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BRENDAN SMIALOWSKI/AFP/Getty Images

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Newtown. Será possível esquecer o dia em que 20 crianças foram mortas a tiro na escola primária?

Uma das questões que mais separam Clinton e Trump são as leis para as armas, que matam 33 mil pessoas todos os anos nos EUA. Em Newtown, as feridas do tiroteio na escola primária ainda estão abertas.

Reportagem em Newtown, Connecticut (EUA)

Como é que se pode esquecer um dia em que, de um momento para o outro, 26 pessoas são mortas a tiro numa escola primária, entre elas 20 crianças entre os seis e os sete anos?

Donna Culbert ficou a saber de tudo o que se estava a passar na escola primária de Sandy Hook pelo rádio da polícia. Naquela manhã de 14 de dezembro de 2012, Donna, que é diretora do departamento de saúde pública de Newtown, no estado do Connecticut, recebia a visita da pessoa responsável pelo controlo de animais no seu escritório. Por ser equiparada à polícia, Donna tinha um rádio. Enquanto falavam uma com a outra, ouviram: “Houve um tiroteio na escola primária de Sandy Hook”. Um a um, os colegas de Donna foram chamados para dar resposta ao incidente. Depois de acalmar um colega que tinha um filho na escola, ela também tentou dar a resposta possível para algo que nunca esperara.

Po Murray estava em casa com o marido, que se preparava para sair para jogar golfe. Mas, antes, tinham combinado que iam tomar o pequeno-almoço juntos. Enquanto comiam, Po pegou o computador e abriu o Facebook, onde deu de caras com um post de alguém que ouvira falar de um tiroteio em Newtown. Ligaram a televisão imediatamente, mas a informação era pouca e vaga. O marido de Po saiu de casa para ir jogar golfe, confiante de que nada daquilo seria muito grave. Entretanto, Po ficou a saber pela tv que o tiroteio era na escola de Sandy Hook. Ou seja, no bairro onde o casal vivia com os cinco filhos e onde quatro deles estudaram. Quando as informações começavam a ganhar contornos de pesadelo, Po ouviu o marido a entrar em casa. “Tive de voltar para trás”, disse-lhe. “Havia tantas ambulâncias, carros de polícia, carros do FBI, tudo, na auto-estrada. Isto não parece nada bem.”

Walter Carlson, construtor de chaminés e segurança na reforma, estava a arranjar o quintal quando deu pela sua mulher, que saiu disparada da porta de casa. Tinha acabado de ver na televisão que um atirador tinha feito um massacre na escola primária de Sandy Hook e havia rumores de que ele podia estar a avançar para a escola secundária de Newtown, que não era muito longe, e onde estavam dois dos seus netos.

Bill Begg estava numa reunião no hospital de Danbury, onde é diretor do serviço de urgência, quando começou a tomar conta do que se passava em Newtown, onde mora. O irmão, que é polícia, mandou-lhe uma mensagem a dizer-lhe o que se estava a passar. Bill levantou-se de imediato ativou o “modo de desastre”, utilizado apenas nas piores das catástrofes. Durante esse processo, recebeu uma chamada do chefe da equipa de paramédicos, que já tinha chegado à escola. Foi aí que começou a aperceber-se da dimensão da tragédia — o que o levou a esconder a informação da sua equipa. Afinal de contas, quase metade deles vivem em Newtown.

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Ana Paula Machado, pediatra luso-americana e supervisora médica das escolas de Newtown, estava no consultório quando lhe disseram que tinha havido um tiroteio na cidade onde vive há mais de duas décadas. “Quando souberem mais alguma coisa avisem-me”, pediu às enfermeiras, enquanto um colega que estava de serviço na clínica e que de prevenção para as urgências, saiu a correr. Pouco depois, disseram a Ana Paula Machado que o tiroteio era numa escola. “Meu Deus, isso é horrível… O meu filho está na escola secundária”, respondeu-lhes. Nesse momento, esforçou-se para se concentrar no trabalho que tinha a fazer, para poder sair dali o mais rápido possível. Até que voltaram a chamá-la pouco minutos depois. “Não é na escola do seu filho, é na escola primária de Sandy Hook”, ouviu. “Numa escola primária? Isso é ridículo!”

