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Manuel Abrantes, entre a sociologia e o romance: "Criei a Maria do Carmo, mas não inventei as histórias destas mulheres"

Através da complexidade de uma personagem e de um país, "Na Terra dos Outros" conta a história de uma rapariga de 11 anos que é arrancada à infância para ser empregada em Lisboa. Falámos com o autor.

Uma história simples, contada de forma simples. Foi isso que Manuel Abrantes quis fazer no seu romance de estreia. Porém, as voltas que a vida da protagonista de Na Terra dos Outros dá são tudo menos uma estrada a direito e agarram o leitor desde o momento em que uma criança de 11 anos é atirada para dentro de um carro, com um casal que mal conhece, com destino a Lisboa. Objetivo: ser criada de servir na capital, durante o Estado Novo.

Entre continuar a viver na pobreza no interior, no meio de uma família numerosa, ou passar à frente o tempo de brincar para se transformar numa adulta (ou escrava) não há escolha fácil. A Maria do Carmo calha a Opção A (sem que ninguém lhe pergunte o que prefere, obviamente) e o que o futuro lhe reserva é igual ao de tantas outras raparigas daquela época: cozinhar, lavar, passar a ferro, muitas vezes sem direito a férias ou folgas e com um mísero pagamento ou nenhum (chegavam a ter apenas direito a cama e comida). Ainda sem saberem cuidar de si próprias, tinham frequentemente a cargo crianças da mesma idade — um cenário impensável atualmente mas que não é assim tão longínquo. O romance cresce e avança também com as mudanças de um país que passa de ditadura a democracia, uma capital que se expande a uma velocidade estonteante e com uma classe trabalhadora que tenta a todo o custo subir os degraus para chegar a uma vida mais folgada, sendo atirada para trás uma e outra vez.

Investigador e professor no campo da Sociologia do Trabalho e das Desigualdades, com incidência no serviço doméstico, Manuel Abrantes entrevistou muitas mulheres que foram “criadas para todo o serviço”. Todas juntas construíram um puzzle chamado Maria do Carmo, uma protagonista por quem torcemos a cada página e que conseguimos perfeitamente vizualizar, seja numa divisão trancada a engomar camisas imaculadamente brancas, num apartamento dos Olivais onde uma família debita e defende com orgulho os direitos dos trabalhadores entre o fumo dos cigarros e as músicas do final dos anos 70, ou perdida num país onde não entende a língua, iludida por um sonho de emigração que, rapidamente se percebe, nunca fará a sua sorte mudar.

A vida de Maria do Carmo, e das restantes personagens de Na Terra dos Outros que giram à volta dela, estende-se até à pandemia com curvas, desvios e recuos. A protagonista é heroína e mártir da própria história, é capaz de dar um passo no vazio ou de deixar-se morrer aos poucos, abandonada à solidão. É tudo em um e é isso que torna esta história tão real e mantém o interesse até ao fim.

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Como sociólogo, a tentação de Manuel Abrantes fazer um ensaio sobre esta mulher podia ser grande. Por isso, teve de fazer um exercício oposto ao seu instinto e, garante, deixou-se levar pela narrativa, sem saber quando iria parar. Nascido em Lisboa, de pais igualmente alfacinhas, tinha uma inquietação sobre tudo o que se tinha vivido antes de ele nascer. Essa curiosidade, aliada à experiência profissional, fizeram-no tentar várias vezes começar a escrever um romance. Durante anos fez experiências e, quando teve em mãos um resultado que lhe agradou, enviou-o a uma editora que conhecia bem enquanto leitor. A Companhia das Letras reconheceu o valor de uma mulher invisível (até para ela própria) e Na Terra dos Outros acaba de ser publicado. O autor explica como foi escrever o romance de estreia.

A capa de "Na Terra dos Outros", de Manuel Abrantes (Companhia das Letras)

Quem foram as Marias do Carmo reais que deram origem a esta Maria do Carmo?
O livro começou a germinar quando fiz um conjunto alargado de entrevistas a mulheres que trabalhavam como empregadas domésticas. Foi já há cerca de 12 ou 13 anos, no âmbito do meu trabalho como sociólogo, e conduziu à minha tese de doutoramento. Muitas dessas mulheres contavam que tinham vindo para Lisboa ainda crianças, algumas até mais novas do que a Maria do Carmo, com sete ou oito anos. Tinham vindo servir para casas de famílias abastadas, ou pelo menos mais abastadas do que a sua família de origem. Contavam a experiência de vida desde então até à idade que tinham à data da entrevista, já com meia idade ou uma idade mais avançada. É claro que estas experiências ressoam com histórias que nós já ouvimos aqui e ali. Todos nós sabemos ou conhecemos alguma pessoa que tenha passado por isto. É mesmo comum numa certa geração. Fiquei impressionado com o ponto de partida, o facto de serem crianças, e motivou-me ouvir os relatos contados pelas próprias: ir para uma cidade que não se conhece, com uma família que não é a nossa e descobrir o mundo a partir daí.

