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Paulo Renato e Isabel Ruth são os protagonistas do filme realizado em 1963 por Paulo Rocha
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Paulo Renato e Isabel Ruth são os protagonistas do filme realizado em 1963 por Paulo Rocha

Paulo Renato e Isabel Ruth são os protagonistas do filme realizado em 1963 por Paulo Rocha

"Nunca se tinha visto cinema português assim": 60 anos depois da estreia, qual o legado de “Os Verdes Anos”?

Estreado a 29 de novembro de 1963, o filme de Paulo Rocha marcou o cinema português. Agora, o filme-ensaio "Onde Fica Esta Rua?" recorda-o. Realizadores e investigadores explicam esta cine-revolução.

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Manoel de Oliveira disse um dia que Os Verdes Anos representava “o paradigma duma modernidade para o cinema português”. Existe, de facto, razoável unanimidade de que o filme de Paulo Rocha, que esta quarta-feira, 29 de novembro, celebra 60 anos desde a estreia original, configura um “antes” e um “depois” na evolução do cinema nacional: um corte com os filmes aprovados pelo Estado Novo e mensagens de apoio ao regime, o princípio de uma era modernista, de rutura e de novas ideias que apontavam para um caminho de liberdade, tanto política como artística.

À semelhança daquilo que acontecia ao mesmo tempo noutros países, quer o filme, quer o Novo Cinema Português, movimento que integrou e ajudou a formar, foram o resultado de um conjunto de fatores que formaram uma “tempestade perfeita” para um momento cultural que veio, nos anos seguintes, a revelar-se altamente influente — e do qual Os Verdes Anos é tido como representante máximo.

Para chegar a este ponto, o filme de Paulo Rocha teve, no entanto, de passar por várias fases de apreciação e reapreciação, até assumir o papel de protagonismo que hoje lhe é atribuído.

Das críticas veladas ao Estado Novo contidas na narrativa do filme, à apatia e desdém com que foi recebido pelo grande público aquando do lançamento, passando pela sua defesa e valorização por parte do meio crítico, que lhe veio a conferir o estatuto de clássico, traçar o percurso do filme no imaginário popular é, de facto, retratar uma evolução do próprio meio cultural, da sociedade portuguesa e das formas como foi mudando (e em certos domínios permanecendo igual) ao longo das décadas.

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[o trailer de “Os Verdes Anos”:]

Na mesma semana em que os cineastas João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata estreiam nas salas nacionais Onde Fica Esta Rua? Ou sem Antes Nem Depois, um filme documental que parte, precisamente, das ruas d’Os Verdes Anos de Rocha, importa perceber de que forma é que a perceção do filme foi mudando junto de sucessivas gerações e qual o legado que deixa hoje aquele que Manoel de Oliveira considerou, em 1995, um filme de “verdadeira importância para uma identificação” do lugar ocupado pelo cinema português.

Os anos 1950: um cinema em “decadência absoluta”

Quarenta anos antes dos elogios de Oliveira, o cinema dava os primeiros sinais daquilo que se viria a revelar como um profundo processo de mudança (do impacto de James Dean nos EUA à maturação da geração de críticos-cineastas da Cahiers du Cinema, em França, por exemplo). Por cá, contudo, 1955 é geralmente apelidado como o “ano zero” do cinema português, espelho do decalque em que entrara a produção nacional: nesse ano, nenhuma longa-metragem portuguesa estreou nas salas de cinema do país.

“O cinema português tinha entrado numa decadência absoluta, porque a comédia entra em declínio”, recorda o cineasta António Pedro Vasconcelos, à época um jovem cinéfilo, jornalista e crítico de cinema em publicações como o diário República ou a revista Imagem. “A comédia era muito popular, tínhamos atores incríveis, apesar de a mensagem ser completamente ligada àquilo que era a ideologia fascista. (…) E entra em declínio precisamente quando o Salazarismo deixa de ser popular na sociedade.”

