Todas as casas guardam as histórias de quem as habita. Por vezes, as sombras e os fantasmas suplantam as memórias felizes. É o que acontece na casa que se impõe como personagem em Caruncho. “Esta casa não é um refúgio, é uma armadilha”, escreve Layla Martínez, autora nascida em Madrid, em 1987, cujo livro-revelação voou das livrarias espanholas e chegou em março às portuguesas sob a chancela da Antígona.
“Estamos aqui presas, nós e as sombras”. Neste breve livro, com 128 páginas, somos engolidos pela casa rural a que regressa uma neta citadina. Nessa casa que alberga dentro um país inteiro, navegamos pelas feridas que persistem do período franquista, em especial no que toca às mulheres.
Licenciada em Ciências Políticas e com um mestrado em Sexologia, Layla Martínez já tinha publicado livros de poesia e de ensaio antes de Caruncho, que surgiu em 2021 com o selo da editora independente Amor de Madre, tornando-se num verdadeiro acontecimento literário em Espanha. Não foi apenas o tema que despertou interesse, mas a forma de traçar um retrato da Guerra Civil espanhola e posterior razia franquista com uma dimensão sobrenatural. Martínez apropriou-se do género do terror para incorrer do que é bem terreno: a violência sobre as mulheres, a sociedade patriarcal, o conflito de classes, a dificuldade em lidar com a memória histórica, o desejo de vingança.
É, de resto, esse o tema que domina a entrevista da escritora ao Observador, por e-mail, antecipando um périplo que fará por Portugal em setembro, à boleia do projeto Sementes da Dissidência, uma iniciativa da editora Antígona para contrariar as grandes assimetrias regionais e sociais no acesso a livros. A autora estará em Mértola para um encontro com a comunidade alentejana mediado pela associação Boa Criação, de Rita Sales e Pedro Bravo, que criaram o Projeto de Boca em Boca – Histórias a Nutrir Comunidades. Haverá dois momentos com a autora para partilhar experiências e histórias.
“O livro é uma história de vingança para as mulheres da minha família”, admite Martínez, que escreveu em busca de justiça devida para décadas de opressão das mulheres da sua família. “A vingança interessa-me muito, tanto na literatura como na vida real”, assume. “É uma força muito destrutiva, que acaba por consumir também aquele que se vinga, mesmo que o consiga fazer. Mas é também a única forma de justiça para os oprimidos. O próprio livro também se tornou numa vingança.”
Para escrever Caruncho (2021) inspirou-se na história da sua família materna, que é oriunda da região de Cuenca, onde a repressão franquista foi particularmente dura. Tendo nascido em democracia, como surgiu a vontade de querer explorar esta ideia do trauma que não viveu, mas que herdou?
O trauma da repressão franquista está muito presente na minha família, tal como em muitas outras que a viveram, em parte porque os responsáveis nunca foram julgados e não houve um reconhecimento público ou uma homenagem às pessoas que se opuseram à ditadura. No meu caso, cresci com a minha avó e, por isso, este facto esteve mais presente do que se tivesse vivido com a minha mãe.
Também acho que nas cidades pequenas o trauma estava mais presente do que nas grandes cidades, porque havia um confronto diário com as pessoas que assassinaram os nossos filhos, maridos, irmãos ou pais, ou os filhos daqueles que o fizeram, e que se gabavam disso. A minha avó viveu sempre com o medo e a dor que interiorizou em criança e que inevitavelmente me transmitiu. Por exemplo, ela tinha medo que eu estudasse ciências políticas na universidade, pedia-me sempre para não dizer as minhas ideias políticas nas aulas, para passar despercebida, porque nunca se sabe quem pode estar a ouvir.
Neste livro há um ressentimento e uma raiva em crescendo. Sente-se que há ódio que continua de geração em geração, uma genealogia de raiva acumulada de quem sempre abusou dos mais frágeis: os mais pobres e as mulheres. É um livro que se propõe a uma espécie de vingança?
Sim, se tivesse de resumir o livro em poucas palavras diria que, acima de tudo, é uma história de vingança. A vingança interessa-me muito, tanto na literatura como na vida real. Deu origem a grandes obras-primas, como O Conde de Monte Cristo ou Hamlet. É uma força muito destrutiva, que acaba por consumir também aquele que se vinga, mesmo que o consiga fazer. Mas é também a única forma de justiça para os oprimidos. O próprio livro também se tornou numa vingança. Os Jarabo são uma família real, e eu queria que o seu nome constasse do livro. Foram responsáveis por uma repressão atroz naquela zona, estavam muito bem posicionados no regime, o pai tornou-se ministro do Franco nos últimos anos da ditadura. Nunca pagaram pelo que fizeram nem foram julgados, pelo que quis que, pelo menos no livro, as suas vítimas pudessem vingar-se.