Cada um levou o seu tempo a perceber o que estava a acontecer. Para Donna Culbert, as nuvens começaram a formar-se quando agentes do FBI a informaran que o trabalho dela já não era preciso. “A partir daqui, é connosco”, disseram-lhe, o que a levou a perceber imediatamente que a dimensão do problema não rimava com a pacatez de Newtown. Po Murray trocava mensagens com quatro dos seus cinco filhos, que estavam naquele momento debaixo das suas secretárias em cada uma das suas escolas, enquanto sentia que os ponteiros do relógio avançavam mais devagar do que nunca. Walter Carlson, em frente à televisão da sala, levou as mãos à cabeça à medida que os números de mortes começavam a ser conhecidos. Na sala das emergências, Bill Begg recebeu três crianças e um adulto feridos no tiroteio. As crianças, que tinham sido atingidas com três a onze balas do tipo militar — entram no corpo e lá dentro explodem — em zonas vitais do corpo, já estavam mortas. Enquanto isso, Ana Paula Machado ficou a saber que o seu colega que tinha ido a correr para as urgências foi mandado para trás. “Já não precisam dele nas urgências. As crianças já estão todas mortas”, disseram à pediatra numa chamada. Quando ouviu a frase, Ana Paula caiu para o chão e, com o telefone na mão, começou a gritar em desespero: “Como é que uma coisa destas é possível?!”.

“Já não precisam dele nas urgências. As crianças já estão todas mortas”

14 de dezembro de 2012 é um dia que todos em Newtown recordam ao pormenor mas do qual poucos estão dispostos a falar. Desde essa altura, esta cidade de 28 mil mil habitantes passou a ser um nome conhecido em todo o país e até no mundo, tornando-se sinónimo de uma das maiores tragédias da violência com armas nos EUA, onde aproximadamente 33 mil pessoas morrem alvejadas todos os anos — sendo que 21 mil são suicídios.

Como médico especializado em urgências, Bill Begg habituou-se a ver o sangue pessoas atingidas a tiro a manchar o chão dos hospitais onde trabalhou. “Na altura do tiroteio de Sandy Hook eu já tinha 25 anos de experiência a trabalhar nas urgências. Trabalhei em Nova Iorque, trabalhei em Baltimore, trabalhei aqui ao lado em Danbury e sempre recebi gente a esvair-se em sangue, muitos deles já vinham a morrer”, conta ao Observador, sentado à mesa da sua cozinha, em Newtown. “E a verdade é que eu nunca me senti mal com o que via. Registava aquilo, fazia o meu trabalho, mas depois continuava a minha vida.” Foi preciso ver três crianças perfuradas por munições militares para ter tido uma visão: “Disse para mim mesmo que isto era um problema verdadeiro e que tinha ser abordado de forma preventiva. Em vez de estar direcionado para ser reativo, tinha de passar a ser pró-ativo”.

Serão as armas um problema de saúde pública?

Bill Begg tornou-se numa das caras mais conhecidas daquela que passou a ser uma causa de Newtown: a aprovação de leis que condicionassem o uso de armas militares e que obrigassem todos os estados norte-americanos a fazer background checks a todos os compradores de armas, sem exceção nem vazios legais. Dois meses depois da tragédia, em fevereiro de 2013, foi convidado pela senadora democrata da California Dianne Feinstein para dar o seu testemunho do dia 14 de dezembro de 2012. Antes da sessão, perguntou em privado à senadora californiana: “Porquê agora?”. Dianne Feinstein respondeu-lhe: “Porque eu estava à espera que acontecesse um desastre desta dimensão. Antes de Sandy Hook, ninguém queria falar sobre isto”.

