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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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Nicolas, palestiniano, cristão e a viver na Cisjordânia, voltou a Lisboa para vender artesanato. Este pode ser o último Natal em que o faz

É a quinta viagem de Nicolas até à capital portuguesa para vender peças de artesanato de famílias cristãs palestinianas, desta vez num ano marcado pelo regresso da guerra.

O vai e vem é, por estes dias, constante em frente à Basílica dos Mártires, em Lisboa. Muitos passam por ali a caminho das lojas ao longo da agitada Rua Garrett nas últimas compras antes do Natal. Para quem quer fugir à confusão, esgueirar-se pela lateral da Igreja, através da mais estreita Rua Anchieta, pode ser uma opção tentadora, mas nem assim se escapa ao espírito natalício. Logo à entrada, estendem-se bancas de vendas com livros, discos, CD`s. E, mais à frente, no número 10, uma estrela marca o caminho para Belém.

“Artigos da Terra Santa”, pode ler-se num cartaz laranja, à frente do qual estão dispostos sobre uma mesa artigos feitos em madeira de oliveira vindos da cidade cisjordana onde, segundo a tradição cristã, nasceu Jesus. São apenas uma amostra das peças trazidas para Lisboa ao longo dos últimos anos pelo palestiniano Nicolas Ghobar e que cobrem o interior da sala nas traseiras da basílica.

Chegado a Lisboa no início de novembro, é aqui que Nicolas passa a maior parte dos seus dias. O espaço é, há vários anos, convertido por esta altura numa loja improvisada onde vende as peças trabalhadas por famílias cristãs de Belém. Este ano não foi exceção, ainda que continue a custar-lhe acreditar que, no contexto atual, conseguiu realmente regressar a Lisboa. A incerteza marcou grande parte de uma travessia dificultada pela guerra entre Israel e o Hamas, que já se prolonga há quase três meses. “Na verdade, não imaginava que conseguisse sair. Havia barreiras de Israel no caminho. Ainda não posso acreditar no que está a acontecer. A minha mente, o meu coração ainda lá está”, reconhece ao Observador, enquanto vai girando numa mão uma das pequenas figuras de madeira trabalhada.

A viagem durou três dias. Implicou passar vários controlos de fronteira até chegar ao aeroporto da Jordânia e, de lá, seguir num voo para Lisboa. Para trás ficaram os pais e irmãos e uma comunidade expectante pelo sucesso das vendas de natal, cujo lucro é dividido no seu regresso entre os artesãos que contribuíram com as suas figuras. “Não foi fácil, mas foi bom vir porque, pelo menos, tenho a oportunidade de trabalhar, já que lá não tenho essa hipótese”, explica o também guia turístico, que viu canceladas todas as marcações de peregrinos com o início do conflito no Médio Oriente.

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“Para aqueles que têm aluguer, filhos, que têm de pôr comida na mesa, não é suficiente”

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O movimento está fraco esta quinta-feira. O trabalho de Nicolas começou, como habitualmente, por volta das 9h. Pela tarde, em que se senta para falar com o Observador, apenas entram na loja três clientes e uma delas apenas para espreitar. Apesar disso, não tem um minuto a perder e pede que seja breve. Ainda tem o inventário para fazer e ninguém para o ajudar, e já prevê que a tarefa se arraste durante o resto do dia.

É assim desde 2017, ano em que veio pela primeira vez a Portugal, desafiado por alguns padres que conheceu em Belém enquanto guia turístico. “E porque não?”, foi o pensamento na altura. Já falava a língua, habituado a acompanhar há mais de uma década grupos de portugueses e brasileiros, e somava vários contactos na região, de padres e peregrinos a quem deu a conhecer os lugares santos da cidade.

Na primeira vez, ficou à volta de 20 dias na capital, trazendo alguns terços e cruzes feitos pelos artesãos cristãos de Belém, mas sem grandes resultados. A estreia serviu, no entanto, para afinar aos gostos dos lisboetas as peças a trazer nas viagens seguintes. “Disseram-me: ‘Tens de trazer alguns Santo António e Sagrada Famílias.’ Pouco a pouco, já sabemos aquilo de que gostam os portugueses”, recorda sobre os primeiros anos.

No início Nicolas chegou a trazer peças de mais de 20 famílias cristãs para Lisboa
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Este ano trouxe apenas de 11, tendo muitas deixado de se dedicar ao artesanato e outros emigrado
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Ano após ano continua a representar uma classe que, pouco a pouco, vai desaparecendo
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As vendas são uma ajuda, mas não chegam face às dificuldades crescentes
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Chegou a vir acompanhado pelo pai e irmão, mas nos últimos tempos é sozinho que faz caminho até Lisboa. Um já não tem idade para o acompanhar e o outro tem o trabalho em que pensar. Ano após ano, continua a representar uma classe que, pouco a pouco, vai desaparecendo numa cidade que vive do turismo — recebe normalmente até cerca de 1,5 milhões de turistas todos os anos, segundo o Ministério do Turismo e Cultura palestiniano. “Está a perder-se porque a maioria dos peregrinos são passageiros. Vêm umas horas, visitam e vão se embora. Não dormem, não compram, não almoçam. As igrejas são de graça, não se paga para entrar. E isso faz com que os cristãos vão à procura de outra vida, segurança, melhor futuro para os seus filhos“, explica.

