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Bettmann Archive

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OJ Simpson (1947-2024): era uma vez na América

Foi o futebolista mais famoso da América; a estrela de TV mais simpática; o não-ator mais talentoso. Mas foi também o suspeito mais mediático e o glorioso caído na maior desgraça. Morreu aos 76 anos.

Quando na década de 80 do século passado o acrónimo “OJ” se tornou popular enquanto calão para heroína, foi como se tivesse ganho uma segunda vida. De acordo com o Oxford English Dictionary, o acrónimo existe desde 1957, como designação de “orange juice”; na década de 60 era este o seu significado. Mais tarde, o termo começou a ser usado no hip-hop: os Sugarhill Gang declaram “I’m death OJ”, em Rapper’s delight, de 1979 – e estavam a referir-se a OJ (Orenthal James) Simpson, ao seu movimento dentro do relvado, ao seu espírito indomável e vencedor: OJ ganhava um novo significado, enquanto algo intensamente bom. Provavelmente terá sido assim que OJ passou a ser heroína.

Esse não seria o último significado de OJ, porque depois de 12 de junho de 1994 o acrónimo passou a ter um sentido mais trágico: matar alguém, tirar a vida a uma (ou várias) pessoa(s). Analisar as mudanças semânticas de um acrónimo pode não ser a mais excitante das atividades, mas permite-nos avaliar as alterações na cultura popular – e poucos eventos tiveram tanto impacto na cultura popular como as mortes de 12 de junho de 1994, quando Nicole Brown Simpson e o amigo Ron Goldman foram esfaqueados até à morte à porta de casa da primeira.

Nicole Brown Simpson era a ex-mulher de OJ Simpson, que até esse dia era uma espécie de herói americano: apesar de nunca ter vencido o Superbowl, era um dos jogadores mais velozes da história, tendo sido considerado MVP (Most Valuable Player) da NFL (a liga de futebol americano) em 1973, NFL Offensive Player of the Year (em 1973), 5× First-team All-Pro (isto é, foi eleito para a equipa do ano entre 1972 e 1976), além de quebrar uma série de recordes de velocidade e milhas percorridas em campo.

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OJ Simpson como jogador universitário, em 1968

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A sua popularidade não se devia apenas aos feitos conquistados num relvado – mesmo antes de se tornar profissional de futebol americano, ele já tinha uma carreira enquanto ator, ou pelo menos já tinha entrado no ocasional episódio de televisão. Mesmo durante a carreira de jogador, OJ continuou a atuar em séries e filmes, entre os quais Towering Inferno, que é aquilo a que no cinema se chama “disaster film”, e no fundo era um veículo para Paul Newman e Steve McQueen, tendo sido extremamente popular.

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Mas o seu papel mais popular talvez tenha sido o do não muito inteligente mas extremamente engraçado detetive Nordberg nos três filmes que compõem a série Onde é que Pára a Polícia. Apesar de ter experimentado outro tipo de papéis de modo a tentar convencer Hollywood da sua versatilidade enquanto ator, este é um daqueles pelos quais alguém é lembrado para o resto da vida, até pelo sucesso monumental dos filmes.

Pode dizer-se, com algum grau de certeza, que até 12 de junho de 1994, Simpson era um dos americanos mais populares e queridos nos Estados Unidos da América. A isto não será indiferente o universo em que os atletas vivem – apesar de toda a cobertura mediática a que são sujeitos, os atletas têm equipas de media que lhes ensinam o que dizer, como e quando aparecer. Hoje é diferente, porque os atletas ficam ricos e poderosos mais cedo e têm voz própria, que usam quando querem (como no caso de Lebron James), mas naquele tempo — e em certo sentido — os atletas eram quase telas em branco nas quais as pessoas projetavam o que queriam; as suas conquistas desportivas tornavam-nos objeto da curiosidade alheia, mas o facto de raramente tomarem posições polémicas permitia que o público os imaginasse como pessoas perfeitas. E depois há a publicidade – quase todos os atletas famosos são quase omnipresentes nas TVs americanas à conta da publicidade que fazem: mais uma forma de exposição que os glorifica sem que tenham de tomar posição sobre nada.

Estavam a decorrer as finais da NBA e a emissão foi interrompida para se transmitir a perseguição em direto. Crê-se que 94 milhões de pessoas tenham assistido ao inusitado evento (que terminou com a prisão de OJ).

A vida de OJ não fora perfeita: o pai vivia uma vida dupla enquanto empregado da Reserva Federal e drag queen; mais tarde assumiu-se como gay, tendo morrido de SIDA em 1986. Nenhum destes factos era conhecido do grande público quando, a 17 de junho de 1994, OJ foi alvo da maior perseguição automóvel da história da televisão.

Na sequência do assassinato da sua ex-mulher e do seu amigo, OJ tornou-se de imediato suspeito da polícia; no dia 17 ele devia apresentar-se às autoridades – ao invés, fugiu de carro, armado com uma pistola que apontou à própria cabeça, ameaçando matar-se se não lhe permitissem voltar a casa. Estavam a decorrer as finais da NBA e a emissão foi interrompida para se transmitir a perseguição em direto. Crê-se que 94 milhões de pessoas tenham assistido ao inusitado evento (que terminou com a prisão de OJ).

E isto foi apenas o início, porque depois veio o julgamento – e de modo a que fique claro o impacto que o que se passou naquele tribunal teve na cultura popular americana, convém lembrar que um dos advogados de defesa de OJ era Robert Kardashian, que ficou tão conhecido que posteriormente teve direito a uma série de TV sobre a vida da sua família, Keeping Up with the Kardashians, na qual surgiam a sua ex-mulher Kris Kardashian e as filhas (Kourtney, Kim, Khloé, e Rob), que entretanto se haviam tornado estrelas mediáticas (ninguém sabe muito bem porquê).