Retrata um tipo de ódio que incide particularmente sobre as mulheres. Escreve: “aquela coisa que muitos homens têm pelas mulheres, que pensam que é desejo, mas que é apenas ódio”.
O patriarcado criou muito ódio e medo das mulheres. Ensinou os homens a serem violentos, deu-lhes o direito de explorar e oprimir as mulheres. Penso que isso também se misturou com o desejo. Tornou o desejo masculino heterossexual complexo, porque se deseja a mesma pessoa que se odeia. E muitos homens acabaram por confundir isso e transformar o desejo numa outra forma de expressar o ódio.
Ainda sobre o ódio, há uma questão de classe que subjaz ao livro e que resulta quase num ódio de classe. Como foi trabalhar essa ideia na literatura, um meio historicamente classista?
Concordo plenamente que a literatura tem sido tradicionalmente um meio classista. Penso que continua a ser, apesar dos avanços registados. Quando comecei a ler para encontrar o tom narrativo que queria dar ao livro, procurei romances com empregadas domésticas como protagonistas. Não há praticamente nenhum. As criadas não escreveram livros e as pessoas que têm criadas em casa não estão interessadas nelas como protagonistas, quando muito como personagens secundárias, por vezes muito estereotipadas.
Um dos poucos sítios onde encontrei empregadas domésticas como protagonistas foi na literatura popular dos séculos XVIII e XIX. Eram livros de má qualidade, muito baratos, destinados às classes populares. Muitas vezes eram histórias reais, aquilo a que hoje chamaríamos true crime. Aí encontrei muitas histórias sobre empregadas domésticas, especialmente empregadas que assassinavam ou roubavam os seus patrões. Para as classes trabalhadoras, estas empregadas eram uma fantasia, eram o seu sonho, tal como os bandidos, que também havia muitos nestes livros.
À medida que avançamos nas páginas, sente-se um progressivo desconforto. Pegando na ideia do título, é como se o caruncho nos fosse corroendo aos poucos. Como ficou depois de escrever este livro?
Escrever o Caruncho foi um processo difícil. Escrevi-o com muita raiva, muito zangada, e acho que isso transparece no livro. É algo que acontece muito aos escritores da classe trabalhadora no seu primeiro romance. Penso em Donald Ray Pollock ou Édouard Louis, por exemplo. Queria que essa raiva fosse sentida fisicamente ao ler o romance, para que o leitor quase lhe pudesse tocar. Agora estou a escrever o segundo romance e já não a sinto tão fortemente, por isso Caruncho serviu provavelmente para a exorcizar.
O romance decorre numa casa que acaba por ser uma personagem. “Esta casa não é um refúgio, é uma armadilha”, escreve na contracapa, desafiando a ideia de relação familiar perfeita, lembrando que aquilo que para muitos significa cuidado, proteção, ajuda, para outros pode significar, violência, controlo, terror.
Sim, penso que o melhor e o pior está nas famílias, por vezes na mesma família. Dentro do terror, o subgénero das casas assombradas tem falado muito sobre isto. As casas assombradas têm sido usadas como metáfora para o abuso de crianças, a violência de género, o trauma familiar que passa de uma geração para outra… A casa nem sempre é um lugar seguro, também pode ser muito assustadora.
No final do livro agradece à sua avó por a ter deixado contar a história da sua casa e da sua família. Quanto tem Caruncho de autobiográfico?
Caruncho é a história da minha bisavó e da minha avó, e da casa da família. Excetuando alguns pormenores que foram alterados para funcionarem melhor no romance, tudo é baseado na sua história real. Também os fenómenos sobrenaturais. Na minha cidade acreditam muito em fantasmas, chamam-lhes “aparecidos”. É muito comum o espírito de um familiar aparecer porque tem uma mensagem, às vezes simplesmente para dizer que está num bom lugar ou para pedir que rezem por ele.
As maldições que aparecem no livro também são reais. Com o despovoamento e o envelhecimento da população, estas crenças estão a perder-se. Quis que o livro servisse também para as preservar. O que muda mais é a história da neta, que não é muito parecida com a minha, felizmente.
O que achou a sua avó?
A minha avó não leu o romance, está numa idade avançada e quase não consegue ler. Mas quando fui entrevistada na rádio ela ouviu-me e ficou um pouco zangada porque diz que não devia ter contado a toda a gente sobre o seu pai. Em espanhol dizemos que a roupa suja se lava em casa, mas há também outra expressão mais correta para este caso: não querer tirar os esqueletos do armário.
A figura da avó tem conquistado espaço em narrativas contemporâneas, rompendo um bocadinho o arquétipo em que se encaixam as mulheres mais velhas, que só poderiam ser ou avós maternais e doces ou bruxas. Procurou isso ao criar esta personagem, quebrar com esse estereótipo?
