Discurso de Rui Rocha

na rentrée da Iniciativa Liberal

Liberais, há 10 dias, no Pontal, Luís Montenegro afirmou que o PSD não é liberal. Quero dizer a Luís Montenegro que nós já tínhamos percebido. E se não houvesse outros indicadores, o próprio discurso do Pontal deixou muito claro aquilo que é o desígnio do PSD. Imaginem que alguém tinha estado fora de Portugal no último ano, que não sabia nada sobre a política e que chegava precisamente no dia daquele discurso e lhe diziam que o primeiro-ministro tinha apresentado um suplemento extraordinário sem cuidar ao mesmo tempo de uma reforma da Segurança Social. O que é esta pessoa pensaria? António Costa continua a ser o primeiro-ministro.

A colagem de Luís Montenegro a António Costa tinha começado a ser construída nos últimos dias pela Iniciativa Liberal, com uma estratégia que chegou até aos cartazes dos liberais nas ruas do país. Rui Rocha não perdeu tempo e no arranque do discurso da rentrée fez questão de recordar as palavras do primeiro-ministro que, no Pontal, sublinhou que não era liberal. O posicionamento não agradou aos liberais que decidiram virar o discurso a seu favor e, uma por uma, escrutinar as medidas do Governo e argumentar que são mais próximas de uma governação socialista do que liberal. Para isso, Rocha usou a tradicional ideia de questionar alguém que acaba de chegar a um determinado local para rapidamente concluir que, ao ouvir as propostas que o líder do PSD levou ao arranque político no Pontal, ninguém diria que o primeiro-ministro português mudou. Em resumo, Montenegro é igual a Costa — e Rocha havia de tentar prová-lo mais vezes. Começou com o suplemento extraordinário para as pensões, seguiu para o passe ferroviário a 20 euros e concluiu com os cursos de medicina. A conclusão foi sempre a mesma.

A conclusão que podemos tirar, não só do discurso do Pontal, mas também do discurso do Pontal, é que os portugueses queriam mudança, mas tiveram mais do mesmo. Os portugueses queriam mudança e tiveram um governo toranja, laranja por fora mas rosa por dentro.

O mote que demonstra que a IL passou a colar o PSD ao PS já vinha a ser traçado e Rui Rocha acabou a dar-lhe voz ao resumir que o Governo de Luís Montenegro “é toranja, laranja por fora e rosa por dentro”. O slogan de arranque do novo ano político pretende chegar às pessoas, mostrando que havia promessas para cumprir e que, na visão dos liberais, o Governo não só defraudou as expectativas de quem votou nele, como acabou por ser “mais do mesmo” quando havia uma promessa de “mudança”. E é aí que a IL pretende continuar a posicionar-se — e viu espaço para o fazer —, na narrativa de que é possível fazer diferente e que o PSD optou por fazer igual. No fundo, os liberais, que vão sofrendo com o voto útil pela tentativa da AD os esvaziar, viram neste discurso de Montenegro a possibilidade de se distanciarem e de voltarem a procurar uma lufada de ar fresco nas próprias ideias.

Essa aversão às ideias liberais é particularmente curiosa hoje, 24 de agosto, porque comemora-se mais um aniversário da Revolução Liberal de 1820. A mesma Revolução Liberal que deu origem à Constituição de 1822, que afirmava que o poder está nas pessoas, não estava no rei, não estava no clero, não estava no Estado, estava nas pessoas. É esse o legado liberal.

Mais do que recuperar a efeméride que funcionou de forma perfeita para os liberais, que festejam a rentrée no dia de comemoração da Revolução Liberal de 1820, Rui Rocha quis apelar ao mais básico do liberalismo para questionar como é possível ter aversão às ideias liberais, nomeadamente com uma explicação básica de que o poder está nas pessoas. Foi apenas mais uma forma de responder à tal afirmação de Montenegro, mais uma provocação para aquele que em tempos parecia ser o parceiro preferencial da IL.

Luís Montenegro e o PSD prometeram um país a crescer. Perguntem às empresas que criam riqueza para Portugal, onde está o fim da derrama estadual? Onde está o fim das derramas que mais não são que uma punição pelo sucesso e pelo crescimento? Onde está o fim da tributação autónoma que mais não é do que a desconfiança do Estado sobre as empresas que criam riqueza. E perguntem-lhes também se já perceberam o que vai acontecer com o IRC, que vai ser moeda de troca de um eventual acordo com o PS.