Não iam para ser crianças, iam com tarefas e responsabilidades de adultos.
Exatamente. Havia histórias muito curiosas, como por exemplo raparigas com nove ou dez anos que iam para Lisboa tomar conta de crianças com a mesma idade. Parece um pouco contraditório hoje mas, com essa idade, iam limpar a casa, fazer refeições, passar roupa a ferro, o que fosse preciso. E iam aprendendo e estabelecendo relações bastante complexas com as famílias que as recebiam — às vezes boas, às vezes más.

A história começa ainda antes do fim da ditadura e vai até à pandemia. É um intervalo muito grande, com referências temporais que o próprio Manuel não viveu. Como fez esse percurso tão extenso?
Foram vários passos. Tinha a ideia de escrever este livro há muitos anos e, portanto, fui fazendo algumas tentativas de começar. Não correram muito bem, tive de ler mais um pouco, mas foram todos aqueles anos que me permitiram amadurecer a história. A seguir, foi preciso também aprofundar a investigação. Tinha uma grande curiosidade sobre o que se passou 15 anos antes de eu nascer ou, pelo menos, de ter alguma memória. Acho que é normal termos esta inquietação sobre o que se passou aqui mesmo antes de nós chegarmos. Li muito, quer estudos sociológicos, quer históricos, quer literatura da época. Houve um livro fundamental, da Inês Brasão, O Tempo das Criadas, um estudo sobre o que era ser criada durante o Estado Novo e que vai até aos anos 70, que me ajudou muito. Depois de escrever, dei a ler uma primeira versão a várias pessoas que tinham memórias dessa época, queria que me dissessem se havia ali algo que parecesse implausível. Houve algumas anotações que me ajudaram a reescrever.

"É como vivermos algo durante o dia e depois sonharmos com isso à noite — as coisas são sempre transformadas pela imaginação e o subconsciente. Aqui aconteceu um bocadinho isso em alguns pontos. Algumas mulheres vão certamente reconhecer-se, mas a Maria do Carmo ganhou vida própria e eu, passados tantos anos, já não consigo dizer o que veio de onde."

Esta Maria do Carmo que, ainda miúda, apanha boleia para Lisboa e chega a viver na rua, tem depois uma fase em que se deixa ultrapassar pela vida, quando fica praticamente eremita no próprio apartamento. É cansaço e desistência por ter levado tanta porrada da vida?
É uma boa pergunta. Deixei-me muito levar pela história e cada coisa que acontecia levava à seguinte. Acho que a sua visão é bastante acertada de todo o percurso dela, embora eu quando estivesse a escrever não tivesse conseguido ter as coisas assim tão claras na cabeça. Uma das contradições que penso que marca a existência dela é que ela passa por todas essas experiências de grande dureza e, no entanto, é sempre vista pelas pessoas à volta dela como de alguma forma fraca, submissa, que se deixa usar. Isso é-lhe apontado em vários momentos, até por um dos filhos. E nós vimos o que ela passou, portanto isso é uma acusação de uma injustiça brutal, mas que mostra essa contradição entre o que ela passa e a forma como é vista. Por volta dos 50 anos, chega a um ponto em que atravessou as maiores dificuldades e não recebeu nenhum prémio por isso. É descartada, já ninguém precisa dela. Quando deixa de ter de cumprir obrigações, ela não tem nada e há de facto um afundamento. Depois, a terceira parte do livro acaba por ser aquela que é realmente centrada nela.

O que estava definido antes de começar a escrever?
Havia um ponto de partida, a ida para Lisboa aos 11 anos para servir, e uma espécie de clarões sobre o que ia acontecer a seguir. Eu tinha uma impressão de que ia chegar à velhice da Maria do Carmo, mas não tinha a certeza desde o início. Havia uma imagem qualquer da ida dela para a Holanda, inspirada também pelos relatos das mulheres que entrevistei, que emigraram tipicamente para França e Alemanha. Tinha pontos aqui e ali e tive de ir descobrindo como uni-los. Queria acompanhar a experiência dela, não queria cair numa reflexão ou num ensaio sobre ela. Queria ir com ela para onde a vida a levasse.