Desde essa altura, Bill Begg procura convencer o resto do país que a violência com armas é, acima de tudo, um problema de saúde pública. “Nós temos de meter nas nossas cabeças que isto é um problema que tem de ser tratado como em tempos foi o tabaco, as drogas, a condução sob o efeito de álcool ou a SIDA”, explica ao Observador. “Tudo estas realidades mataram milhares e milhares de pessoas e nós tomámos decisões quanto a eles como um país, por isso não vejo razão pra não aplicarmos isso também às armas.”

Apesar da dimensão da tragédia e da discussão que ela conseguiu formar a nível nacional e político, nenhuma lei federal relativa ao porte e comercialização de armas foi alterada. As alterações foram bloqueadas no Congresso por uma maioria de representantes republicanos, muitos deles apoiados pela National Rifle Association (NRA), a maior associação do lóbi pró-armas nos EUA. “A única coisa que pode parar um tipo mau com um arma é um tipo bom com uma arma”, a frase que o presidente da NRA proferiu num discurso que aconteceu após seis dias de silêncio perante a tragédia de Sandy Hook, tornou-se num chavão recorrentemente usado por aqueles que defendem aquilo que dizem ser os direitos dos portadores de armas.

Outra parte vital do argumentário pró-armas é a Segunda Emenda da Constituição dos EUA, redigida em 1791. Naquele artigo, então criado para assegurar a sobrevivência das milícias armadas depois de os EUA terem criado um exército, está consagrado o “direito a erguer armas” contra “um Governo tirano”. Desde então, a interpretação daquela frase de 27 palavras tem variado. Em 2008, o Supremo Tribunal decidiu que o direito às armas também abrangia quem quisesse comprar pistolas para defesa pessoal e terminou com a obrigatoriedade de guardar as armas em cofres enquanto não estivessem a ser usadas.

"Uma milícia corretamente regulada, que seja necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de ter e erguer armas, não serão restringidos."
Segunda Emenda da Constituição dos EUA

Pouco tempo depois do tiroteio, Po Murray fundou a Newtown Action Alliance, uma organização cujo objetivo é conseguir a aprovação de leis para um maior controlo das armas. Com frequência, encheu autocarros com pessoas de Newtown e de outras comunidades afetadas por tiroteios para irem todos a Washington D.C. em protesto. Nalguns casos, foram recebidos por congressistas dos dois partidos. “Foi angustiante estar ali, porque nós estávamos basicamente a implorar enquanto eles nem sequer conseguiam passar leis para universalizar os background checks”, queixa-se, numa conversa com o Observador.

Nestas eleições, Hillary Clinton e Donald Trump representam duas visões opostas. No seu programa, Hillary Clinton defende uma expansão dos background checks, promete oposição ao lóbi das armas e fala a favor de leis que “afastem as armas das mãos de abusadores domésticos, outros criminosos violentos e dos doentes mentais”. Já Donald Trump tem agora no seu programa quer “fortalecer os portadores de armas que respeitam as leis para se poderem defender”, referindo que “as autoridades fazem um trabalho tremendo, mas não podem estar em toda o lado a toda a hora”. Além disso, acusa Hillary Clinton de querer nomear “juízes radicais para o Supremo Tribunal que vão na prática abolir a Segunda Emenda”.

Donald Trump acusa Hillary Clinton de querer abolir a Segunda Emenda da Constituição

Richard Ellis/Getty Images

Desde que a campanha eleitoral arrancou, Bill Begg já esteve com os dois candidatos. Primeiro, com Hillary Clinton, que quis falar com ele sobre o tema das armas. “Eu vi que ela está genuinamente empenhada em diminuir o número de mortes com armas no nosso país”, diz, acrescentando que à medida que ele falava do que se passou em Sandy Hook “os olhos dela estavam completamente marejados”. Noutra ocasião, num evento privado, foi apresentado a Donald Trump. Porém, não falou sobre o tema das armas. “Não quero envergonhar ninguém ao começar uma discussão em público que eles não querem ter”, atalha.