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OJ Simpson com Nicole Brown Simpson em março de 1994, poucos meses antes da morte desta; e em junho do ano seguinte, em tribunal, experimentando a luva encontrada no local do crime

Getty Images

Ao jeito americano, foi necessário encontrar um epíteto para o julgamento (O Julgamento do Século); cada momento em tribunal foi escalpelizado até ao mais ínfimo detalhe; a figura do comentador de tribunais nasceu aí. Também nasceu aí o que se pode afiançar ser uma cultura pop ao redor de OJ Simpson: piadas sobre OJ, raps sobre OJ, séries sobre OJ, documentários sobre OJ, livros sobre OJ.

Uma boa parte da América nunca acreditou na inocência de OJ – no Youtube há uma compilação de 11 minutos de Norm Macdonald a fazer piadas sobre OJ e em todas ele é culpado da morte de Nicole. O que impressiona é a durabilidade do fascínio com OJ – em parte porque ele se encarregou de dar material ao mundo, muito graças à sua capacidade para tomar as piores decisões.

Ainda em 2016, houve duas series de TV dedicadas ao homem: The People vs. O.J. Simpson: American Crime Story era uma mini-série sobre os acontecimentos de 1994; O.J.: Made in America era um documentário de 8 horas, dividido em 5 episódios, sobre a vida de Simpson até ao momento em que foi preso por roubar Bruce Fromong, em Las Vegas, em 2007. Sim, isto aconteceu – e por isso ele foi condenado a 33 anos de cadeia, em 2008, tendo servido nove antes de ser libertado em 2017.

Qual foi a reação de OJ ao facto de ter sido preso? Lançar um rap chamado Get juiced. Não era o primeiro rap a versar OJ: Jay-Z fê-lo, Dr Dre (com Ice Cibe) idem, obviamente Tupac também tinha de molhar a sopa, até gente pacífica como os A Tribe Called Quest o mencionaram (em The hop). O próprio Kendrick Lamar acabou a mencionar OJ Simpson numa canção. Tendo em conta a natureza capitalista dos Estados Unidos da América, é espantoso que não haja uma marca de luvas chamada OJ.

Não é claro se a sua história nos ensina alguma coisa: ele não foi ilibado do duplo homicídio por ser negro e a sociedade americana reconhecer um viés anti-negro; foi ilibado porque era um homem rico, que podia pagar advogados caros.

A luva foi dos elementos mais discutidos em 1995, o ano em que decorreu a maior parte do julgamento de OJ (11 meses no total, tendo chegado ao fim em outubro). A acusação encontrou sangue das vítimas no carro de Simpson, nas meias de Simpson e o próprio sangue de Simpson estava na cena do crime. Uma luva encontrada no local do crime continha sangue das vítimas e de Simpson – mas a defesa alegou que a luva não cabia na mão de OJ. Uma lista de todos os detalhes que vieram a público na altura seria exaustiva.

A defesa de OJ encontrou ouro quando descobriu um áudio de um dos polícias que recolheu provas no local do crime e que repetidamente fez comentários racistas. O contexto, aqui, importa: em 1992, polícias espancaram um homem negro, Rodney King, abusando (sem razão) da força; um cidadão filmou os acontecimentos e as filmagens espalharam-se; quando os polícias foram absolvidos, a cidade de LA descambou num motim com motivos raciais: a comunidade negra acreditava que os polícias eram racistas e usavam de violência despropositada contra os negros.

A cartada da pele foi usada pela defesa de OJ, em particular depois de se conhecer os áudios do polícia que recolheu provas; para uma grande parte das pessoas, a quantidade de provas apontava na direção de OJ ser culpado – mas a 3 de outubro de 1995, 100 milhões de pessoas viram na televisão OJ ser absolvido. Mais tarde, houve sondagens que indicaram que a maioria dos negros acreditava na inocência de OJ, enquanto brancos e latinos não – mas também não é certo que essas sondagens sejam muito fiáveis.

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OJ Simpson em 2017, pouco antes de saber se seria libertado, após nove anos na prisão

POOL/AFP via Getty Images

Um facto menos conhecido é que posteriormente a família de Ron Goldman processou OJ num tribunal civil e o veredicto implicava que OJ pagasse cerca de 33 milhões de dólares à família. OJ vendeu a sua casa, foi para a Florida (cujas leis impediam que a sua pensão fosse usada para pagar dívidas) e, de acordo com múltiplas fontes, evitou ao máximo pagar o que quer que fosse. Em 2006 OJ lançou o livro If I Did It, em que OJ descrevia um hipotético assassinato de Nicole e Rob – mas a família de Rob colocou-o em tribunal e o tribunal decidiu que todos os proveitos do livro iriam para a família Goldman; esta decidiu que o livro se chamaria If I Did It: Confessions of a Killer (o “If” — “se” — aparecia em letras pequeninas).

Daí para a frente, a vida de OJ foi uma sucessão de dívidas e problemas com a polícia até à sua morte. Não é claro se a sua história nos ensina alguma coisa: ele não foi ilibado do duplo homicídio por ser negro e a sociedade americana reconhecer um viés anti-negro; foi ilibado porque era um homem rico, que podia pagar advogados caros. O que o fez cair não foi o (possível) assassinato – foi o julgamento civil, que o deixou com dezenas de milhões de dívidas e o atirou para uma vida de pequenos crimes.

O que quer que OJ fosse, o que quer que o tenha levado a cometer (ou não) os crimes de que foi acusado, sabemos uma coisa: ele não era apenas um atleta veloz, um ator limitado mas adorável, uma personalidade pública na qual as pessoas podiam projetar as suas aspirações. A tal tela em branco escondia algo de mais sombrio.

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