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“Convivi com grandes pintores, como o Júlio Pomar ou o Noronha da Costa. Eles eram verdadeiros pintores, eu fazia pintura”, diz Cruz-Filipe ao Observador
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“Convivi com grandes pintores, como o Júlio Pomar ou o Noronha da Costa. Eles eram verdadeiros pintores, eu fazia pintura”, diz Cruz-Filipe ao Observador

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“Convivi com grandes pintores, como o Júlio Pomar ou o Noronha da Costa. Eles eram verdadeiros pintores, eu fazia pintura”, diz Cruz-Filipe ao Observador

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O mundo de imagens Ricardo da Cruz-Filipe: “Quando olho para estas obras vejo coisas que nunca vi"

Aos 90 anos de idade, o artista é celebrado na Gulbenkian com uma exposição retrospetiva. Em entrevista ao Observador fala de um percurso independente, onde aliou a pintura à fotografia.

Num primeiro olhar, o visitante ficará submerso nas diferentes direções para as quais estas telas apontam. O território visual é referencial e amplo. Há alusões à pintura barroca e neoclássica, mas também um cruzamento inusitado com o surrealismo e o impressionismo. O que vemos é, no entanto, mais singular e diz respeito a uma utilização ambígua da fotografia metamorfoseada em pintura. “A criação de imagens foi sempre uma necessidade de expressão contínua”: é desta forma que Ricardo da Cruz-Filipe (1934) fala, na primeira pessoa (durante uma curta visita à montagem da exposição), da sua obra e do seu percurso ligado às artes visuais, iniciado há mais de 70 anos.

Em vésperas de inaugurar a exposição retrospetiva Cruz-Filipe, Modo de Ver, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, o artista português que acaba de completar 90 anos de idade, aborda o seu processo como criador de imagens, que agora se dá a ver de forma antológica. É a narrativa visual, consolidada ao longo de décadas, de um “independente”, como ele próprio refere, na história da arte contemporânea portuguesa.

Organizada em conjunto com o artista, que escolheu o título (recorrendo a uma expressão usada por Susan Sontag em On Photography), a exposição apresenta 57 pinturas de Cruz-Filipe que traçam a evolução da sua obra desde a década de 1970 até à última tela, pintada em 2020. Na grande maioria, revela-se a técnica em que se notabilizou e que utiliza telas fotossensíveis, colocando estas criações num lugar híbrido, entre a pintura e a fotografia. Ao deambularmos neste universo pictórico, entramos necessariamente num lugar onde a cultura visual é repleta de metáforas vivas e de contemplações sobre o mundo. Da utilização do óleo e depois do acrílico sobre este tipo de telas, o artista português distingue-se por um processo transformativo de imagens, que começa nas montagens de fotografias projetadas em telas e que são tratadas cromaticamente numa espécie de pós-produção da imagem.

A primeira exposição pública aconteceu na Galeria Pórtico, em 1957, da qual resta um quadro que abre a presente exposição, intitulado "Música de Câmara"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como escreve o ensaísta Bernardo Pinto de Almeida, num texto que integra o catálogo da exposição, “cada quadro requer a execução lenta de um processo construtivo”, meticulosamente pensado, através de um processo que trabalha as imagens de forma digital. “Baseado na pintura, na fotografia e na colagem – composto assaz complexo que lhe trouxe grande originalidade –, esse processo, sendo absolutamente construtivo, foi realizado quando os dispositivos digitais não conheciam ainda lugar próprio e estavam na maioria por inventar, o que jamais o impediu de ser quase um pioneiro dos processos contemporâneos da apropriação da imagem e do seu uso indiscriminado”, salienta no mesmo texto. O seu trabalho, explica por seu lado a curadora da retrospetiva Ana Vasconcelos, aproxima-o de Richard Hamilton, Robert Rauschenberg ou Gerhard Richter, mas em Portugal é um caso único.

