Enviada especial do Observador em Budapeste, Hungria
O que ouviram foi tão inesperado que até obrigou a uma paragem no caminho. No dia em que Portugal defrontou a Hungria, em Budapeste, na estreia das duas seleções no Euro 2020, quatro amigos portugueses estavam a caminho do estádio, cada um numa das milhares de trotinetes elétricas que estão espalhadas pela cidade, quando um deles foi alvo de uma frase proferida por um húngaro. “Cristiano Ronaldo, homossexual!”, gritou um adepto local, sendo desde logo acompanhado por dezenas de outros, entre gargalhadas, que gritaram o mesmo para o português que tinha a camisola 7 com o nome do capitão da Seleção. Os portugueses, metros mais à frente, pararam.
“Ouviste o que ele disse?”, questionou um deles. Todos acenaram que sim, sem grandes palavras, ainda sem entenderem propriamente o que se tinha passado. “Mas porquê?”, retorquiu outro. A pergunta, para a qual nenhum dos três amigos teve resposta, acabaria por se alargar ao resto do mundo algumas horas depois. Dentro do Puskás Arena, quando os adeptos de um lado e do outro começaram a entrar para as bancadas, depressa se percebeu que essa seria a tentativa de insulto mais usada por parte dos húngaros contra o adversário: “Cristiano Ronaldo, homossexual” foi ouvido insistentemente, tanto antes do apito inicial como ao longo da partida e principalmente nos últimos minutos do jogo, quando o avançado da Juventus marcou duas vezes e sentenciou a vitória portuguesa.
Todos os portugueses, sem exceção, saíram do Puskás Arena completamente lotado sem perceber o motivo e o objetivo da frase que os húngaros repetiram. Num jogo disputado de forma intensa e cujo ambiente quente começou ainda fora do relvado — a Seleção Nacional foi recebida com assobios e garrafas de água atiradas ao autocarro –, não existiram relatos de violência física entre adeptos dos dois países e os portugueses que estiveram em Budapeste a ver o jogo e com quem o Observador falou não assistiram a discussões mais graves ou episódios mais lamentáveis. As consequências que poderão sair do dia do encontro entre Portugal e Hungria, portanto, estão unicamente relacionadas com as frases dirigidas a Cristiano Ronaldo e com a presença de símbolos homofóbicos na bancada reservada aos adeptos húngaros.
Este domingo, a UEFA anunciou que abriu um inquérito para apurar “potenciais incidentes discriminatórios” nos dois jogos da Hungria na fase de grupos do Euro 2020 — ou seja, não só contra Portugal mas também contra França. Contra a Seleção, e de acordo com as declarações de um porta-voz da UEFA à AFP, o inquérito prende-se não só com os insultos dirigidos a Cristiano Ronaldo mas também com a existência de uma bandeira onde se lia “anti-LMBTQ”, a abreviação húngara para Lésbica, Gay, Bissexual, Transgénero e Queer. Já contra os franceses, a investigação da UEFA vai dedicar-se aos sons alusivos a macacos que se ouviram no Puskás Arena sempre que Mbappé tocou na bola e outros insultos de caráter racista dirigidos também a Benzema, que tem ascendência argelina.
De recordar que, em 2018 e no Mundial da Rússia, os adeptos do México foram acusados de algo semelhante — ainda que com outros contornos. Durante a competição, em que os mexicanos foram eliminados pelo Brasil nos oitavos de final, os adeptos do país gritaram e cantaram insistentemente a expressão “puto”, aparentemente inofensiva. Ora, no México, a palavra é equivalente à designação “paneleiro”, em português. Na altura, a FIFA abriu um processo disciplinar contra a Federação Mexicana de Futebol e declarou “abordagem com tolerância zero à discriminação”, decretando que os adeptos que utilizassem a expressão seriam de imediato expulsos dos estádios e garantindo aos árbitros autoridade total para interromperem as partidas caso ouvissem os ditos cânticos. A Federação mexicana, que já tinha sido multada pela FIFA em 12 ocasiões anteriores pelos mesmos motivos, acabou por fazer um comunicado oficial em que pedia aos adeptos que não usassem a palavra, enquanto que jogadores como Chicharito ou Andrés Guardado também deixaram mensagens semelhantes.
Na Hungria, porém, o episódio tem uma explicação adicional bastante relevante. Já durante este mês de junho, o Parlamento húngaro aprovou uma nova legislação que proíbe a “promoção” de conteúdos referentes a questões de orientação sexual, identidade ou expressão de género e características sexuais em contextos com pessoas menores de 18 anos. Ou seja, na prática, silenciou todo o discurso público ou privado sobre pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, intersexo ou com outras identidades não normativas. A nova lei foi de imediato comparada à conhecida lei russa “anti-propaganda LGBTI”, de 2013, que foi globalmente rejeitada e deu até origem ao reconhecimento de proteção internacional a pessoas LGBTI+ de nacionalidade russa em diversos países, incluindo em Portugal.
E por discurso, a Hungria inclui filmes, livros, séries, reportagens ou documentários: em breve, quando a nova legislação for colocada em prática, musicais como “Billy Elliot”, filmes como “Filadélfia” ou “Harry Potter” (considerado com promotor da homossexualidade) e séries como “Friends” vão ser interditos a menores no país. A decisão foi recebida com indignação um pouco por todo o mundo e principalmente na Europa, tendo em conta que se trata de um país que faz parte da União Europeia e que já anunciou que pretende adotar o euro como moeda oficial. Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, reagiu à nova lei húngara de forma pessoal e através do Twitter, algo que não costuma fazer. “Estou muito preocupada com a nova lei na Hungria. Estamos a analisar se quebra legislação relevante da União Europeia. Acredito numa Europa que abraça a diversidade, não numa Europa que a esconde das nossas crianças. Ninguém deveria ser discriminado com base na orientação sexual”, escreveu.