A bandeira das empresas e dos empresários não ficou por falar no discurso de Rui Rocha, que não só aproveitou para tocar em alguns dos pontos com que os liberais se têm posicionado contra o Governo, nomeadamente da derrama fiscal, como voltou a dar o salto para uma alegada proximidade entre PSD e PS. Desta vez foi mais longe e chegou, sem o referir, ao Orçamento do Estado. A IL ambiciona uma redução imediata do IRC para 15%, enquanto o Governo o pretende fazer de forma progressiva. O presidente liberal põe até em causa que qualquer redução avance, ao considerar que pode ser uma moeda de troca para que o Governo veja o Orçamento do Estado viabilizado pelo PS, já que uma abstenção de Pedro Nuno Santos seria suficiente. Assim, a IL, sabendo que não tem o número de deputados que permita dar luz verde ao documento, acaba por ficar sem grande saída no que toca a negociação e Rui Rocha procura distanciar-se deste tipo de medidas que sempre foram uma bandeira do partido e das quais não pode abdicar — até a pensar numa futura ida às urnas.

Perguntem aos portugueses com mais de 35 anos se continuam sujeitos ou não a uma carga abusiva de IRS todos os meses. Perguntem a esses portugueses com mais de 35 anos se continuam a pagar ou não IMT na compra de casa, se continuam ou não a pagar imposto de selo quando compram uma casa. O choque fiscal de Luís Montenegro, que foi apresentado com uma enorme dimensão, é um pacote fiscal que não abrange sequer aqueles que suportaram a crise das dívidas soberanas, a intervenção da troika, a crise da habitação, a crise da inflação, a crise do Covid, que levaram o país às costas que contribuem todos os anos, todos os meses, para que depois os governos andem a fazer políticas eleitoralistas.

É outro tema caro aos liberais e que tem levado a grandes confrontos políticos entre Governo e IL: os benefícios fiscais para os mais jovens. Os liberais já disseram com todas as letras que a medida é discriminatória e que é difícil aprovar um Orçamento do Estado que faça esta distinção por idade e, na rentrée, Rocha voltou a tocar no tema, ao recordar que esta geração passou por vários momentos de crise ao longo dos últimos anos e que está a ser prejudicada por aquilo a que chamou “medidas eleitoralistas”, em mais uma acusação ao Governo. Esta é uma das grandes batalhas dos liberais, que sempre assumiram que o tema dos impostos lhes é caro e que foram dos mais críticos pelo que dizem ser a inexistência de um verdadeiro choque fiscal prometido pela AD.

Perguntem aos que procuram casa, onde estão as medidas do PSD? Para promover a oferta, mais casas, mais ofertas no mercado. Perguntem onde está o IVA a 6% que foi prometido no programa da AD e que desapareceu do discurso político do PSD. Onde está o IVA a 6% que traria mais oferta para o mercado? E onde estão as medidas para o mercado de arrendamento? Perguntem aos portugueses que medidas propôs o PSD até hoje para liberalizar o mercado de arrendamento para que venham mais casas para o mercado para os jovens, para aqueles que precisam, para as famílias poderem arrendar não há uma medida. Perguntem aos portugueses que precisam de cuidados de saúde, perguntem às grávidas de Portimão se continuam ou não a ter que fazer centenas de quilómetros para Faro ou para Lisboa, ou para sabe quem onde, para encontrar uma urgência aberta.

Da Habitação à Saúde, Rui Rocha fez questão de traçar um cenário onde continua a haver falhas, acusando o Governo de não estar a responder à altura dos compromissos — sempre numa comparação subjacente ao que havia no passado e ao que há hoje em dia, para concluir que os problemas continuam e que basta perguntar aos portugueses para o perceber. Rocha pretende mostrar que pouco mudou mas, mais do que isso, procura realçar que a AD prometia soluções e que não está a colocá-las em prática, numa sugestão de que é responsável pela falta de mudanças dos últimos meses.

O PSD prometeu aos jovens portugueses que iriam ter um país para ficar, mas perguntem aos jovens portugueses se este país é um país onde os jovens possam ficar, com desemprego acima de 20%, com baixo crescimento económico e baixos salários, com falta de casas para arrendar e para comprar. Com falta de creches para os filhos e com falta de serviços em geral do Estado.

Os jovens, público-alvo de um partido que tem conquistado esta faixa etária nas urnas, também tiveram um destaque especial de Rui Rocha. Depois de a AD ter feito do apoio aos jovens uma das grandes bandeiras da campanha, o líder liberal considera que está a ser feito pouco para que o desemprego baixe e, mais do que isso, para que os jovens optem por ficar no país ao invés de emigrarem. E culpa Luís Montenegro e o seu Governo de não estarem a ser capazes de dar razões aos mais novos para não abandonarem o país, exemplificando com falta de condições desde a habitação às creches.

Vejam bem o disparate a que se chegou, que um português com mais de 35 anos que quer comprar uma casa paga IMT, mas um estrangeiro residente em Portugal com menos de 35 anos está dispensado de pagar IMT. Como é possível que se introduza este nível de discriminação sobre aqueles que carregaram o país às costas durante décadas. É completamente inadmissível.

