Confesso que nunca fui grande fã da Madonna. Não quero com isto dizer que não gosto da Madonna. Quero simplesmente dizer que nunca comprei umas cuecas usadas por ela no eBay por trinta mil dólares. Nunca tive posters da Rainha da Pop na parede do quarto. Aliás, até esta frase anterior, acho nunca tinha escrito “Rainha da Pop”. Nunca a vi em concerto. Nunca a vi sequer em Lisboa. Minto. Julguei tê-la visto uma vez no Pap’Açorda, mas afinal era a Cristina Caras-Lindas. Não que sejam parecidas, eu é que estava francamente embriagado.

Mas foi o suficiente sentir aquele rush, aquele “Ai caraças, está ali a Madonna e está a comer um risotto de espargos!” para perceber que eu, como qualquer outro mortal, também sucumbo ao feitiço de um dos nomes e de um dos rostos mais reconhecíveis em todo o planeta. E aqui falo de Madonna, não desfazendo na Cristina Caras-Lindas, a quem mando um beijinho se me estiver a ler.

Sei, por junto, umas cinco letras de cor. O suficiente para acompanhar um bar inteiro no “Vogue” com um falso playback e uma vaga coreografia. Nas partes em que a letra me foge, levo estrategicamente o gin tónico à boca. Não sei se fui eu que inventei este truque mas, se fui, podem usar à vontade. De nada.

Com o tempo, porém, fui aprendendo aquela lista de pessoas e nunca me engano.

Greta Garbo, Monroe, Dietrich, DiMaggio, Marlon Brando, Jimmy Dean, Grace Kelly, Harlow Jean, Gene Kelly, Fred Astaire, Ginger Rogers, Rita Hayworth, Lauren, Katherine, Lana, Bette Davis. Impressionados? Também eu. Se calhar até sei dizer de trás para a frente. Esperem só um bocadinho.

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Ok. De trás para a frente não consigo.

Por tudo isto, creio ser a pessoa perfeita para falar do álbum Like a Prayer que faz agora precisamente 30 anos, tendo sido lançado, naturalmente, a 21 de Março de 1989. E porquê? Porque sou a única pessoa viva que nunca ouviu o álbum todo. E assim, numa viagem no tempo, é precisamente isso que vou fazer agora.

Vesti-me num look total de ganga: calças, camisa, blusão, meias e cuecas, pus uma cabeleira loira com corte à f*da-se e tenho uma prancha de bodyboard debaixo do braço. E estou de novo em 1989, num xitex interminável, com o quarto álbum de Madonna nas mãos, acabadinho de sair!

A capa

Numa altura em que usar uma meia de cada cor ou um brinco de cada nação era considerado “excêntrico”, e nem sempre no bom sentido (pelo menos para a minha avó) e em que usar jeans rasgados era “rebelde”, a capa de Like a Prayer era, no mínimo, escandalosa. Vemos um quinto de Madonna. Talvez um sexto. Bom, temos do umbigo ao final da… braguilha, vá. A sugestão é que, na parte de cima, ou está despida ou tem um daqueles tops curtinhos. O primeiro botão das calças está desapertado, e as mãos da cantora estão assim em pistola, com o polegar lá dentro e o resto dos dedos de fora. Uma pose que se associava mais a um cowboy e menos a uma senhora. Mas este é, desde logo, um dos statements de Madonna: senhora é a tua tia. E dá o tom ao espírito do disco. Remata o conjunto um colar que me parece étnico, mas com pedras boas, e onze anéis espalhados pelas duas mãos. O nome de Madonna aparece maior, e o nome do álbum em letras mais pequenas. Eu faria o mesmo.

A capa de “Like a Prayer”

Like a Prayer

O álbum abre logo com a música que lhe dá nome, e que se tornou, quiçá, na sua mais emblemática. Um clássico que sobrevive maravilhosamente à passagem do tempo e que é, confesso, a minha preferida de todas. É uma canção de amor. Mas não é aquele amor do género “I Will Always Love You” das Whitneys da vida. É um amor de “Ai, despe-me e come-me já aqui por tudo quanto é mais sagrado!”. Um amor sexy à brava. Madonna, conta-nos ela, ao mero som do seu nome dito pelo objeto do seu desejo, fica completamente varada. Doidona. De subir paredes. Ou de descer. De cair de joelhos. Pronta para levá-lo lá, confessa a cantora. Chique. Mas ser chique nunca foi a ambição de Madonna. A originalidade e a pedrada no charco é precisamente essa: sim, sou uma mulher. Sim, tenho desejo sexual. Sim, apetece-me. E agora? Vão fazer o quê?

