Os olhos brilham, o sorriso rasga-se e há muitas gargalhadas quando recorda histórias antigas. Laura Afonso fala com o mesmo entusiasmo das obras como da primeira vez que viu Nadir Afonso — ela tinha 17 anos e ele, aos 56, era já um pintor, arquiteto e pensador reconhecido. Ninguém acreditava naquela relação mas a verdade é que ela durou mais de 30 anos, até à morte do pintor, em 2013, e perdura através dos trabalhos que continuam a ser expostos.
A 11.ª edição de “A Arte Chegou ao Colombo” abre ao público na terça-feira, 27 de julho, e reúne mais de 40 obras realizadas entre 1947 e 2010. Espalhadas por sete salas — instaladas na praça central do Centro Colombo, em Lisboa — há 14 guaches inéditos, esboços de arquitetura e uma experiência imersiva criada por uma equipa tecnológica que teve como missão interpretar cinco trabalhos através de video mapping e música.
A exposição “100 Anos Nadir Afonso” devia ter acontecido em 2020 para assinalar o centenário do nascimento do artista (em Chaves, a 4 de dezembro de 1920), mas foi adiada devido à pandemia. Agora vai manter-se no centro comercial até 12 de setembro. Acontece neste espaço exatamente para que a arte esteja acessível a todos. A entrada é gratuita.
Antes da inauguração, o Observador falou com Laura Afonso, viúva de um dos pioneiros da arte cinética, mas também presidente da Fundação Nadir Afonso e curadora desta mostra.
Em que é que consiste esta exposição?
Vamos ter sobretudo obras que se referem a cidades, como se fosse um elogio aos tempos modernos, porque a sociedade atual é muito citadina. Temos cidades mais românticas, com os doges de Veneza, e ao mesmo tempo temos o Rossio. Há outro conjunto muito interessante, que é do “Espacillimité”, um conjunto de obras que o Nadir realizou depois de voltar do Brasil, onde trabalhou com o Oscar Niemeyer e fazia parte dos artistas ligados à galeria Denise René. Procuravam introduzir um movimento na obra de arte que então era estática. Temos a composição geométrica que inicia a fase imersiva, está numa sala imersiva onde as pessoas podem entrar. Também considero muito importante a composição do período barroco. A conceção dessas obras foi em Paris mas o Nadir dizia que, ao olhar as fachadas barrocas, principalmente do Porto, extraiu elementos, as curvas, as espirais, isolou-os, agregou-os e criou essa composição a que chamou período barroco.
Uma exposição num centro comercial fica acessível a qualquer pessoa. É mesmo essa a ideia?
Por isso é que é interessante. Muitas vezes, não é que as pessoas não gostem, mas não têm possibilidades, mesmo as pessoas mais simples que não frequentam museus porque não foram educadas assim, não foram sensibilizadas para isso. O facto de aparecer num espaço comercial, onde circulam pessoas de todos os extratos sociais, permite levar a arte a todos os públicos. Às vezes, há pessoas que também podem sentir-se intimidadas ao entrar num museu, porque não estão habituadas. Uma vez um senhor, que ia integrado num grupo, deixou uma nota que dizia: “Tenho a quarta classe, tenho 75 anos e é a primeira vez que visito uma exposição”. Dizia que estava encantado e que na semana seguinte voltaria com a mulher. A arte é para ser usufruída por todos. Para Nadir, a arte tem como objetivo criar beleza e harmonia, para olharmos e sentirmos uma espécie de deleite. Depois, por outro lado, para ele toda a obra está sujeita a uma morfometria, a uma matemática que existe em todo o lado. Não há nada neste mundo que não tenha matemática, desde o funcionamento do universo até ao desenho de uma cadeira. A maneira como as formas se organizam eleva qualquer objeto à categoria de obra de arte.
Nestas exposições, gosta de se afastar e ficar a ver como as pessoas reagem?