Para Po Murray, estas eleições podem ser essenciais para atingir pelo menos alguns dos objetivos da Newtown Action Alliance, que declarou publicamente o seu apoio a Hillary Clinton. Mas mesmo que a candidata democrata venha a vencer as eleições, as alterações legais idealizadas por Po Murray só serão possíveis se o Congresso, que também vai a votos a 8 de novembro, mudar. “Esse é o nosso principal objetivo”, sublinha. “Basta mudar cinco congressistas para começarmos a conseguir algumas mudanças.” Uma dessas mudanças é ambiciosa e estrutural: fazer crer aos congressistas de que a NRA pode já não ser um apoio indispensável: “A NRA está a gastar muito dinheiro com legisladores que muito provavelmente não vão ser eleitos. E quando alguns congressistas começarem a perceber que a NRA já não tem um controlo tão forte no capitólio, eles não vão querer fazer parte daqueles que ignoram o assunto”.

Hillary Clinton quer universalizar os background checks para quem quiser comprar armas

ERIK S. LESSER/EPA

Atualmente, segundo a Gallup, 55% dos americanos apoia a adoção de uma legislação mais apertada em relação ao porte e comercialização da armas. É a estatísticas como estas que Bill Begg vai buscar ânimo para lidar com a frustração de ainda não ter havido alterações de leis a nível federal. “Tal como o uso do tabaco ou a SIDA, este assunto vai precisar de várias gerações para chegar onde deve estar”, diz. “Nós sabemos que estamos no lado certo da História.”

O luto que nunca vai acabar

Da mesma forma que ninguém esquece aquele dia, muitos ainda não conseguiram ultrapassá-lo. Imediatamente a seguir à tragédia, a cidade transformou-se para lá do reconhecível. Além da forte presença policial, Newtown foi inundada por jornalistas de todo o país. Não era incomum olhar para os ares e ver que um helicóptero de uma qualquer cadeia televisiva sobrevoava de perto a escola de Sandy Hook ou o número 36 da Yogananda Street, onde o atirador, Adam Lanza, vivia com a sua mãe, que matou a tiro antes de causar o massacre na escola primária. Ao mesmo tempo, a cidade de Newtown recebeu cartas, donativos e várias prendas de todo o mundo. A certa altura, foi preciso alugar um armazém para guardar os cerca de 65 mil peluches — mais do que o dobro da população de Newtown — enviados em homenagem às vítimas.

Os primeiros a sofrer as consequências mais diretas do tiroteio foram as crianças, os seus pais, os professores e os funcionários de Sandy Hook. Algumas das famílias diretamente afetadas saíram de Newtown para tentar recomeçar as suas vidas noutras partes do país. Alguns professores desistiram da profissão. Porém, tudo isto se contagiou rapidamente a uma cidade que, quase quatro anos depois, ainda carrega aquele trauma como uma cruz. “De repente, a pergunta ‘onde é que mora?’ tornou-se a questão mais odiada de todas as pessoas de cá sempre que saem de Newtown”, lamenta Ana Paula Machado. “Às vezes, apetece-me inventar qualquer coisa só para não ter de ouvir: ‘Newtown? Aquela Newtown?’.”

“O trauma ainda está numa fase inicial e isto é algo com que as pessoas de Newtown vão ter de lidar para sempre”, diz ao Observador Jennifer Crane, diretora do Centro de Apoio e Bem-estar de Newtown. “O processo de recuperação não é uma questão de anos, mas sim algo que vai precisar de várias gerações.”

“De repente, a pergunta ‘onde é que mora?’ tornou-se a pergunta mais odiada de todas as pessoas de cá sempre que saem de Newtown. Às vezes, apetece-me inventar qualquer coisa só para não ter de ouvir: ‘Newtown? Aquela Newtown?’.”
Ana Paula Machado, pediatra de Newtown

Ao início, logo a seguir ao tiroteio, muitos tentaram normalizar a situação. No momento em que o atirador entrava pela escola de Sandy Hook, Ana Paula Machado tinha o seu filho mais novo na escola secundária, a apenas dois quilómetros do local do crime. Nas mensagens que trocavam, ele parecia calmo, quando na verdade tinha passado uma hora e meia debaixo da secretária sem saber se também estava em perigo. Enquanto isso, Ana Paula Machado trocava mensagens com o marido, que se ofereceu para sair do trabalho e ir buscar o filho.