"A maioria dos trabalhos que aqui estão são quase do começo, peças que vão ficando porque as famílias deixaram de as fazer, algumas emigraram. Não é suficiente fazer isto e esperar que eu venha a vender."

Neste momento, os cristãos palestinianos representam cerca de 2% da população palestiniana total na Cisjordânia, concentrada principalmente em torno de Ramallah, Jerusalém e Belém. Nesta última são quase 300 as famílias, estima Nicolas, que continuam a viver do artesanato. O próprio sabe e trabalhou algumas das peças mais simples que por cá tem vendido, uma prática que aprendeu com os vizinhos nos dias em que não tinha grupos de peregrinos para acompanhar, ainda que peças mais complexas como a Sagrada Família, que pode chegar a demorar vários dias a trabalhar, excedam as suas capacidades.

“São coisas simples que aprendi. Há peças, acabamentos, rostos, coisas difíceis que não consigo fazer. E a maioria dos trabalhos que está a ver são quase do começo, peças que vão ficando porque são famílias também já deixaram de as fazer e algumas emigraram”, revela, acrescentando que os ganhos não chegam para o sustento dos artesãos. “Eles estão com esperança de que possa vender tudo, mas vender os produtos deles não significa que os vá manter na terra, não é suficiente. Essa venda é uma forma de lhes dar esperança, de lhes dar trabalho. Porque para aqueles que têm [de pagar] aluguer, que têm filhos, de pôr comida na mesa, não é suficiente.

Isso reflete-se no número de famílias que continuam a contribuir anualmente para o artesanato que traz para Lisboa. Se no início chegou a ter peças de mais de 20 famílias, atualmente traz de 11. Ainda que a sua rede de contactos pelas paróquias de Lisboa se tenha estendido e que o seu rosto se tenha tornado bastante conhecido pelo Chiado e Baixa, como o próprio reconheceu, acenando durante a entrevista a duas jovens conhecidas que entraram na loja, as vendas não chegam para fazer face às dificuldades que se vive em Belém, especialmente num ano marcado pelo regresso da guerra.

“Disse-lhe: ‘Acho que bateste com o autocarro. Ele respondeu que não. ‘São bombas a cair’”

O dia 7 de outubro começou como qualquer outro, mas mudou radicalmente numa questão de horas. Nicolas saiu cedo para ir buscar a um hotel em Belém um grupo de peregrinos que o esperava para visitar os lugares santos para os cristãos. Partiram de autocarro, mas não chegaram ao destino. “Ouvi um barulho e disse ao motorista: ‘Acho que bateste com o autocarro’. Ele respondeu que não. ‘São bombas a cair’“, recorda quase três meses depois do dia que levou o primeiro-ministro Benjamin Nethanyahu a afirmar numa declaração ao país que “Israel estava em guerra”, com o exército israelita a lançar em resposta aos ataques do Hamas uma vaga de bombardeamentos na Faixa de Gaza.

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A resposta do motorista era clara, mas as palavras demoraram a fazer sentido para o guia turístico. Todos estavam em choque, os peregrinos gritavam e, no meio da confusão, o autocarro dava meia volta de regresso ao hotel. À chegada, o ambiente era semelhante, pessoas a correr por todo o lado, turistas em telefonemas ansiosos para embaixadas e consulados, descreve Nicolas. Quase de imediato, começavam a manifestar-se as consequências a longo prazo do início do conflito: sucessivos emails e mensagens de WhatsApp a cancelar todas as marcações que tinha para os meses seguintes, no que se estava a afigurar como um “bom ano” depois do impacto tremendo da pandemia de Covid-19 no turismo da região.

“Tínhamos muitas reservas, estávamos em começo de recuperação depois do Covid, uma nova saída, uma nova esperança de que a vida tinha voltado. Outubro, novembro, dezembro cheio de peregrinos, reservas e tudo foi cancelado. Esse dia mudou por completo tudo: a vida, o pensamento, a economia“, reconhece. Os números falam por si. No primeiro mês de guerra, o Produto Interno Bruto encolheu 4% na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, empurrando mais de 400 mil pessoas para a pobreza — um impacto económico nunca visto em conflitos como os da Síria ou da Ucrânia ou em qualquer guerra anterior entre Israel e o Hamas, segundo revelou a ONU. Dados mais recentes, divulgados esta semana num relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), apontam para uma redução de cerca de um terço no emprego na Cisjordânia (32%) e de dois terços em Gaza (66%).

