Esther Duflo, a francesa que esta segunda-feira se tornou a segunda mulher a receber o prémio Nobel da Economia (e a mais jovem galardoada de sempre, mulher ou homem) diz que não é “uma pessoa muito social”. Não é o tipo de pessoa que se sente confortável a socializar com desconhecidos, com um cocktail na mão. “Não gosto de falar com pessoas que não conheço”, afirmou, num perfil que a revista The New Yorker escreveu sobre ela há quase 10 anos, já na altura retratando-a como uma futura candidata ao Prémio Nobel pela sua pesquisa experimental sobre formas práticas de diminuir a pobreza.
A dada altura, porém, a francesa viu-se rodeada de pessoas que não conhecia. E não eram pessoas quaisquer: à sua volta estavam Bill Gates, fundador da Microsoft e filantropo, e Jeff Bezos, fundador da “gigante” Amazon. E estava lá, também, “o tipo do Facebook” — Mark Zuckerberg, pois, claro.
Esther Duflo tinha acabado de dar uma talk de cerca de 20 minutos para o TED, organização que se dedica a dar voz (e palco) a pessoas com “ideias que vale a pena difundir”. Mesmo com a postura corporal desajeitada q.b. e a entrega discursiva um pouco seca, a francesa terá conseguido pôr a audiência a refletir sobre uma questão muito simples (embora de resposta impossível de dar): será que os milhões de milhões em ajuda que são enviados para África, por exemplo, estão a fazer bem àquelas sociedades? Será que não estão a fazer diferença alguma? Ou será que estão a prejudicar?
A argumentação de Esther Duflo terá, pelo menos, seduzido Bill Gates, que mais tarde terá pressionado a faculdade a que a francesa está ligada, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), a disponibilizar na Internet o curso em que Duflo está envolvida, a par do marido, Abhijit Banerjee — o outro laureado pelo prémio Nobel, a par de Michael Kremer. Bill Gates terá, mesmo, dito pessoalmente a Esther Duflo: “Nós temos de apoiá-la”.
Um prémio “merecidíssimo”, diz Abel Mateus
A “abordagem experimental” proposta por Esther Duflo e seus companheiros não é mais do que tentar dar a quem tem responsabilidades públicas dados concretos para se poder tomar decisões mais acertadas. Porque, frequentemente, tudo se baseia em adivinhação e “achismos”: “achamos” que algo deve ser assim, que uma determinada ação vai produzir um dado resultado. Mas, designadamente nas medidas de combate à pobreza, falta o suporte científico para se poder dizer se algo é uma boa medida ou má, ou qual é a melhor forma de atacar um dado problema concreto.
“No fundo”, aponta Abel Mateus, o método de Duflo (e dos outros laureados) “baseia-se em fazer amostras com base em inquéritos e, com essas respostas, procurar encontrar as variáveis que influenciam determinadas decisões como, por exemplo, trabalhar ou não, investir ou poupar, ir ou não para a escola, etc”.
Um exemplo prático: sabendo-se que as redes mosquiteiras são uma forma simples de reduzir o contágio da malária, coloca-se a questão: deve-se dar dinheiro para que se distribua, gratuitamente, as redes mosquiteiras? Ou é melhor cobrar um pequeno valor simbólico, para que as pessoas deem mais valor às redes mosquiteiras e não decidam usá-las, por exemplo, como redes de pesca? Podemos achar que uma coisa ou outra são verdade, mas só um verdadeiro teste no terreno, com inquéritos, testes com grupos de controlo e amostragem aleatória é que será possível ter a resposta correta.
O economista Abel Mateus, que conhece bem o trabalho “inovador” do trio de economistas e considera o prémio “merecidíssimo”, explica que o método científico proposto pode ajudar a compreender e orientar no sentido correto as “decisões importantes que as pessoas e as famílias tomam nos países em vias de desenvolvimento e que influenciam muito a pobreza”.