Não tenho a certeza se a personagem da avó quebra o estereótipo ou se pode ser classificada como uma bruxa. No entanto, penso que é muito necessário quebrar este estereótipo. Estou muito interessada em mulheres com mais de sessenta anos em papéis de ação, por exemplo. Estou a pensar no último filme da [saga] Star Trek ou no último filme do Terminator, bem como no livro Drive Your Plow Over the Bones of the Dead (Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos, em português) de Olga Tokarczuk. No entanto, penso que o interesse atual está também relacionado com o feminismo e com o facto de as mulheres se terem interessado mais pela história das mulheres.
O romance está narrado a duas vozes, a da avó e a da neta, e nem sempre é fácil distingui-las. Porque se decidiu por este tipo de narrador, um narrador não confiável (unreliable narrator, em inglês), e o que acha que ele aporta à história?
No primeiro rascunho, que era um conto, a narradora era a neta. No entanto, quando decidi transformar a história num romance, achei que seria bom que a história fosse contada pelas duas habitantes da casa. Na realidade, todos nós somos narradores pouco fiáveis, não há versões definitivas de uma história, cada um tem o seu ponto de vista, os seus interesses, as suas opiniões. Também mentimos, escondemos coisas, enganamo-nos a nós próprios. As histórias de família estão cheias de mentiras, segredos, versões diferentes. Dois narradores não fiáveis podem refletir melhor isso do que um único narrador fiável.
E as duas narradoras ficam sempre por nomear.
Sim, queria que não tivessem nome para poderem ser qualquer mulher. Caruncho é a história das mulheres da minha família, mas penso que, infelizmente, muitas mulheres da classe trabalhadora passaram por coisas semelhantes. A violência de classe e de género são experiências comuns a todas as mulheres pobres.
Porque escolheu o género do terror para retratar este medo coletivo, dando à história um tom menos realista e mais sobrenatural?
Penso que o género de terror sempre refletiu os medos e as ansiedades coletivas. Se analisarmos a evolução do género, é possível ver como os medos mudaram, e também como alguns se mantiveram. Mas, também, a história que queria contar era aterradora em si mesma. As montanhas que rodeiam a minha aldeia estão cheias de fantasmas. Quando a guerra terminou, muitos homens fugiram para as montanhas para iniciar uma guerra de guerrilha. Acreditavam que a ditadura não iria durar muito tempo e também sabiam que se ficassem nas suas casas seriam mortos. Estes guerrilheiros foram mortos durante os doze anos seguintes, por vezes nas montanhas, eram executados e os seus corpos deixados lá. Outras vezes eram presos e torturados durante dias nos quartéis. Todas essas sombras ainda estão na minha aldeia, à espera de justiça ou de vingança.
Há uma relação muito livre das personagens com a morte, uma naturalização do sobrenatural, do fantasmagórico. A dada altura escreve mesmo que “há coisas piores do que os mortos que surgem do nada”.
Na região de onde a minha família é originária, a relação com a morte e o sobrenatural não é algo estranho. Penso que é assim que acontece em muitas culturas tradicionais, embora as crenças e os mitos específicos sejam diferentes. A mortalidade devido a doenças e acidentes era muito elevada, como acontecia com as crianças, pelo que as pessoas viviam muito mais com a morte como um acontecimento quotidiano. A minha outra avó, a mãe do meu pai, tinha catorze irmãos e só sete deles chegaram à idade adulta. Hoje é impensável, mas na altura não era assim tão estranho.
Gostava de lhe perguntar sobre este conceito de “saber ver as pessoas por dentro”, que explora no livro. Não pude deixar de pensar na Blimunda, personagem central de Memorial do Convento (1982), de José Saramago, e que tem essa habilidade de ver as pessoas por dentro. Porventura leu o livro e este detalhe influenciou-a de alguma forma?
Não, li muito pouco de Saramago, mas vou ler este livro. Acho, sim, que há qualquer coisa de A Sibila, de Agustina Bessa-Luís. Talvez também de Maria Judite de Carvalho, que adoro.
Uma das ideias que o livro parece comportar é que a rendição feminina só é possível com a destruição absoluta. Acredita nisso?
Penso que a opressão destrói os oprimidos, retira-nos a nossa humanidade e transforma-nos em monstros, semelhantes aos opressores. Mas penso que os monstros podem revoltar-se. Gosto muito, por exemplo, da interpretação da criatura de Frankenstein como uma metáfora do proletariado. Um corpo feito de muitos corpos, monstruoso segundo os padrões burgueses, mas que, quando toma consciência, se educa, se torna um ser sensível. E se rebela contra o médico, símbolo da burguesia.
Nos agradecimentos do livro agradece também à sua mãe “por acreditar na vingança”. O que vinga este livro?
O livro é uma história de vingança para as mulheres da minha família, que não foram capazes de se vingar. Na realidade, elas foram vítimas, mas não queria revitimizá-las no livro. Queria que a ficção servisse para mudar a história, para que elas pudessem, finalmente, ter a sua vingança.