Este é o seu primeiro romance, demorou alguns anos até estar pronto. Foi um processo doloroso?
O processo foi bastante claro porque escrevo desde muito novo. Este é o primeiro romance, mas já tinha escrito contos, por exemplo. Sabia que tinha de estudar, investigar e assegurar um desenho mínimo das personagens e o início da história. Depois, sabia que tinha de passar um bom período a escrever e mais algum tempo a rever. Foi muito trabalhoso porque teve muitas versões, foi para muitos sítios. Tornou-se maior do que estava à espera, essa foi a surpresa. Quando finalmente agarrei a história, lembro-me de pensar: “Isto é uma história simples e vou contá-la de forma simples”. Isso também me tranquilizou.

As pessoas que entrevistou e que deram origem a esta Maria do Carmo já leram a história?
Ainda não tive feedback, mas gostava que lessem. Há sempre aquela inquietação porque peguei naquelas histórias e mexi nelas, cortei, colei e estou a devolver uma coisa que não é a original. É como vivermos algo durante o dia e depois sonharmos com isso à noite — as coisas são sempre transformadas pela imaginação e o subconsciente. Aqui aconteceu um bocadinho isso em alguns pontos. Algumas mulheres vão certamente reconhecer-se, mas a Maria do Carmo ganhou vida própria e eu, passados tantos anos, já não consigo dizer o que veio de onde. Criei a Maria do Carmo, mas não inventei as histórias destas mulheres.

"Vamos muitas vezes para as investigações com os nossos estereótipos. Por exemplo, achamos que as mulheres que trabalham como empregadas domésticas são de uma certa forma, têm um certo caráter e depois sentamo-nos a ouvir estas histórias e percebemos que há uma variedade imensa de experiências, até de origens sociais, de formas de olhar a vida, de expectativas. Isso é uma coisa que depois não esquecemos."

Como é que chegou à publicação do livro?
Quando terminei uma das versões que achei que poderia ser lida por uma editora, pensei qual seria a editora capaz de editar uma história assim, de um autor que não publicou nenhum romance, mas um autor português com uma narrativa deste tipo. A Companhia das Letras foi a primeira editora que contactei, porque conheço muito bem como leitor e tem lançado bastantes autores novos.

Investiga e leciona sociologia, com incidência no serviço doméstico. Das histórias com que se cruza, o que o tem marcado mais?
O que fica mais comigo é a consciência muito clara da desigualdade social. Em muitos dos projetos de investigação em que tenho participado, vamos para o terreno entrevistar ou recolher outro tipo de dados, muitas vezes de testemunhos pessoais, histórias de vida e situações concretas de pessoas que vivem em condições muito diferentes. E, portanto, no mesmo dia, eu podia estar a entrevistar, de manhã, uma mulher que trabalhava como empregada doméstica e, à tarde, estar a entrevistar um deputado na Assembleia da República para um outro projeto e, no fim de semana seguinte, ir para Londres entrevistar, por exemplo, imigrantes que não têm documentação. Parecem mundos diferentes, às vezes até é difícil perceber a relação entre eles. Como é possível conviverem todos na mesma cidade, por exemplo? Outra coisa que me tem marcado é a variedade de pessoas, o que parece um cliché. Vamos muitas vezes para as investigações com os nossos estereótipos. Por exemplo, achamos que as mulheres que trabalham como empregadas domésticas são de uma certa forma, têm um certo caráter e depois sentamo-nos a ouvir estas histórias e percebemos que há uma variedade imensa de experiências, até de origens sociais, de formas de olhar a vida, de expectativas. Isso é uma coisa que depois não esquecemos.

No seu livro não há a visão bucólica de que, se trabalharmos muito, conseguimos vencer na vida. A Maria do Carmo parece nunca ter uma hipótese que seja. Ela é feliz em algum momento?
Acho que pode depender para cada pessoa que lê o livro. Parece-me que ela é feliz quando pensa no que pode vir aí. Quando vai para a Holanda tem uma certa expectativa económica e de paz familiar, por exemplo.

O livro termina com “vamos lá ver como te safas, Maria do Carmo, a tua história ainda não acabou”. Com isto podemos esperar uma sequela?
Vou esperar um tempo para saber. Não queria acabar de escrever o livro, poderia ter escrito uma quarta e uma quinta partes com todo o gosto e impulso. De certa forma, tive de me refrear. Portanto, pode ser que esse desejo perdure.

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