Hungria anti-LGBTI: ILGA Portugal apela a ação diplomática urgente junto do Governo
Lê o comunicado completo aqui: https://t.co/B7ofVVqyZG#ilgaportugal #direitoslgbti pic.twitter.com/a1xC3omNBz
— ILGA Portugal (@ilgaportugal) June 16, 2021
Em Portugal, a principal reação surgiu pela voz da ILGA, a mais antiga e relevante associação de intervenção LGBTI+ no país. Em comunicado oficial, o organismo pediu um “repúdio imediato” por parte dos líderes portugueses. Mais recentemente, a comunidade portuguesa criticou o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter estado ao lado de János Áder, o presidente húngaro — com quem viu o jogo entre as duas seleções, em Budapeste, já depois de ambos terem mantido uma reunião privada. “Estamos perante um ataque vil e abusivo, violador de Direitos Humanos e da dignidade das pessoas LGBTI+ e das suas famílias na Hungria, e contrário à Convenção Europeia de Direitos Humanos e à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e respetivas obrigações internacionais. Na reta final da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, em plena celebração do Mês do Orgulho LGBTI+, esperaríamos um repúdio imediato de quem assume a liderança e compromisso com os princípios e valores da União Europeia”, indicou a ILGA.
Entretanto, em Munique, a autarquia da cidade alemã solicitou à UEFA uma autorização para iluminar o Allianz Arena com as cores do arco-íris, a bandeira da comunidade LGBTI+, já durante o encontro entre a Alemanha e a Hungria na próxima quarta-feira. As autoridades de Munique pretendem assim condenar a nova lei húngara, assim como os comportamentos dos adeptos do país nos jogos contra Portugal e França, e deixar visível a posição da cidade face ao assunto.
Na Hungria, não é fácil falar com alguém sobre o assunto. Em Budapeste, o Observador contactou três associações que se dedicam à defesa dos direitos das pessoas LGBTI+ — a Háttér Society, a Hungarian LGBT Alliance e a Labrisz Lesbian Association — e só obteve respostas da primeira, uma das mais antigas do país, fundada já em 1995. A ideia geral é apenas uma: “O Parlamento não quer saber da opinião dos húngaros”. “Não querem saber. Apesar dos milhares de protestantes e de uma petição assinada por mais de 100 mil pessoas. Na Hungria, quase dois terços dos estudantes LGBTI+ já experienciaram abuso verbal devido à sua orientação sexual e mais de metade pela forma como expressam o próprio género. Agora, os membros do Parlamento que são pró-governo desiludiram estes estudantes. Tornaram impossíveis os programas de sensibilização ou as discussões públicas que promovem a aceitação. De acordo com um estudo de 2021, 59% dos húngaros acham que os casais homossexuais devem ter direito à adoção e 60% acham que os casais homossexuais são tão bons pais como os heterossexuais. É claro que esta lei de propaganda não tem qualquer apoio social. É uma tentativa forçada de criar e obter lucro através do medo e do ódio”, explica Luca Dudits, membro da direção da Háttér Society.
A nova lei foi aprovada no Parlamento húngaro no passado dia 15 de junho e, no dia anterior, milhares de pessoas juntaram-se em protesto. O esforço, porém, foi em vão. “Ainda que o governo esteja a tentar tornar as pessoas LGBTI+ nos inimigos públicos, estes últimos dias mostraram que os húngaros não estão a pedir ódio e provocação. Agora vamos concentrar-nos em usar todos os meios legais disponíveis para desafiar esta lei ofensiva e desumana, tanto aqui como internacionalmente”, acrescenta Dudits, que recorda ainda que este não é o primeiro desafio que a comunidade enfrenta no país nos últimos anos.
“Na primavera de 2020, tornaram impossível para as pessoas transgénero ou intersexo reconhecer legalmente o seu nome ou género. Em dezembro, foram acrescentadas alíneas à Lei Fundamental que estigmatizam as pessoas transgénero. Por fim, tornaram a adoção por casais homossexuais ainda mais difícil através de uma emenda ao Código Civil. Os grandes perdedores deste passo foram, mais uma vez, as crianças, porque terão de passar ainda mais tempo em instituições ao invés de encontrarem uma família que os possa amar o mais depressa possível”, termina.
Num país que está a ferro e fogo devido a uma nova lei, a UEFA acabou de anunciar um inquérito a insultos e símbolos homofóbicos durante um jogo do Euro 2020. Tal como sempre, torna-se quase impossível distinguir o futebol da sociedade, já que um acaba por espelhar o outro. No mau e no bom: se os adeptos húngaros decidiram insultar Cristiano Ronaldo desta forma, o guarda-redes alemão Manuel Neuer optou por utilizar uma braçadeira de capitão com a bandeira arco-íris contra França e contra Portugal. Em resposta, a UEFA explicou que não vai abrir qualquer investigação por eventual “posição política”, por se tratar de “uma boa causa”. E esta quarta-feira, quase de certeza, Neuer voltará a carregar um arco-íris no braço quando defrontar a Hungria.