As transformações que a sociedade portuguesa foi empreendendo a partir da década de 1950 foram-se traduzindo num lento mas progressivo afastamento dos ideais do Estado Novo (tendo o seu apogeu, neste período, com as eleições presidenciais de 1958 e a mobilização popular em torno de Humberto Delgado).

Os ténues “ventos de mudança” também se começavam a repercutir no grande ecrã, onde as comédias de Vasco Santana e António Silva, os filmes com Amália Rodrigues e os dramas históricos foram caindo em progressivo desuso nas salas de cinema nacionais. Juntou-se também o aparecimento, em 1957, da televisão pública portuguesa com a RTP, que rapidamente conquistou uma adesão massiva junto do público, ajudando a reconfigurar as lógicas de produção do meio audiovisual.

Além do contexto cultural, a indústria cinematográfica portuguesa via-se a braços com uma débil estrutura de apoio técnico à produção, como recorda Vasconcelos: “Em França, os tipos da nouvelle vague, ainda que tendo inovado em termos estéticos, tinham ao seu dispor uma infraestrutura técnica muito profissionalizada. Em Portugal, os técnicos não tinham trabalho regular, vivia-se muito da publicidade – não havia profissionais, foi preciso inventá-los”.

A solução para uma geração de jovens cineastas que queria “mudar de vida” (e que tinha os recursos para o fazer) foi emigrar. “O Novo Cinema português parte de um grupo privilegiado de jovens homens, cineastas, que foram para fora estudar o que na altura não se estudava cá”, explica Filipa Rosário, investigadora e professora de Cinema Português e Análise Fílmica na Universidade de Lisboa, que sintetiza o estado da indústria cinematográfica nacional como “completamente obsoleto”.

Paulo Rocha, realizador de "Os Verdes Anos", fez parte de uma geração de jovens cinéfilos que foi para o estrangeiro estudar cinema, no final da década de 1950

Nesses anos, dão o salto nomes como Vasconcelos, António da Cunha Telles, Fernando Lopes, Alberto Seixas Santos e, entre esta “nova vaga”, um jovem portuense, cinéfilo, que acabara de abandonar os estudos de Direito: Paulo Rocha. Em 1959, ainda longe d’Os Verdes Anos, o futuro cineasta resolve partir para França, onde toma contacto com uma realidade muito diferente, à época inacessível em Portugal.

Contrariamente ao que se poderia imaginar (e ao que se verificava com outros dos seus contemporâneos), os filmes de Jean-Luc Gordard, François Truffaut ou Alain Resnais não foram a principal influência artística de Rocha. “Em Paris conheci os movimentos poéticos que estavam na moda (…), mas também, por exemplo, a literatura chinesa e japonesa”, revelou a Jorge Silva Melo, em 1995, colocando mesmo o cinema da nouvelle vague num plano “muito menos importante” do que o do “cinema japonês que começava pouco a pouco a descobrir, juntamente com a arte, com a pintura e a gravura japonesa”.

Além da literatura e do cinema asiático (nesta área, o cineasta Kenji Mizoguchi foi a sua maior e mais assumida referência), foi ainda discípulo do francês Jean Renoir, trabalhando como assistente de realização em O Cabo de Guerra, de 1962. As aprendizagens na capital francesa foram alimentando o ímpeto de regressar a Portugal e mudar o paradigma. “Era uma geração que não se identificava com o cinema feito à época, que tinha vontade de fazer os filmes que gostariam de ver”, diz Filipa Rosário.

De regresso, Rocha acabaria por se estabelecer em Lisboa, na Avenida dos Estados Unidos da América, onde um dia lê no jornal a história de um aprendiz de sapateiro vindo da província que matara a namorada, empregada doméstica, perto de onde o cineasta vivia – uma história e um crime que acabariam por servir de rastilho para o seu primeiro filme.

A nova forma de um novo cinema

O ressoar das primeiras notas da famosa melodia de Carlos Paredes, na sequência inicial de Os Verdes Anos, demonstra de imediato sinais de um corte com o que veio antes. A combinação de imagem, som e montagem empregue por Paulo Rocha estava muito à frente da generalidade das produções contemporâneas, ainda presas a ideias e formas de fazer cinema antiquadas e alheias às desigualdades sociais e entre classes.