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“Cruz-Filipe é herdeiro de uma matriz pop, mas foi um outsider porque insistiu na pintura, quando estava toda a gente a derivar para uma arte conceptual e quando a fotografia ganhou outra dinâmica. Ele continuou a trabalhar na imagem a partir da apropriação, recorrendo a imagens de revistas, frames de filmes e detalhes de outros quadros”, salienta. Numa tradição que trabalha o recorte e a transfiguração, as suas criações empregam uma complexa justaposição de imagens de pormenores retirados de pintura antiga, com particular destaque para a pintura italiana e flamenga dos séculos XVI e XVII, e um trabalho imagético em que o artista faz ligações, revela, deturpa ou oculta.

Um pintor ao fim de semana

Ao contrário de muitos artistas seus contemporâneos, Ricardo da Cruz-Filipe apresenta-se como pintor autodidata. “Convivi com grandes pintores, como o Júlio Pomar ou o Noronha da Costa. Eles eram verdadeiros pintores, eu fazia pintura”, explica ao Observador. Nascido em Lisboa em 1934, Cruz-Filipe diplomou-se no Instituto Superior Técnico em 1957, tendo sido ali professor-assistente entre os anos de 1958 e 1968. Dedicou toda a sua vida profissional ao setor da eletricidade, nomeadamente às questões económicas, ao planeamento, à organização e à gestão de empresas, tendo sido ainda diretor de uma companhia de seguros e administrador da Eletricidade de Portugal (EDP).

“A minha relação com estas obras recentes é mais complexa. Tenho uma sensação muito diferente hoje a pintar do que quando tinha 30 anos, talvez porque há medida que envelhecemos a nossa relação com a vida se torne mais difícil.”

“Só pintava aos sábados e aos domingos e quando não tinha trabalho para fazer. Nunca fui só pintor. Dedicava-me aos quadros quando tinha esse tempo livre, mas por isso mesmo demoravam e fazia poucas mostras desse trabalho”, conta o artista que chegou a ser professor de engenharia de António Guterres. A primeira exposição pública aconteceu na Galeria Pórtico, em 1957, da qual resta um quadro que abre a presente exposição, intitulado Música de Câmara. Foi o culminar de um gesto que começou cedo. “Desde pequeno que desenhava para o meu irmão, inspirando-me nos filmes de cowboys e no cinema pelo qual me fui interessando”, conta.

Anos mais tarde, já no fim da década de 1960, adota a técnica da tela fotossensível, que confere uma poética própria ao seu trabalho artístico, como explica a historiadora Raquel Henriques da Silva. “A sua determinação é a desrealização das coisas, do mundo e de nós próprios, que a arte prossegue não para encontrar soluções, mas para alargar essa álgebra em constante desmultiplicação. A física, a química e a matemática que o formaram no curso de engenharia do Instituto Superior Técnico dotaram-no da atitude do cientista insatisfeito à maneira de Galileu: é a Terra que se move, numa determinação cósmica roída ou sugada por ‘buracos negros’”, descreve. E se desse período inicial, em que como sintetiza João Pinharanda, “mergulhou inteiramente no imenso arquivo produzido pela história da arte ocidental, situando-se a sua pesquisa, grosso modo, entre o Renascimento clássico e o Romantismo oitocentista”, depressa a sua expressão criativa mudou.

Um universo de paisagens compostas

A disposição das obras no espaço expositivo foi pensada conjuntamente com o artista, que optou por uma progressão cronológica a partir da primeira pintura de um período já propriamente autoral, até chegarmos a um segundo ciclo, com o predomínio de registos fotográficos, dominado por apontamentos da natureza – mar, céu, terra, animais, árvores e nuvens – retrabalhados pelo seu imaginário. “Quando olho para estas obras vejo coisas que nunca vi, mas que foram criadas a partir de cenários reais. É uma forma de atingir o desconhecido que estamos sempre à procura sem o sabermos”, sustenta Cruz-Filipe.