Nas palavras da academia Nobel, o valor dos métodos propostos pelo trio de premiados está em evitar tratar os grandes problemas e, ao invés, procurar “dividir o problema da pobreza global em questões mais simples, mais geríveis” — por exemplo, quais são as intervenções comprovadamente mais eficazes para melhorar os resultados escolares das crianças que estão em países subdesenvolvidos e como é que se pode dar contributos importantes para melhorar a saúde dessas mesmas crianças, que todos os anos morrem aos milhares devido a doenças perfeitamente evitáveis e tratáveis.
O prémio Nobel reconheceu o contributo do trio para o florescimento da pesquisa sobre “economia do desenvolvimento” e, ao Observador, Abel Mateus recorda que, nos anos 80, quando trabalhou no Banco Mundial com fundos de pobreza, a prática mais aceite era proporcionar grandes pacotes de ajuda aos governos dos países em dificuldades, que depois — melhor ou pior — a fariam chegar às populações. O controlo — quando era feito — seria a posteriori.
“Aquilo que me surpreendeu nos trabalhos que [Duflo, Banerjee e Kremer] fizeram foi que apareceu um novo tipo de política que na altura não era considerada — que é a atribuição de dinheiro às pessoas para reduzir a pobreza diretamente, por exemplo dar dinheiro aos pais se eles levarem as crianças à escola em vez de estas estarem a trabalhar no campo”.
É algo que faz arrepiar muita gente, mas o que está aqui em causa é dar “contribuições, em cash, para procurar resolver problemas”. “Na altura pensava-se que isso custaria muito — dar cheques às pessoas para resolver os problemas —, mas dirigidos a um problema muito específico e a uma camada de pessoas muito específica não é assim tão caro e produz bons resultados”, afirma Abel Mateus, acrescentando que “estas políticas surgiram devido aos estudos que eles fizeram”: “Há uma relação direta. Essa, para mim, foi a maior contribuição que eles deram”.
Mais do que um estudo, uma “metodologia revolucionária”
Para onde vão os milhões que Bill Gates (e a fundação que tem com a mulher, Melinda) e outros filantropos enviam para África? E porque é que, apesar de todo esse dinheiro, o PIB per capita em vários desses países não descola?
Como Esther Duflo reconhece na sua TED Talk, é impossível saber como estaria África sem os milhões da ajuda internacional. Talvez sem isso África estivesse ainda pior. Mas quem pode garantir que não estaria melhor e que esses milhões não estão, na realidade, a cristalizar regimes corruptos e a fomentar a dependência económica?
Cátia Batista, professora e investigadora ligada à Nova SBE, explica que a “revolução” trazida pelo trio de economistas premiados é a “nova abordagem para o desenvolvimento económico, que é muito diferente da ajuda tradicional que era dada”. E que, como já vimos, se traduzia em “dar o dinheiro aos governantes e depois eles decidiam o que se fazia”.
“Eles lançaram esta abordagem que é a de medir, experimentar antes de investir dinheiro a sério nestas iniciativas”, explica Cátia Batista.
Em termos simples, é como sujeitar todas as políticas contra a pobreza a um ensaio clínico como aquele que é feito na medicina e na indústria farmacêutica. “É ir ter com as populações, ir ter com as empresas nos países mais pobres e perceber o que funciona e o que não funciona. Só depois de testar ideias e conceitos, só depois de testar as políticas com alguns milhares de famílias ou empresas é que se replica a iniciativa política em mais larga escala”, aponta a investigadora da Nova SBE.
Aliás, Cátia Batista trabalha no NovÁfrica, um centro que realiza, no continente africano, exatamente o mesmo tipo de estudos preconizados pelos investigadores agora distinguidos com o Nobel.
Por outro lado, Pedro Pita Barros, economista especializado na área da Saúde, destaca a forma como Duflo, Banerjee e Kremer “mudaram radicalmente a forma de olhar para os processos de análise económica aplicada ao desenvolvimento”. Como? “Introduzindo a a lógica do ‘vamos olhar para as pequenas intervenções, ou pelo menos para intervenções que não sejam feitas ao nível macroeconómico”.
“Para isso utilizam uma metodologia em que usam um grupo sujeito à intervenção e outro que não [o grupo de controlo]. É a comparação entre os dois grupos que vai explicar até que ponto a intervenção teve ou não sucesso e o que motivou esse sucesso. (…) Quase como se faz com um medicamento”, completou o economista.