“É um documento histórico, uma história fascinante e um filme que revela um virtuosismo de trabalho da mise-en-scène como até então não tinha sido feito em Portugal, nunca se tinha visto cinema português assim”, explica Filipa Rosário. O trabalho de cenografia é, desde logo, o elemento em que o filme de Paulo Rocha mais assume uma veia de vanguarda: ao invés das comédias de estúdio e de uma imagem idealizada de Lisboa, vai para as ruas da capital, captando uma cidade em processo de transformação que, até então, não tinha sido filmada.

“Havia uma imagem mais realista daquilo que se testemunhava em Lisboa, a partir de um bairro modernista e sofisticado, que na altura ainda estava lado a lado com um território rural, quase agrícola, que contrastava com a sofisticação do desenho dos prédios”, diz a investigadora.

bairro de alvalade

A ação de "Os Verdes Anos" capta o desenvolvimento urbano da cidade de Lisboa na década de 1960 (imagem do Bairro de Alvalade durante este período)

Esse contraste, de resto, serve para amplificar o impacto da narrativa do filme, que conta a história de Júlio (Paulo Renato), um rapaz do campo que chega à capital onde fica a morar com o tio num arrabalde da periferia lisboeta. Na cidade, conhece Ilda (Isabel Ruth), uma jovem empregada doméstica com sonhos de abrir um negócio de costura, e os dois começam uma relação que serve de alegoria para um país ruralizado que, no início da década de 1960, começava aos poucos a mudar a sua realidade (com tudo o que de bom e mau essa mudança trazia).

O Paulo Rocha instrumentaliza o espaço e o desenho urbano para contar essa história (…) Os elementos cénicos comentam sobre a ação, é um trabalho já sobre a forma fílmica muito sofisticado”, diz Rosário, que identifica uma correspondência “entre o Júlio e o campo e a Ilda e a cidade”.

A mensagem política subjacente a esta correspondência estava presente de forma deliberada – ainda que timidamente, por forma a evitar a censura do Estado Novo. Ainda assim, o filme sofreu alguns cortes: a frase “Portugal é um país pequeno, mas tem grandes mulheres” foi retirada por colocar em causa a dimensão do império colonial (a guerra em Angola já durava há dois anos, e na Guiné-Bissau tinha começado, precisamente, em 1963). De igual modo, uma cena no segundo ato da narrativa, em que Júlio e um estrangeiro têm um encontro com duas prostitutas – um importante momento de viragem no arco do protagonista – foi cortada por ir contra a “moral e bons costumes” da ditadura.

“As críticas sociais estavam lá todas, mas estavam escondidas atrás de uma sofisticação estética”, defende Rosário. Para essa sofisticação muito contribuiu o enriquecimento cultural de Paulo Rocha em Paris, que aqui se traduz num trabalho estético rigoroso do ponto de vista da imagem. A investigadora dá como exemplo uma cena em que Ilda caminha pelo arvoredo da Bela Vista:

“A Isabel Ruth podia ir em corta-mato, do ponto A ao ponto B, mas o Paulo Rocha põe-na a ziguezaguear por entre o monte; não há razão para aquilo, acontece porque os pontos de fuga fazem sentido e é bonito, esteticamente”.

Essa beleza estética e solidez formal são, no seu entender, um dos elementos que mais joga a favor do filme junto de um público moderno. “Muitos daqueles planos seguem a convenção estética da arte ocidental. As imagens são bonitas, são prazerosas a quem vê.”

Por outro lado, acrescenta, as temáticas que o filme aborda – a vinda do meio rural para a cidade em busca de melhores condições de vida, a precariedade de uma franja da população marginalizada pela sociedade, as questões habitacionais – imprimem a Os Verdes Anos uma atualidade que, seis décadas depois, ainda é suscetível de provocar interesse e curiosidade.