Sim, acho que é sempre interessante. Grupos específicos, como pessoas que têm alguma incapacidade mental, são muito sensíveis a este tipo de obras, ou porque são as formas geométricas puras, ou porque são as cores. Também as crianças sentem uma grande proximidade com obras abstrato-geométricas.
As pessoas emocionam-se?
Em 2012 havia uma exposição de Nadir em Veneza, Itália. Estava lá uma senhora com uma criança e esteve muito tempo a olhar para um determinado quadro. Devo dizer que Nadir era ateu, não tinha qualquer ligação ao espiritual. Mas essa senhora depois procurou-nos e disse-nos que tinha uma filha que tinha falecido com 12 anos. E ela olhava para aquele quadro e sentia uma aproximação tão grande, como se aquela pintura fosse um intermediário entre a filha e ela. Quando ela falava eu até me arrepiei porque era com uma tal emoção. Foi tão sentido e emocionante que é uma coisa que vou recordar para o resto da vida.
Em “A Arte Chegou ao Colombo” há mais de uma dezena de trabalhos inéditos. Ainda há muita coisa inédita para mostrar?
Sim. Nadir tinha como se fosse um desígnio de pintar, criar uma obra. Era muito desligado de tudo o que era vida material. Tinha um objetivo, que era construir a obra, era isso que o motivava. Saía para dar os seus passeios à beira-mar, mas vida social não tinha.
Como era a rotina?
Levantava-se cedo porque gostava de trabalhar com a luz do dia. Trabalhava de manhã, a pintar ou a escrever. Depois do almoço fazia uma sesta, pintava outro bocadinho e ia dar uma volta. Mas, às vezes, quando ficava com uma ideia, com qualquer coisa que o preocupava, tinha de ir trabalhar. Tinha sempre na cabeceira da cama papel e lápis, porque às vezes acordava com uma ideia que tinha necessidade de assentar. A partir desse momento era como se ficasse sossegado, porque a ideia já estava ali escrita.
Trabalhava em várias coisas ao mesmo tempo?
Sim, olhava para um, punha de lado, pegava noutro, tinha essa necessidade. Trabalhou até ao último minuto. Ele dizia que estava debilitado fisicamente, mas as capacidades intelectuais estavam intactas. Qualquer erro na composição lhe aparecia com grande clareza. Tudo isto é fruto de um trabalho adorado. Ele dizia que a arte eram 10% de inspiração e 90% de trabalho. É preciso esse namoro, há a necessidade de olhar para o quadro, virá-lo ao contrário. Muitas vezes ele entendia se uma obra estava certa ao olhá-la através de um espelho para lhe surgir de forma simétrica.
Na última fase, em que Nadir Afonso já estava mais debilitado, deixou indicações sobre o que queria que acontecesse à obra dele?
A necessidade dele era criar. Agora, eu sinto que tenho a obrigação de divulgar a obra dele.
Quantas obras criou?
Só desenhos são milhares.
Onde é que guardam isso tudo?
Temos em vários locais. Se houver um problema, há sempre coisas que se safam.
E, em sua casa, há peças que quer especificamente manter lá?
Tenho coisas lá em casa, mas variam. Hoje começa uma exposição e penso: “Este quadro até ficaria bem lá”. E também é a maneira de estar sempre em transformação.
Como é que a Laura e o Nadir se conheceram?
Era muito jovenzinha, ele era um homem maduro. Eu tinha 17 anos, fiz 18 passado um mês de conhecer o Nadir. Estava no último ano do liceu de Chaves e havia muitos jovens que iam até ao atelier dele, que era muito próximo do liceu. O Nadir, além de ser um pintor de excelência, era um bom comunicador, tinha um grande sentido de humor, contava as histórias com muita piada. Quando o conheci, ele estava a trabalhar numa obra que era “Las Palmas”. Começámos a conversar e ele recitou a “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa. O Nadir, além de cantar muito bem e de improvisar ao piano, tinha os seus poetas preferidos. Antes de recitar, perguntou-me: “A menina gosta de poesia?” Eu disse que sim, na altura eu conhecia A Mensagem de Fernando Pessoa e pouco mais. Enquanto recitava fazia uns gestos largos com as mãos, que era característico dele, e quando terminou disse-me: “Tem que ler ‘O Marinheiro’, de Fernando Pessoa”. No dia seguinte, lá fui eu à biblioteca do liceu ler aquele livro.