Durante os primeiros meses a seguir à tragédia, Donna Culbert esteve mais ocupada do que nunca como responsável pela saúde pública de Newtown. “Tivemos de ir ter com as pessoas para as ajudarmos, porque muitas ficaram totalmente paralisadas por causa do tiroteio”, recorda. Durante esse tempo, mal tinha tempo para pensar verdadeiramente no que tinha acontecido e no que estava à sua volta. As únicas exceções eram o caminho de ida e volta para o trabalho, uma viagem de 45 minutos para cada lado. “Durante muito tempo chorei a viagem inteira”, recorda. Ainda hoje faz as mesmas perguntas de então: “Eram mulheres e crianças, completamente desprotegidas… Eu nunca pensei que uma escola primária fosse um sítio onde aquilo pudesse acontecer”. Só dois anos depois é que Donna procurou ajuda de um terapeuta. Quando se sentou no divã, disse-lhe: “Eu nem sei bem porque é que estou aqui”. A profissional respondeu-lhe: “Se calhar você precisa de finalmente falar com alguém de quem não está a tomar conta”.

“Como é que é possível Newtown ter criado um monstro destes?”
Ana Paula Machado, pediatra de Newtown

No meio disto tudo, era impossível não pensar no atirador, Adam Lanza, e na sua história. “Eu demorei muito tempo para conseguir ultrapassar a raiva que tinha à mãe dele”, recorda Donna Culbert. “Há sempre um nível de empatia com qualquer mãe”, admite Ana Paula Machado. “Mas depois acho que nunca poderia ter ignorado as coisas que ela estava a ignorar”, diz.

Nancy Lanza, a mãe do atirador que o criou sem a ajuda do pai, tinha um gosto assumido por armas e usava-as como maneira de se aproximar do filho, que tinha problemas mentais e sociais. Muitas vezes, iam para um campo de tiro juntos. Em abril de 2012, meses antes do massacre, a mãe ter-lhe-á oferecido como prenda de aniversário a arma dos crimes.

“Como é que é possível Newtown ter criado um monstro destes?”, interroga Ana Paula Machado. “Isto vai contra tudo, é anti-tudo aquilo que nós somos.”

Durante dois anos, Po Murray recusava passar de carro na rua onde vivia a família Lanza. “Era demasiado doloroso para mim”, recorda, desenhando na mesa um mapa daquele caminho. “Não é só por ele, porque ao ir por aqueles lados eu teria de passar pela casa onde viviam três das crianças que morreram”, explica. “Juntar tudo isto é muito doloroso e não dá para esquecer. Ainda no caminho para este café, contei três casas de outras três crianças que morreram.”

Neil Heslin, que perdeu um filho no tiroteio de Sandy Hook, no senado. À direita, está o médico William Begg, diretor do serviço de urgência mais próximo de Newtown

Getty Images

No final de 2014, o banco que detinha a hipoteca da casa do atirador cedeu-a a custo zero à cidade de Newtown. Em março de 2015, foi demolida. Também a escola de Sandy Hook foi demolida em janeiro de 2014. Este ano letivo, que começou em agosto, foi reaberta uma nova escola no mesmo local. Do passado, ficaram apenas três coisas: um mastro com a bandeira dos EUA, uns vestígios com pegadas de dinossauros e alguns tijolos, que foram feitos com as cinzas da dezenas de milhares de peluches e brinquedos que foram enviados para Newtown depois do tiroteio.

“Deixem-nos em paz, seus idiotas!”