“Há uma série de coisas que o filme faz que ainda fazem sentido aos jovens: como é que alguém vem de fora e tem dinheiro para viver cá, por exemplo”, diz Rosário, que não considera estranho que os alunos a quem dá aulas se identifiquem com o filme e com Júlio, um jovem provinciano com dificuldades de adaptação, “a quem a universidade é inacessível, que vive numa habitação precária… os jovens identificam-se com isso, não é sequer preciso teorizar. É intuitivo”.

O primeiro impacto: o entusiasmo da crítica e a apatia do público

Os Verdes Anos teve direito a honras de estreia no Cinema São Luiz, um dos mais importantes de Lisboa à época, a 29 de novembro de 1963. Se o consenso formado ao longo de décadas eleva o filme ao patamar de clássico fundamental e “virar de página” do cinema nacional, a realidade histórica pinta uma imagem um pouco diferente, como conta Paulo Cunha, professor de Cinema da Universidade da Beira Interior.

“Se olharmos para a crueza dos números, o filme teve pouquíssimo impacto, esteve muito pouco tempo em sala” explica o docente, que é também investigador e programador do festival Curtas Vila do Conde, apoiando-se no tempo de permanência do filme em cartaz (só a partir de 1975 é que se começaram a manter registos oficiais de espectadores nas salas de cinema em Portugal). “Os filmes portugueses com mais sucesso ficavam nove, dez, onze semanas em cartaz” diz. Grandes êxitos internacionais, como Ben-Hur ou Spartacus ficavam ainda mais tempo, muito antes da distribuição home video, com janelas de exibição comercial que chegavam aos “quatro, cinco ou seis meses” em sala.

Face a estas prestações, Os Verdes Anos ficou muito aquém. “O filme esteve duas ou três semanas em cartaz em Lisboa e depois fez um périplo por outros cinemas do país, geralmente com uma outra sessão isolada” diz Cunha, classificando a obra de Paulo Rocha como uma que “passou completamente ao lado” da generalidade do público português – um universo que à época era de mais de 30 milhões de espectadores por ano (duas vezes superior às médias atuais).

O fracasso, de acordo com Filipa Rosário, entende-se sobretudo através da dicotomia entre o filme de Rocha, vanguardista e intelectual, e um público português pouco acostumado a este tipo de propostas, que olhava para o cinema como “mero entretenimento”. “É um filme muito exigente do ponto de vista formal, muito sofisticado para um público que não estava habituado a pensar desta forma, que estava treinado num tipo de cinema narrativo clássico”, diz.

O salto estético e formal foi de tal ordem que, sustenta a investigadora, ainda hoje se depara com situações em que Os Verdes Anos confunde espectadores modernos. “Todos os anos passo o filme nas minhas aulas, e há sempre alguém que embirra com o final, faz-lhe confusão, ou não compreende alguns daqueles saltos elípticos. Se isto é assim para um espectador de hoje em dia […] imagine-se como terá sido para um público dos anos 60”.

Se o filme foi recebido com apatia e incompreensão por parte do público, o mesmo não se verificou entre a crítica erudita e a geração da qual brotou. Lá fora, Os Verdes Anos seria reconhecido no Festival de Locarno, onde venceria o prémio de Melhor Filme de Estreia; cá dentro, Paulo Cunha explica que o filme “foi reivindicado pelos colegas de geração do Paulo Rocha e também por um setor da crítica mais inconformado”, ligado “aos setores de oposição democrática e cultural do regime”, pelo seu valor estético e sobretudo enquanto símbolo, de um tipo de cinema que devia ser feito em Portugal.

Exemplo disso são as apreciações da época de publicações especializadas como a Seara Nova:

Num país em que, durante anos, se respirou a total mediocridade cinematográfica (…) o aparecimento destes três filmes [além de Os Verdes Anos, refere ainda Pássaros de Asas Cortadas, de Artur Ramos, e Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira], com todas as limitações que se lhes possam pôr […] é algo de animador”.

Ou o Jornal de Letras e Artes:

Na equipa que concebeu e executou Os Verdes Anos, houve uma simplicidade e uma modéstia que julgamos ser exemplo a seguir”.