Num rápido regresso ao tema dos benefícios fiscais só para jovens, Rui Rocha acaba por dar o exemplo de uma das discriminações apontadas pela IL, ao referir que a lei que permite o não pagamento de IMT e de imposto de selo abrange jovens estrangeiros que vivam em Portugal, mas deixa de fora quem “carrega o país às costas”. Mais um argumento num tema sensível para os liberais, que continuam a acreditar que os benefícios fiscais aplicados aquela faixa etária deviam ser extensíveis ao resto da população, pelo menos de forma progressiva.

A luta continua pelos jovens portugueses porque temos políticas, temos soluções para que os jovens portugueses tenham um país onde podem ficar. A luta continua para os portugueses com mais de 35 anos que carregaram o país às costas e que merecem agora um alívio fiscal que o PSD não está em condições. Seremos incansáveis, a luta continua, seremos indomáveis na defesa dos pequenos empresários que estão subjugados a taxas e taxinhas, a contribuições autónomas, a derramas, a tudo aquilo que os impede crescer e seremos incansáveis, indomáveis, na defesa das médias empresas que querem ser grandes, na defesa das grandes empresas que querem ser ainda maiores, nas empresas muito grandes que querem ser multinacionais.

Um por um, Rocha enumerou alguns dos temas mais caros do partido para deixar a promessa de que “a luta continua”. O presidente da IL volta a afastar-se do Governo e a mostrar que as soluções dos liberais não estão refletidas no rumo que a Aliança Democrática está a traçar para o país mas, mais do que isso, usa a palavra “indomáveis” para mostrar distância quando à governação, para mostrar que é preciso mais e diferente para “mudar” o país — numa quase repetição de que o “mais do mesmo” não muda nada e que é preciso irreverência para ser diferente. O objetivo de Rocha é esse, demonstrar que a IL é diferente do PSD e que não pode haver uma colagem. O uso da palavra “indomável” é apenas mais uma prova disso.

Em junho atingimos um número recorde de 749.678 funcionários públicos e não foi apenas António Costa que trouxe mais funcionários públicos para o Estado. Também Luís Montenegro, também o PSD, entraram numa deriva de contratação de assessores, de criação de comissões de serviços. Continuamos na luta, seremos indomáveis, pelo motivo fundamental que defendemos: que cada cêntimo dos contribuintes tem que ser bem justificado quando se tira do bolso dos contribuintes e tem que ser bem usado com eficiência pelo Estado.

Ainda houve tempo para Rui Rocha atirar mais uma farpa a Luís Montenegro, desta vez por causa do peso do Estado, com críticas ao facto de o Governo ter entrado numa “deriva de contratação de assessores e de criação de comissões de serviços” — mais uma vez notando que não só António Costa o fez e que Luís Montenegro está a seguir os seus passos. Com isto, o presidente liberal acrescentou também que a IL mantém uma luta pelo bom uso do dinheiro dos contribuintes, uma marca que tem tentado usar como sua.

E porque somos indomáveis, fica aqui uma advertência: não se confunda a nossa abertura ao diálogo, o nosso espírito construtivo com cedência nos nossos princípios e é pelos nossos princípios que a nossa posição relativamente ao Orçamento será muito clara. Não viabilizaremos um Orçamento de mais do mesmo. Nós viabilizaremos apenas um Orçamento que vise transformar o país tal como os portugueses esperavam. Nós não viabilizaremos um orçamento de laranja por fora e rosa por dentro. Não viabilizaremos um orçamento que não aposte no crescimento económico, que não liberta as empresas dos impostos excessivos e da burocracia. Não viabilizaremos um Orçamento que insista na discriminação dos portugueses, que cria portugueses de primeira e portugueses de segunda, portugueses com mais de 35 anos que têm que levar o país às costas e que nunca tiveram um alívio fiscal nas últimas décadas. (…) E é porque somos indomáveis e porque somos liberais e porque a luta continua que não deixaremos que nos confundam com meros tabeliães da execução do programa eleitoral da AD

O que estava nas entrelinhas ficou dito na reta final do discurso, com Rui Rocha a esclarecer quais são as linhas vermelhas para que a Iniciativa Liberal aprove o Orçamento do Estado. E não são poucas. Depois de tudo o que disse, de todas as críticas que fez, de todos os problemas que levantou, estranho seria que o presidente da IL terminasse a dizer que estava prestes a aprovar o Orçamento do Estado do Governo. Não o fez, mas reiterou alguns dos temas que usou como ataque a Luís Montenegro como possível moeda de troca para a viabilização do documento — sabendo de antemão que o número de deputados da IL não salva o Governo de Montenegro. Também por isso, os liberais sentem-se mais livres para se afastarem do Governo, o tal sentimento indomável que Rocha transmitiu, e aproveitam para se distanciarem do CDS, parceiro natural do PSD, ao recusarem ser quem assina por baixo tudo o que o Governo faz.