Desde o dia do tiroteio, Newtown passou a ser um dos centros mais fortes do combate às atuais leis de uso e comercialização de armas nos EUA. Do outro lado, o lóbi das armas tentou — e para já conseguiu — sobreviver a esta prova. Muitas das ações foram feitas à distância, a maior parte em Washington D.C.. Ainda assim, houve iniciativas de cidadão armados em Newtown que ninguém esquece. Uma delas foi em agosto de 2013, quando várias pessoas armadas com pistolas combinaram um “Dia de Apreciação do Starbucks”, uma vez que aquela cadeia, ao contrário de outras, não proibia então o uso de armas dentro das suas instalações. Um mês mais tarde, o CEO do Starbucks emitiu um comunicado onde fazia um “pedido” para ninguém levar armas para nenhuma loja daquela marca. “A presença de armas nas nossas lojas está a desestabilizar e a perturbar muitos dos nosso clientes”, escreveu Howard Schultz.

“Deixem-nos em paz, afastem-se de nós, seus idiotas!” Era assim que Ana Paula Machado reagia a iniciativas como esta, que a levaram a transformar-se numa “ursa mãe que quer proteger os seus filhos”. “Foi como se tivessem posto sal numa ferida”, diz em relação à NRA e aos seus apoiantes. Ironicamente, é precisamente em Newtown que está sediada a segunda maior organização pró-armas dos EUA, a National Shooting Sports Foundation (NSSF). Apesar de optar por uma postura mais discreta do que a NRA, a NSSF tem tido um papel considerável nos bastidores da manutenção do atual regime para as armas nos EUA. Em 2015, a NSSF chegou a ultrapassar a NRA com despesas em lóbi, com um total de 2,9 milhões de dólares investidos.

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Po Murray, diretor da Newtown Action Alliance, numa manifestação em frente à sede da organização pró-armas NSSF, em Newtown

Ao contrário da NRA, que declarou o seu apoio à candidatura de Donald Trump, a NSSF preferiu não tomar uma posição pública. Mas essa é mesmo a única coisa que falta fazer nesse sentido. A dias das eleições, a NSSF diz no seu site que “para os portadores de armas, estas são as eleições mais importantes de sempre”. Além disso, aquela associação tem feito vários vídeos onde critica Hillary Clinton, usando clips onde a candidata democrata diz discordar da decisão de 2008 do Supremo Tribunal que levou à proliferação de armas de defesa pessoal. O Observador contactou a NSSF e fez um pedido de entrevista, que foi negado.

Ana Paula Machado não compreende a necessidade de se ter armas do tipo militar. “Esta cidade sempre teve caçadores, tudo bem. Mas eu não me importo de que matem veados, porque eles têm muitas carraças e espalham doenças. Estão à vontade”, diz. “Mas ninguém precisa de ter consigo a toda a hora uma arma que é para matar outras pessoas. É errado e há acidentes. Isto não é um jogo.”

Do outro lado da rua de Ana Paula Machado, vive Walter Carlson. Aos 78 anos, este reformado que trabalhou como segurança e construtor de chaminés, está muito longe de ser tímido em relação às suas opiniões políticas. No quintal, bem visível para toda a vizinhança, tem uma placa de madeira onde pintou a letras garrafais: “TRUMP”. “A minha mulher implorou-me para não meter lá nada, disse que nos iam atirar pedras à casa, mas eu disse-lhe que ‘nem pensar, estamos num país livre’”, recorda ao Observador. Só quando chegou a altura de fazer um cartaz a dizer “Fechem-na à chave!”, a pedir a prisão de Hillary Clinton, é que deu ouvidos à mulher.

Walter Carlson tem 15 armas. “Sempre fui um caçador, sempre tive armas, foi assim que eu fui criado”, resume. Hoje em dia, ri às gargalhadas quando recorda que no 8º ano chegou a levar uma caçadeira sem munições para a escola. “Levei-a no autocarro, cheguei à escola e tinha os miúdos todos à minha volta a pedirem para ver como é que era, queriam que eu lhes explicasse como é que arma funcionava.” Agora cada uma das suas armas está guardada num cofre com mais de um metro e meio de altura que está aparafusado ao chão da sua garagem e escondido atrás de cinco placas de madeira. “Tenho de fazer isto por causa dos meus netos”, diz. “No meu tempo, os nossos pais ensinavam-nos a usar uma arma. Hoje em dia, eles aprendem tudo sozinhos com os filmes e com os jogos de computador. Portanto, para evitar chatices, comprei um cofre.