As perguntas que motivavam os seus estudos, recorda Pedro Pita Barros, eram específicas a este ponto: “Em que condições o microcrédito para pequenas comunidades funciona de forma a gerar investimento por parte dessas populações e levar ao desenvolvimento?”. Neste caso, a análise de Duflo levou à conclusão de que o microcrédito nem sempre é a “panaceia” que muitas vezes se pensa.
Outra questão que Duflo, Banerjee e Kremer estudaram foi o absentismo dos professores na Índia, o que o motiva e como influencia as notas dos alunos. Duflo espalhou câmaras de videovigilância nas escolas para controlar as presenças e estabeleceu uma remuneração dos professores que aumentava exponencialmente consoante o grau de assiduidade. Resultado: o absentismo caiu 21% (um quinto) e os resultados dos estudantes nos exames subiram consideravelmente.
Com esse tipo de intervenções mais localizadas alteraram a maneira como se estuda as formas de combate à pobreza, diz Pedro Pita Barros. “O que [estas abordagens] fazem é retirar as pessoas da pobreza mais pela transformação do que fazem e das suas decisões, do que pela redistribuição de rendimentos. E isso é uma atitude muito diferente face aos mesmos problemas”, completa.
A “estrela rock” da economia da pobreza (que até Obama consultou)
Filha de uma pediatra que fazia missões frequentes em zonas de guerra, Esther Duflo cresceu com as histórias que a mãe contava sobre essas viagens, além de ter ganhado, desde cedo, uma paixão pelos temas relacionados com a erradicação da pobreza.
Depois de ter estudado em França e de ter passado um ano na Rússia, aterrou nos EUA, no MIT, em 1995, para fazer um doutoramento (em 2009 recebeu uma bolsa da fundação MacArthur conhecida como a bolsa dos “génios”). Acabaria por ter um filho de um dos seus orientadores de doutoramento — nada mais, nada menos, do que o seu atual marido: o também laureado Abhijit Banerjee.
Os dois escreveram, em 2011, o livro que viria a ser considerado Livro do Ano do Financial Times/Goldman Sachs: “Poor Economics”, uma obra que propunha um “repensar radical” da forma como se combate a pobreza a nível global. Um ano depois, os dois tinham um filho (que nasceu nos EUA) e casariam em 2015.
Antes disso, porém, no final de 2013, Esther Duflo foi consultada pela administração Obama, que criou um conselho para o desenvolvimento global, que tinha como objetivo avaliar a forma como eram utilizados os fundos atribuídos pelo governo norte-americano a programa de ajuda humanitária internacional.
Foi nessa altura que, em entrevista à Newsweek, um colega da Universidade de Yale (Dean Karlan) a considerou uma “estrela rock” e um “ótimo exemplo de uma nova vaga de economistas do desenvolvimento, pessoas extraordinariamente inteligentes que se dedicam à teoria mas cujo objetivo é realmente melhorar o mundo à sua volta”.
Esta área da economia do desenvolvimento tem-se dividido entre aqueles que acham que os países subdesenvolvidos só não progridem mais porque, apesar de tudo, não recebem recursos suficientes e aqueles que acham que quanto mais ajuda humanitária se dá, pior: mais se enraíza a dependência e a corrupção.
Os colegas de Esther Duflo descrevem-na como alguém com pouca paciência para lutas de egos. Gosta mais de praticar montanhismo, uma atividade que envolve paciência, determinação, gestão eficaz dos recursos e pensamento prático. Contra as lutas de egos tem uma solução prática e eficaz: provas empíricas que demonstrem que a solução A para combater a pobreza é melhor do que a solução B, porque é frequente a solução B, intuitivamente, parecer infinitamente melhor.
“Se não soubermos onde e como é que os apoios estão a fazer a diferença — se é que estão, de facto, a fazer alguma diferença, então não somos melhores do que os médicos medievais, que acreditavam que aplicar sanguessugas nos pacientes” ajudava a curá-los de uma série de maleitas.