Em 1989 isto era uma novidade. Não a mulher sexualizada. Mas a mulher sexualizada e no centro da sua própria sexualidade. Voltando às comparações: Madonna não wants to dance with somebody. Madonna wants to coiso with somebody. Para abanar o resto que ainda não tinha abanado, Madonna pronuncia esta sexualidade como uma religião — um tema a que voltaria muitas vezes — desde o título da música, até pedir que o Céu que a ajude, e à invocação do nome do Senhor em vão logo na abertura. A Igreja não gostou e os católicos gostaram ainda menos. Foi para o lado que Madonna se deitou melhor. Com vários homens ao mesmo tempo. Pray.

Express Yourself

No segundo tema do álbum, Madonna deixa de falar de si e dirige-se diretamente às fãs, e no imperativo. Exprime-te, filha. Exprimam-se, melheres! Eu próprio me sinto a exprimir, batendo o pé, fazendo estalinhos com o polegar e o indicador enquanto carrego nas teclas do laptop. É impossível ouvir este “Express Yourself” sem mexer as ancas. Aliás, acabei por ter de me levantar e dançar um bocadinho. Fiquei com vontade de me atirar para a piscina, vestido e tudo. E era o que faria se não estivesse tanto frio. Bom, e se tivesse uma piscina. Mas, para lá do ritmo contagiante, Madonna não está aqui a brincar, esta não é uma melodiazinha pop. Ou não é só. “Estão a ouvir, mulheres?”. Ponham os homens no lugar deles. Bora! Não se contentem com homens de meia-tijela! Ponham o amor à prova! Eles que enfiem os anéis de diamantes onde quiserem. E aquele carro que dá 320 km/hm? Ó filho, o que eu quero é um tipo que me puxe para cima, que me trate como uma rainha. Não quero cá rosas nem lençóis de cetim. E depois? Quando não estamos na cama como é que é? Queremos é homens como deve ser. E se não forem como deve ser, levam com um par de patins que até ficam a andar de lado.

Quanto devemos a Madonna pela des-neto-de-mourização do mundo? Muito, digo eu. E dizem as pessoas que percebem destas coisas. Mas isto sou eu a exprimir-me. Claro que uma música que se chama “Expressa-te”, por outras palavras, “Sê tu própria/o”, não podia deixar de se tornar, nos idos de 1989, num hino gay. Madonna nunca abandonou o público gay e o público gay nunca abandonou Madonna. Não exagero quando digo que é, até hoje, a devota base dos seus fãs. Isto só acrescenta à dimensão do impacto cultural de Madonna Louise. Um público crítico comó caraças, mas eternamente fiel. Eu sei, porque até tenho amigos que são.

Love Song

Segue-se um dueto com Prince, que já lá está, coitado. Abre em francês, o que para mim já ganhou. E digo já de caras: a música é fixíssima. Volto a levantar-me da secretária para dançar. Desta vez, mais devagar mas com os braços no ar, abanando as mãos ligeiramente. Pensar-se-ia que “Love Song” é uma canção de amor. Mas Madonna explica que não: “This is not a love song”. Pelo título, íamos ao engano. Lembrou-me logo aquela piada batida da pessoa que punha o açúcar no frasco do arroz para enganar as formigas. O tempo passa tão devagar para aqueles que esperam e os que andam a correr parece que são os que se divertem mais, canta ela. E eu pensei: olha, agora é que disseste uma grande verdade! E fiquei com a sensação de que já tinha ouvido aquilo noutro lado. De facto, Madonna volta a dizê-lo em “Hung Up”, de 2005. Um piscar de olhos a si mesma? Ou uma ironia poética, um “Olha, ainda aqui estou à espera”? Seja como for, a frase dá que pensar.

Como me deu que pensar o que diz deste álbum Daryl Deino no seu artigo Why Madonna’s ‘Like A Prayer’ Is The Most Important Album Ever Made By A Female Artist, para o Huffington Post. Para além de culpar na misoginia o facto de Like a Prayer não ter ganhado, nem sequer ter sido nomeado, para nenhuma categoria importante nos Grammys, escreve que se um homem tivesse a mesma prestação vocal que Madonna tem neste álbum, dir-se-ia que “a sua voz não é tecnicamente perfeita, mas é distintiva, melódica e cheia de emoção”. Assim, sendo Madonna, diz-se apenas que “canta mal”. Tem toda a razão. A sua voz empalidece ao lado da de Prince mas, por alguma razão, isso não interessa nada.