Apaixonou-se logo por ele?
Depois foi conversa puxa conversa. Casámos em 1980, dois anos, quase três, depois de nos conhecermos. Conheci-o em abril de 77 e fiz 18 anos em maio desse ano. A minha família estava por Lisboa porque tínhamos vindo de Angola. O meu pai era funcionário público, ficou colocado em Lisboa e eu fiquei em Chaves a acabar o liceu.
Como é que a sua família viu esta relação?
Muito mal. A minha mãe dizia que eu ia estar casada um mês. Afinal, estivemos 33 anos e meio quase. Tivemos dois filhos. O Artur tem 38 anos e o Augusto 31.
Algum deles seguiu esta área?
O mais velho é arquiteto, mas agora também já não se está a dedicar muito a isso, escolheu outras áreas. Tanto um como o outro desenham bem, mas sentem que não têm aquela paixão do pai. O Nadir desde muito jovem sentiu que queria ser pintor.
Desde os quatro anos, não foi?
Exatamente. Foi quando fez o círculo vermelho na parede da sala de casa [tão perfeito que ninguém o castigou]. Aos 12 anos os pais já lhe tinham comprado um estirador. Ele sentia que era aquilo que queria. Dizia que era arquiteto por engano, mas a arquitetura serviu-lhe porque a vida de um artista é ingrata. Permitiu-lhe ter uma certa independência económica e fazer aquilo que queria. O Nadir nunca trabalhou por encomendas. A arquitetura deu-lhe independência económica. Depois, quando entendeu que já poderia deixá-la, deixou.
Quando a Laura começou a trabalhar com o Nadir foi para organizar a parte logística?
Eu era estudante, depois entrei no ensino superior, mas a vida dele passou a ser a prioridade da minha vida. O Nadir detestava ir às compras, a maioria das vezes até era eu que ia comprar os materiais porque já sabia o que ele queria. Há uns anos, talvez 20, fizemos umas obras de fundo em casa — ainda não vivíamos ali [em Cascais], vivíamos uns metros acima — e diz-me o empreiteiro: “Então o seu marido que é arquiteto nunca vem aqui ver a obra?”
Era porque confiava nas decisões da Laura?
Tratar de qualquer coisa burocrática para ele era para esquecer. Achava que não tinha espírito de arquiteto precisamente porque um arquiteto tinha de lidar com isso tudo, engenheiros, empreiteiros. O Nadir era muito desprendido de tudo. Era muito frugal na comida, por exemplo, não tinha prazer em comer. Desde que tivesse sopa de legumes, leite, mel, fruta, frutos secos; um bom colchão para dormir; e que não chovesse nos quadros, o resto estava tudo bem, era acessório. Às vezes dizia-lhe: “Tens de comprar uns sapatos, isto ou aquilo”. Ele respondia sempre: “Não preciso, eu já não gasto isto”. Por exemplo, num quadro do Nadir, reparem na paleta de cores. Os serígrafos queixavam-se disso: “Tem 50 cores, 60, 80”. Vou dizer-lhe, o Nadir comprava o branco e preto, essas sempre, o vermelho, amarelo, tinha um azul celeste e outro ultra-marinho, podia ter um rosa e pouco mais. Todas as outras cores surgiam da junção. Às vezes entramos em ateliers de artistas que têm para aí 500 tubos de tinta, 200 pincéis. O Nadir não, não sentia essa necessidade. Desde que tivesse uma mesa com um metro quadrado, um lápis e papel, já tinha o mundo dele. Tanto as tintas como as telas eram sempre de boa qualidade. Era a única coisa da qual não abdicava.