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Wallter Carlson vive em Newtown e tem 15 armas, que guarda num cofre

Sentado ao volante de um tractor que usa para recolher as folhas e os galhos que se acumulam no seu relvado, Walter Carlson diz que a culpa daquilo que se passou em Newtown não é das armas. “A culpa é sempre da pessoa que está atrás da arma”, diz. Para explicar a sua posição, parte para outro contexto. “Se alguém estiver a andar num carro e de repente é abalroado por outro tipo que estava a conduzir sob o efeito do álcool, de quem é que é a culpa? Vamos banir os carros ou vamos banir o gajo que decidiu pegar no carro depois de tomar não sei quantas bebidas?”

“As armas não são más”, vai repetindo com regularidade. “Este país foi erguido pela força das armas”, explica. Por isso, apertar as leis das armas, desde o processo para obter uma licença, à sua comercialização e ao uso que lhe é permitido, é algo que para Walter Carlson não faz sentido nem é justo. “Porque é que nós não devemos andar com armas e o Obama e a Clinton e essa gente toda pode andar com seguranças armados que nós andamos a pagar com os nossos impostos?”, questiona. E coloca ainda outra pergunta retórica: “Se nós não pudermos comprar armas legalmente, como é que nos vamos proteger daqueles que as arranjam de forma ilegal?”.

“Porque é que nós não devemos andar com armas e o Obama e a Clinton e essa gente toda pode andar com seguranças armados que nós andamos a pagar com os nossos impostos? Se nós não pudermos comprar armas legalmente, como é que nos vamos proteger daqueles que as arranjam de forma ilegal?”
Walter Carlson, reformado de Newtown

No dia do tiroteio de Newtown, Walter Carlson não foi a exceção à regra naquela pequena cidade do Connecticut. Também ele, com as mãos na cabeça, olhava para a televisão em choque à medida que mais pormenores iam sendo conhecidos. Também ele teve receio de que o atirador avançasse para a escola secundária e pusesse em risco a vida dos seus netos.

Mas, para este reformado de 78 anos, isso já faz parte do passado. E aconselha que a cidade faça o mesmo: “Já está na hora de Newtown esquecer isto”.

“Mamã, ela vai achar que eu me esqueci dela”

Não é fácil, muito menos em datas como o Halloween, em que milhares de crianças enchem as ruas de Newtown, desde a muito concorrida Main Street até à rua onde Walter Carlson e Ana Paula Machado vivem. Já no fim da noite, depois de crianças vestidas de todas as formas e feitios terem levado doces e pequenos brinquedos antes de seguirem caminho, a pediatra luso-americana reconhece as caras que estão do lado de lá da porta. É uma das enfermeiras que trabalha com ela no hospital de Danbury, e traz a sua família — dois rapazes no início da adolescência e uma rapariga de 10 anos.

Enquanto são distribuídos os doces, a filha mais nova da enfermeira não diz nada, evita a conversa que os adultos vão fazendo e concentra-se em dar festas ao cão de Ana Paula Machado. A rapariga está de joelhos em frente ao cão, que abre a boca satisfeito enquanto ela lhe coça a parte de trás das orelhas. “Lindo menino”, diz-lhe.

Pouco depois, são feitas as despedidas. Só quando as visitas se foram embora é que Ana Paula Machado conta que a filha da sua colega perdeu a melhor amiga no tiroteio de Sandy Hook e que ela teria feito 10 anos no dia anterior, caso ainda fosse viva. Para assinalar a data, a enfermeira e a filha criaram um ritual sempre que chega esse dia: a filha escreve uma carta para a amiga que morreu, coloca-a dentro de um balão e depois larga-o a partir do seu quintal para a amiga poder ler as suas palavras no céu. Este ano voltaram a fazê-lo mas, depois de terem soltado o balão, este ficou preso numa das árvores do quintal da família. A menina começou a chorar. “Mamã, ela assim não vai ler nada, vai achar que eu me esqueci dela.”

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