Till Death do Us Part

Começo agora a patinar gelo fino, com músicas que nunca tinha ouvido na vida (como acontece com quase todas as outras), pelo que vou ser mais breve. Esta tem um je ne sais quoi do jogo do Pac Man. É Madonna a fazer pop. É Madonna a fazer bom pop. É Madonna a fazer muito bom pop. E fiquei cheio de pena de ter passado 1989 a ouvir os Queijinhos Frescos. Mas eu era tão novo…

Promise to Try

É o número sério do disco, como na revista à portuguesa. É uma balada comovente. E mais comovente ainda quando se sabe que Madonna dedicou este álbum à mãe, que morreu quando a cantora tinha apenas cinco anos. É uma carta de Madonna para si mesma, para essa “little girl” tão precocemente órfã. Oiçam. E se não ficarem com os olhos cheios de lágrimas, é porque têm uma pedra de gelo no lugar do coração. Seus monstros! Odeio-vos!

Cherish

Afinal esta também conheço! Mais pop do bom. Estão há horas à espera que eu acabe de escrever isto, e já me mandaram uns dez SMS a perguntar se está pronto. Não, não está. Neste momento, por exemplo, subi a uma cadeira e estou a cantar o refrão aos gritos. “CHERISH THE THOUGHT OF ALWAYS HAVING YOU HERE BY MY SIDE! (OH BABY I) CHERISH THE JOY YOU KEEP BRINGING IT INTO MY LIFE (I’M ALWAYS SINGING IT)”. O meu cão acaba de fugir da sala. Ai, Madonna! Haverá sempre quem não nos compreenda…

Dear Jessie

Uma música que toca como uma canção de embalar, com risos de crianças e tudo. Na letra, há elefantes cor de rosa que dançam com luas e sereias. Como eu, às vezes, também tomo umas coisas que põem assim, senti-me completamente em casa. Já ouvi três vezes.

Oh Father

Daddy issues, quem nunca? Num tom confessional e autobiográfico, Madonna casca no pai que, pelos vistos, era um grande pulha. Mas sempre na sua perspetiva “You can’t hurt me now”. Porém, se ouvirmos esse “Father” não como o seu próprio de carne e osso, mas como aquele que está no Céu, a letra transforma-se num quebrar de amarras da religião católica em que cresceu e que lhe foi um espartilho. Eu escrevi mesmo “quebrar de amarras” e “espartilho”? Pois, parece que sim.

Keep it Together

Madonna faz aqui um hino à família, aos irmãos e às irmãs. Não é preciso ser muito esperto para perceber que vai muito para além dos laços de sangue, ainda que deles fale. É a família lato sensu, os irmãos e irmãs que escolhem ser irmãos e irmãs. Um apelo de união às mulheres, aos negros, aos homossexuais, aos que viviam nas franjas da sociedade neste ano de 1989. Este tem sido, de resto, o cerne da mensagem de Madonna ao longo de toda a sua carreira.

Pray for Spanish Eyes

Madonna volta a falar de Deus. Este é um dos temas do álbum, como já perceberam, se ainda não tinham percebido pelo título: a sua adolescência católica, a sua família, a sua mãe, a sua relação com o pai. A música em si é uma chatice em três atos.

Act of Contrition

E, last but not least, esta música, que abre com uma grande guitarrada. Madonna fecha com um pedido de desculpa a Deus Nosso Senhor pelas heresias todas das músicas anteriores. Mas, a esta distância, bem sabemos que o que está a dizer é: “Espera lá, que ainda hei-de fazer pior”.

Pior pode ter feito, mas diz-se que melhor talvez nunca mais volte a fazer. Foi com este álbum que a crítica e o mundo se rendeu a esta mulher. A revista Rolling Stone chamou-lhe “o mais perto de arte a que a pop  consegue chegar”.

Like a Prayer, no entanto, envelheceu muito melhor que a Rolling Stone, que já ninguém lê. E Madonna, com todo o sexismo, com todo o preconceito com a sua idade, com todo o enxovalho às plásticas, às raízes do cabelo, aos decotes, às pernas, ao diabo a quatro, continua, trinta anos passados, no topo da sua arte. Não é feito pequeno.

E hoje, em todo o mundo, continuamos a ouvir o seu nome e — até leigos como eu — sentimo-nos em casa. Just like a prayer.

Hugo van der Ding é autor (“A Criada Malcriada”), ilustrador e cómico em geral