Era um bom ano, tínhamos muitas reservas, estávamos em começo de recuperação depois do Covid (...). Tinha setembro, outubro, novembro, dezembro cheio de peregrinos, reservas e tudo foi cancelado."

Nicolas é apenas um dos que compõem essa estatística, que tornou mais urgente a vinda a Lisboa este ano, posta em marcha com maior pressa para garantir que não era impedido de sair da região nesta que já é a quinta viagem para vender artesanato. Na chegada, o contraste era óbvio. As ruas agitadas e iluminadas de Lisboa, muito diferente do cenário que deixou em Belém, com ruas vazias e despidas de luzes e decorações, incluindo a tradicional árvore de Natal montada na praça da Manjedoura. A medida anunciada pelas autoridades locais em respeito pelos palestinianos que continuam a morrer na Faixa de Gaza.

A capital do Natal ficou sem vida (…). Não é justo celebrar, ter luzes, ter todo aquele ambiente bonito quando há tantos mortos“, diz. Nicolas acredito, no entanto, que a situação atual é apenas passageira: “Belém ficou sem a árvore na praça da Manjedoura, sem o presépio, sem as luzes, mas no próximo ano vamos ter árvore, vamos ter luzes. Mas dói saber que aquela cidade, que vivia dos peregrinos que vinham visitar as igrejas, ficou deste jeito, sem vida.”

“Aguentamos, mas já chegou a um ponto que temos de partir, procurar um novo horizonte”

Nicolas não tem grandes expectativas sobre quando as coisas vão regressar completamente à normalidade em Belém. Partiu com preocupações, dúvidas e, quando regressar, será tempo de planear a longo prazo. “Estou a tentar fazer o melhor para os artesãos, mas ao mesmo tempo já não sei em que pensar com tantas coisas. Não sei o que vou fazer com a minha vida, com o meu trabalho de guia. Fiquei sem trabalho. Todos estão a tentar desenrascar-se, a procurar uma saída”, lamenta.

Numa terra já “habituada” a lidar com as dificuldades, o conflito mais recente parece-lhe diferente. Vai mudar, e muito, a Terra Santa, acredita Nicolas, acrescentando que esta será, para muitos, a gota de água. “A situação é mais complicada. Durante o Covid não recebemos ajudas, não nos perdoaram, era preciso pagar a luz, a água, todas as faturas. Depois, começou a vida, começaram a vir os peregrinos, as pessoas começaram a pedir empréstimos dos bancos para recomeçar e, agora, com a guerra, ficaram sem as ferramentas para os pagar, sem esperança, endividados”, aponta. Alguns, sem expectativa de melhorias, “já com papéis, outros a preparar” a partida.

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Mesmo os mais otimistas sobre o que o futuro reserva, acrescenta, não se podem dar ao luxo de poder esperar até que a situação melhore: “Até recuperar a situação, até que haja paz, poderá ser talvez um ano, dois anos. E muitos não conseguem aguentar. Aguentámos dois anos bem difíceis e agora não está fácil para um cristão à espera de que voltem os peregrinos para começar de novo e fazer artesanato.”

Partir é uma hipótese que, até há pouco tempo, não lhe passava pela cabeça. Mesmo depois de vários anos a viajar até Lisboa, sentia uma certa responsabilidade de regressar a casa. “Podia ter pensado em ficar depois da primeira vez em Portugal, mas voltei para transmitir durante o meu trabalho como guia a fé e a importância dos peregrinos na Terra Santa, que eles saibam que ainda há cristãos na terra de Jesus”, afirma. Agora já não tem tantas certezas. “Estamos habituados aos problemas, aos conflitos. Só que agora a coisa mudou muito, a situação está bem difícil e a complicar-se e estou a pensar ficar em Portugal.”

Não é uma decisão fácil, admite. Na visita à Terra Santa, em 2014, o Papa Francisco pedia aos cristãos que mantivessem viva a Igreja, mas as dificuldades somam-se. “Quase dois mil anos de conflitos, perseguições, guerra. Sentimo-nos sozinhos, então ficamos a aguentar, a aguentar, mas já chegou a um ponto em que temos de partir, procurar um novo horizonte. Enquanto cristãos, e sendo uma minoria, estamos a proteger, cuidar, manter viva a Igreja para aqueles peregrinos que vêm visitar a Igreja, mas se não temos o seu apoio, a sua presença é difícil”, sublinha. Para já, não passa de uma hipótese e prefere, por isso, focar-se nos dias que ainda tem pela frente por cá: terminar as vendas e, a seguir ao Natal, começar a arrumar. Para o ano, quem sabe, talvez esteja de volta à Basílica dos Mártires.

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