alguns meses. Após esse período, foi chamado novamente a testemunhar e, então, indicou vários nomes de pessoas ligadas à indústria e que teriam ligações ao Partido Comunista. A carreira de Dmytryk praticamente terminou aí.

25 fotos

Outros que faziam parte dos “Dez de Hollywood”, como Ring Lardner Jr. (filho de Ring Lardner, autor do conto que deu origem ao filme “O Grande Ídolo”) ou Dalton Trumbo, e que se recusaram sempre a denunciar os colegas, foram postos na lista negra. Trumbo era um dos mais conceituados argumentistas de Hollywood e na década de 50 continuou a escrever mas o seu nome não aparecia e o seu trabalho era assinado por “testas de ferro” (o filme de Martin Ritt, “O Testa de Ferro”, com Woody Allen, conta a história de um destes autores de fachada. Recentemente chegou às salas o filme biográfico “Trumbo”, com Bryan Cranston no papel do argumentista). Dois desses filmes, “O Rapaz e o Touro” e “Férias em Roma”, receberam o Óscar de Melhor Argumento, mas o trabalho de Trumbo só foi reconhecido anos mais tarde.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O fim da lista negra começou em 1960, quando o nome de Trumbo apareceu nos créditos do filme “Exodus” e quando Kirk Douglas assumiu publicamente que o autor do argumento de “Spartacus”, que tinha produzido, era Trumbo. Após vários anos na sombra, o nome de Trumbo foi finalmente reabilitado, em parte graças aos esforços de Douglas.

Polémico e Combativo

Este lado polémico e combativo também se refletia na escolha dos papéis, muitas vezes de personagens difíceis e desagradáveis, embora sempre intensas. No dicionário do catálogo publicado por ocasião do ciclo de cinema americano dos anos 50, organizado em 1981 pela Embaixada do EUA em Lisboa e pela Fundação Gulbenkian, João Bénard da Costa escrevia que Douglas “é um actor com quem é fácil embirrar. Porque tudo nele é conflituoso e crispado.” (no mesmo texto, o antigo director da Cinemateca falava de um “contestadíssimo” Óscar de Melhor Actor por “A Vida Apaixonada de Van Gogh”, mas na verdade o Óscar desse ano de 1956 foi para Yul Brynner pelo seu papel em “O Rei e Eu”). Mas essas reacções epidérmicas ao carisma complexo de Douglas tinham um outro lado, que era o da dificuldade de lhe resistir nos seus melhores momentos ou, como disse Sal Chaneles: “quando foi bom, foi muito bom, quando foi mau, foi horrível.”

Os seus excessos temperamentais foram muitas vezes atribuídas à genética, à “alma russa”, referida por Bénard da Costa. Kirk Douglas nasceu em 1916 numa família de emigrantes judeus oriundos da atual Bielorússia e foi-lhe dado o nome de Issur Danielovitch, ao qual o irmão do pai tinha acrescentado o “americanizado” Demsky. Por questões de mercado, estas mudanças de nome eram bastante usuais numa altura em que chegavam ao estrelato muitos atores com nomes de baptismo impronunciáveis, muitos deles vindos da Europa de Leste. Talvez o caso mais famoso seja o de actor Karl Malden, de origem sérvia e cujo verdadeiro nome era Mladen Sekulovich, e que em vários dos seus filmes arranjou maneira de fazer ouvir o apelido Sekulovich, homenageando assim o nome do pai e redimindo-se da sua “traição”. A referência a Malden não é fortuita porque ele e Kirk Douglas foram grandes amigos e, já nos anos 70, Malden fez uma famosa dupla de detectives com Michael Douglas na série televisiva “As Ruas de São Francisco”.

26 fotos

As condições difíceis em que cresceu, rodeado de seis irmãs, atrasaram a sua chegada ao patamar superior de Hollywood mas moldaram-lhe o carácter que haveria de ser a razão de tantos conflitos (com Anthony Mann, por exemplo, que esteve para ser o realizador de “Spartacus” mas foi rapidamente substituído por um Kubrick em início de carreira e que, ao contrário do que aconteceu nos seus filmes seguintes, teve de ceder o controlo criativo ao produtor, Kirk Douglas) e também de alguns dos seus maiores triunfos, mesmo quando estes chegaram por caminhos tortuosos. Em 1963, comprou os direitos do romance “Voando Sobre um Ninho de Cucos” e desempenhou o papel principal na adaptação teatral. O seu sonho era o de adaptar o filme ao cinema mas como não conseguiu financiamento acabou por passar os direitos ao filho, Michael. Em 1975, a adaptação cinematográfica, realizada pelo checo Milos Forman e com Jack Nicholson no principal papel, conseguiu a proeza de arrebatar os cinco mais importantes prémios da Academia de Hollywood: melhor filme, realizador, actor, actriz e argumento. E se Michael segurava a estatueta, a verdade é que algum do mérito tinha obrigatoriamente de ser reconhecido ao pai, que mais de dez anos antes, tinha acreditado no potencial do romance de Ken Kesey.

Como acontece com todas as grandes estrelas do cinema, com a idade Kirk Douglas foi desaparecendo do grande ecrã. Entretanto, escreveu as suas memórias, sobreviveu a um grave acidente de helicóptero, foi finalmente reconhecido pela Academia e testemunhou o desaparecimento de quase todos os seus contemporâneos que, com ele, construíram o período mais fértil e glorioso do cinema americano. Hoje, que se torna centenário, merece ser celebrado pelo seu contributo para o cinema, pelos grandes filmes em que participou e até por outros francamente péssimos de que foi cúmplice. É que também estes fazem parte da história de uma vida como já não há muitas. Por tudo isso, happy birthday, Mr. Danielovitch!

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015.