“Foi para nós um estímulo”, admite António-Pedro Vasconcelos, que à época acabara de regressar de Paris, onde estudara ao abrigo de uma bolsa na Sorbonne e que, após ver o filme pela primeira vez, assinou de imediato uma carta aberta endereçada a Paulo Rocha: “De certa maneira, [Os Verdes Anos] ajuda-me a decidir ficar em Portugal. (…) Deu-me um certo ânimo, mostrou-me que era possível”.

“Escrevo-lhe para lhe falar do seu filme como um admirador, não como um crítico. (…) ‘Os Verdes Anos’, digo-o e sublinho-o, é o melhor filme que, digo eu, o único que se fez em Portugal desde que V. nasceu”

— “Carta Aberta a Paulo Rocha”, escrita por António-Pedro Vasconcelos e publicada no Jornal de Letras e Artes em dezembro de 1963

Dos anos 60 ao século XXI: a cronologia de um restauro cultural

Nos anos seguintes, Os Verdes Anos foi continuando a ser elogiado e estimado pela crítica e pela geração de cineastas do Novo Cinema. Em 1967, por ocasião de um ciclo dedicado a este movimento no Cineclube do Porto, já Manoel de Oliveira incluía Paulo Rocha entre as “revelações” desse cinema, parte de “uma nova geração [que] representa uma audaciosa e prometedora arrancada do cinema português”.

Essa arrancada, contudo, não teve repercussão imediata junto do grande público. A presença do filme na consciência popular foi-se desvanecendo, algo natural atendendo à realidade dos modos de distribuição existentes.

“Hoje o filme está disponível em DVD e circula com muita facilidade. Mas até aos anos 1990, isso não existia”, assinala Paulo Cunha. “Estreou em 1963, foi exibido nos meses seguintes um pouco por todo o país em sessões pontuais e depois ficou depositado na bobina. Não tinha longevidade”, acrescenta.

Para o esquecimento a que o filme parecia então votado contribuiu em grande parte o facto de as exibições na televisão pública (naquela altura, a única forma de ver cinema fora da sala) privilegiarem um “cinema de antigo regime” em detrimento do espírito disruptivo e de rutura da geração de 60. “Filmes como Os Verdes Anos ou o Belarmino não passavam na televisão. O que dava era O Pátio das Cantigas, o Aniki-Bobó, a Cantiga da Rua, etc.”, diz o programador. Um fenómeno que, de resto, serviu para engrandecer a reputação dos filmes da comédia à portuguesa.

“É a partir dos anos 1960, com as exibições regulares na RTP, que essas comédias começam a ganhar uma aura de filmes populares. Não foi nas salas de cinema nos anos 30 e 40 – nessa altura até eram os dramas que ficavam mais tempo em exibição”, diz Cunha. O paradigma parecia, por essa altura, cimentado; para o mudar, foram necessários um conjunto de fatores que se foram acumulando, criando ao longo das décadas seguintes as condições necessárias a um “redescobrimento” do filme.

O primeiro foi a revolução de 25 de Abril de 1974, com todas as transformações políticas, sociais e culturais a ela subjacentes. O cinema também foi afetado, gerando no período pós-revolucionário um aceso debate em torno do tipo de filmes que deveriam ser produzidos num Portugal livre – uma escolha entre os “filmes para Bragança” ou os “filmes para Paris”, como sintetizou anos mais tarde o então ministro da Cultura, Francisco Lucas Pires.

Neste contexto, Os Verdes Anos surgiu como um filme-bandeira por um cinema mais intelectual. “Nasci em 1977 e cresci numa casa, na década de 80, com pais instruídos e cultos, onde Os Verdes Anos já eram vistos como uma influência”, diz Filipa Rosário. Além de uma opção ideológica, pesou a favor do filme a sua importância enquanto documento histórico. “Na década de 1980, o tempo diegético do filme, no início dos anos 1960, com aquele lado documental, o êxodo rural e a construção de Alvalade, já está definitivamente no passado. Há um olhar retrospetivo e uma curiosidade natural que o fazem ganhar força junto de um público popular, coisa que até ali não tinha”, reforça a investigadora.