Nunca se considerou artista in veritas. “Mantive um percurso autónomo e independente”, salienta

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Neste seguimento da mostra perde-se o lado figurativo, como o notório desaparecimento das figuras humanas, dos espaços interiores, elementos de arquitetura e objetos de cena, para se dar lugar à paisagem. Uma vez mais através da fotografia. Liberto das referências mais diretas, Cruz-Filipe chegou a um outro espaço imagético. “Das paisagens mais recentes que nos ocupam agora emana uma tranquilidade que, talvez por sabermos ilusória – sabemos que essa quietude não exprime uma menor tensão –, se revela mais poderosa ainda. Aliás, foi sempre em obras onde menos elementos se revelavam, aproximando da abstração largas zonas de sombra das pinturas, que os efeitos psicológicos e intelectuais da obra de Cruz Filipe mais se intensificavam”, explica João Pinharanda.

As premissas atmosféricas e geográficas provêm de algumas das inúmeras fotografias registadas pelo artista em viagens em que percorreu cenários naturais visualmente tão intensos como o são as savanas da África Oriental ou as águas geladas do Ártico. “A minha relação com estas obras recentes é mais complexa. Tenho uma sensação muito diferente hoje a pintar do que quando tinha 30 anos, talvez porque há medida que envelhecemos a nossa relação com a vida se torne mais difícil”, diz.

Ao longo de décadas, Cruz-Filipe não seguiu escolas nem tendências. Sobre ele, Eduardo Lourenço disse tratar-se de “um homem de pudor e reserva todo entregue à magia objetiva de sonhar perfeitamente acordado”. É por isso que nunca se considerou artista in veritas. “Mantive um percurso autónomo e independente”, salienta, mas que foi bem recebido por outros artistas, nomeadamente Ana Hatherly. Num texto escrito para a revista Colóquio, a artista e escritora dizia que a obra de Cruz-Filipe é “verdadeiramente ambígua e problemática, sendo e não sendo verdadeiramente pintura, sendo e não verdadeiramente fotografia”. As suas fotomontagens – e escrita da imagem – traduzem-no como um “artista profundamente contemporâneo”, acrescenta Ana Vasconcelos.

Já era engenheiro quando começou a compor imagens, mas essa expressão livre e artística nunca foi um hobby. “Era uma resposta natural ao que sentia e ao que via à minha volta.” Quando olhamos para as suas imagens entramos numa mise-en-scène singular, que se abre a um vasto campo de interpretações.

Ao contrário a retrospetiva que a Culturgest fez do seu trabalho em 1995, a exposição na Gulbenkian diz “é mais esclarecedora do seu percurso”, até porque convoca as obras mais recentes que advêm de uma natural maturidade enquanto criador de imagens. Cruz-Filipe sublinha também por isso um aspeto decisivo nesta exposição: a presença e ligação dos seus quadros com a música. “Se tivesse uma banda sonora para esta mostra seria música de câmara, que é a minha paixão mais marcante”, elucida. Não é por acaso que o título do quadro que ali figura da sua primeira exposição nos remete para esse fascínio. “Gostava de ter estudado música, mas não aconteceu, segui outros caminhos”, confessa.

Já era engenheiro quando começou a compor imagens, mas essa expressão livre e artística nunca foi um hobby. “Era uma resposta natural ao que sentia e ao que via à minha volta.” Quando olhamos para as suas imagens entramos numa mise-en-scène singular, que se abre a um vasto campo de interpretações. O seu modo de ver é agora é uma forma de reexperimentar o irreal – parafraseando Susan Sontag – para voltarmos de novo à realidade acrescidos por essa outra visão de mundo.

Apesar de uma abordagem sobretudo retrospetiva, são expostas dez pinturas inéditas, realizadas a partir de 2015, que deram continuidade ao segundo ciclo da sua pintura dedicado à paisagem.

Exposição patente de 23 de fevereiro a 15 de abril na Galeria do Piso Inferior da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Entrada Livre

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