A partir da década de 1980, a Cinemateca Portuguesa teve um papel decisivo na reabilitação do filme junto do público

MARIO CRUZ/LUSA

As exibições em sala começam acontecer com maior regularidade. O primeiro grande momento de viragem acontece em 1985, com a primeira retrospetiva feita pela Cinemateca Portuguesa em torno do Novo Cinema português, na qual Os Verdes Anos é já enquadrado como uma espécie de “joia da coroa” – “a matriz do cinema português, a sua pedra angular”, como escreveu João Bénard da Costa, dirigente da Cinemateca durante quase três décadas e um dos principais críticos apoiantes do filme aquando do seu lançamento original.

“Aquela geração que nos anos 1950 e 60 fazia crítica e se opunha ao regime, nos anos 1980 e 1990 está nos espaços de poder, tanto os oficiais como os espaços de influência”, diz Paulo Cunha. “E usam esse poder para, de algum modo, cimentar esse cinema.”

A intensidade de programação do filme de Rocha na década que se segue é tal que, chegados a 1998, aquando do 40.º aniversário da Cinemateca e da publicação de uma lista comemorativa com toda a sua programação ao longo das décadas, Os Verdes Anos era já o filme português que mais vezes tinha sido exibido nas suas salas.

A este fator juntou-se ainda o aparecimento de formatos de home video: primeiro as cassetes VHS, com uma versão do filme lançada no mercado nacional no início da década de 1990 e, já no novo milénio, a edição em DVD, formato mais barato e que permitiu uma ainda maior disseminação. Esse processo culminou em 2015, com um restauro d’Os Verdes Anos e de Mudar de Vida (a segunda longa-metragem de Rocha), supervisionado pelo também realizador Pedro Costa – um processo iniciado quatro anos antes, por iniciativa do próprio Paulo Rocha, que viria a morrer em 2012.

Relançado nas salas de cinema e com uma nova edição em DVD e nas plataformas de streaming, Os Verdes Anos ganhava nova vida e chegava a novos públicos, em Portugal e no estrangeiro. Em 2020, o New York Times descrevia Rocha como “um mestre português”, enquanto que publicações especializadas como a Notebook sublinhavam o carácter “pioneiro” dos seus filmes.

“É só uma intuição que tenho ao circular pelo meio, mas acho que o filme nunca foi tantas vezes exibido em sala como hoje”, diz Paulo Cunha, defendendo que foi sobretudo no século XXI que Os Verdes Anos assumiu o seu valor simbólico no panorama do cinema em Portugal: “Acredito que o filme foi mais visto nos últimos dez anos do que nos cinquenta anos anteriores.”

“O senhor sabe por acaso dizer-me onde fica esta rua?”

Por entre os prédios que rodeiam as personagens de Júlio e Ilda no filme de 1963, há um apartamento com uma história particular. Construída há mais de seis décadas em pleno bairro de Alvalade, a discreta morada, uma entre tantas que Paulo Rocha filmou e fotografou, viria a revelar-se essencial para compreender o legado de Os Verdes Anos.

“Os meus avós viviam num apartamento onde, da janela da sala, se pode ver um dos sítios onde foi filmado [Os Verdes Anos]”, explica João Pedro Rodrigues, um dos realizadores (a par de João Rui Guerra da Mata) de Onde Fica Esta Rua? Ou sem Antes nem Depois, filme-ensaio que chega às salas esta quinta-feira e que se propõe a fazer um exercício de “arqueologia cinematográfica”: revisitar os lugares que compõem o filme de Paulo Rocha.

Rodrigues, que herdou o apartamento, conta que o seu avô foi uma das pessoas responsáveis pela construção do prédio, nesse momento de transformação da paisagem urbana de Lisboa. “Fiquei sempre com esta pergunta, que nunca pude fazer aos meus avós: será que eles viram o Paulo Rocha a filmar Os Verdes Anos?”, diz.

Além do elo familiar, o projeto teve ainda na sua génese o facto de o cineasta, que se formou na Escola Superior de Teatro e Cinema, ter sido aluno do próprio Paulo Rocha na década de 1980. O realizador de O Fantasma e O Ornitólogo descreve Rocha como“um professor muito importante” no seu desenvolvimento, responsável por lhe ensinar “a olhar para o cinema de outra maneira”.

Rodrigues e João Rui Guerra da Mata identificam numa das principais lições de Rocha uma característica norteadora do trabalho da dupla: a ideia de que os lugares encerram em si mesmos histórias por contar. “No nosso último filme juntos, A Última Vez que Vi Macau, às vezes filmávamos locais sem sequer sabermos de que forma os íamos usar” recorda Guerra da Mata. “Sabíamos só que eram evocativos de alguma coisa, que precisavam de ser filmados.”

A mesma ideia está impressa em Onde Fica Esta Rua?, ainda que a ligação com o filme de Rocha tenha imposto uma estrutura mais concreta. “Cada vez temos menos disponibilidade para parar, para olhar com olhos de ver. A abordagem que adotámos neste filme tem alguma coisa a ver com a ideia de termos tempo para olhar, de haver essa disponibilidade e esse interesse em descobrir.”

Isabel Ruth, a Ilda de "Os Verdes Anos", tem uma participação em "Onde Fica esta Rua? ou Sem Antes nem Depois"

Ironicamente, quis o destino que “tempo para olhar” não faltasse à dupla de cineastas, já que o filme, que começou a ser planeado e filmado em 2019, atravessou todo o período da pandemia, que deixou desertas as ruas de Lisboa. Uma realidade que o filme acaba por retratar, de uma forma que veio a surpreender os próprios realizadores:

Quando vimos as primeiras imagens já estávamos em confinamento e ao olhar para elas constatámos que já pareciam imagens de confinamento. É esquisito, mas era quase como se o que tivéssemos feito fosse premonitório – eram imagens passadas de uma coisa que estávamos a viver”, recordou João Pedro Rodrigues.

A decisão foi então tomada de introduzir a Covid-19 à “narrativa” contida nas imagens do filme, adaptando aquele que já era o princípio na base do projeto: filmar os lugares de rodagem de Os Verdes Anos sem os atores. “É um retrato de Lisboa nesta época; para nós o presente é sempre importante e achámos que o filme devia refletir esse ‘estado de sítio’ global que vivemos”, justifica Rodrigues.

A ideia de um “filme do presente” remete, inevitavelmente, para aquilo que motivou Paulo Rocha a rodar o seu filme há 60 anos. Além de um filme-ensaio, Onde Fica Esta Rua? acaba por se tornar num “filme da pandemia”, em que a melancolia da capital despida do elemento humano assume o papel principal durante 90 minutos.

Essa tristeza acaba por ser quebrada, justamente, pela presença humana decisiva no filme – Isabel Ruth, a Ilda que se estreou no cinema há seis décadas e que hoje, com 83 anos, é a única atriz do elenco principal ainda viva. “A coisa mais importante que ainda está na Lisboa contemporânea é o facto de a Isabel Ruth ainda estar viva”, diz Guerra da Mata, que descreve a atriz como “a grande diva do cinema português” e “uma pessoa maravilhosa, cheia de energia e projetos de vida”.

É a Ruth que cabe a responsabilidade de encerrar o filme: à noite, na cidade deserta, a atriz irrompe de dentro de um prédio, dançando energicamente ao som de uma marcha interpretada pela própria. Lisboa, és tão diferente / mas para mim estás igualzinha, canta, num ato de memória que relembra as raízes rurais da “velha cidade dos meus verdes anos” — que, à época em que a cena foi rodada, se via a braços com o confinamento e com o vírus da solidão. João Rui Guerra da Mata resume: “Pensando que estávamos na pandemia, é quase um grito de esperança e de alegria. Como que a dizer: estamos vivos”.

 
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