É entre pequenos pedaços de cortiça ainda espalhados pelo chão, várias máquinas e um andaime com baldes de tinta branca, utilizados para pintar três imponentes figuras, que Pedro Cabrita Reis nos recebe. O artista português, de 65 anos, tem passado os últimos dias nas instalações da Corticeira Amorim, em Mozelos, Santa Maria da Feira, onde está a conceber uma obra que será também um marco no seu percurso: uma reinterpretação das “Três Graças”, inteiramente em cortiça, que estará exposta a partir de 13 de fevereiro no Jardim das Tulherias, em Paris, a convite do Museu do Louvre.
Ao fundo do armazém está a escultura feita em cortiça, com três peças autónomas (mas sempre juntas) de 4,50 metros de altura e cerca de 500 kg cada, apoiadas sobre uma base de ferro. Euphrosyne, Aglaea e Thalia são as três figuras femininas da antiguidade clássica, que contam com várias versões integradas na coleção do Louvre e que têm agora o olhar e interpretação de Cabrita. Com um interesse particular pela história da arte, Cabrita explica o fascínio pelas obras que têm atravessado e resistido a milhares de anos e desafia-se a também ele poder acrescentar mais um capítulo da história. Porque os artistas “refletem sempre no seu trabalho os estudos, as análises e as perceções que têm da obra de outros artistas, independentemente da época histórica a que possam pertencer”.
Expor a convite do Museu do Louvre é, para o artista de 65 anos, um desafio e a confirmação de um caminho que tem feito no mundo da arte, sobretudo a nível internacional. Mas Pedro Cabrita Reis garante que a sua forma de trabalho e a responsabilidade que sente como artista não mudaram pelo local onde vai expor as “Três Graças”. “Os artistas têm sempre a mesma pressão, seja no silêncio, na intimidade e na solidão do seu atelier seja em qualquer outro sítio do mundo. Pode ser um projeto numa pequena aldeia perdida numa serra em Trás-os-Montes como pode ser um outro projeto num jardim em Paris”, revela em entrevista ao Observador.
Pedro Cabrita Reis quis também levar Portugal a Paris e concebeu uma obra inteiramente em cortiça – por ser um produto nacional e sustentável. As três figuras femininas, compostas por vários fragmentos interrompidos por blocos de cortiça na sua forma original, estão pintadas de branco para que possam dialogar com as esculturas em mármore branco presentes no Jardim das Tulherias. Ainda assim, há uma parte da base que permanece com a cor original da cortiça, para que todos possam ver o material de que são feitas.
O convite para conceber uma obra que será exposta no Jardim das Tulherias surgiu no verão do ano passado e partiu da própria presidente do Museu do Louvre, Laurence des Cars, no âmbito da programação da Temporada Cruzada França-Portugal 2022. As “Três Graças” partem agora para Paris, para que seja iniciada a fase da montagem — outro processo complexo face à grande escala das esculturas. A inauguração está prevista para 13 de fevereiro e a obra ficará em exposição até meados de junho.
“O que me interessa mesmo é refletir sobre algo que chegou ao meu olhar, às minhas mãos e que eu transformo para deixar para o futuro”
Como surgiu o convite do Museu do Louvre para expor no Jardim das Tulherias, em Paris?
Este ano, de 13 de fevereiro a 31 de outubro, vai decorrer entre Portugal e França um projeto chamado “Temporada Cruzada”, que resulta de um convite dirigido pelo Presidente francês Emmanuel Macron ao primeiro-ministro António Costa, quando eles se cruzaram por razões de Estado em Paris, em 2018. Isso evoluiu e transformou-se nesta temporada França-Portugal, que é um projeto que prevê uma espécie de um intercâmbio, em que haverá criadores portugueses em França a mostrar a sua obra e em Portugal haverá um espelho disso, ou seja, virão criadores franceses ao nosso país.
O Louvre fez-me um convite direto para apresentar uma peça, neste caso no Jardim das Tulherias, e recebi esse convite com bastante prazer. O Louvre dispensa apresentações, é talvez O museu, com “O” maiúsculo. Expor no Louvre é uma circunstância que, por um lado, legitima e confirma a importância da minha trajetória e da minha carreira internacional e, ao mesmo tempo, é um desafio e é com certeza um momento particular no meu processo de trabalho.
É um marco na sua carreira?
É inegável que expor no contexto do Louvre, convidado pelo Louvre, é incontornável. Desde logo temos que partir do princípio que esse convite representa a confirmação de uma trajetória minha ao longo dos anos, com uma visibilidade internacional. Não é por acaso que o Louvre me dirigiu o convite. Está a ratificar um percurso de quase 40 anos de prática pública, primeiro em Portugal e mais tarde internacionalmente. É evidente que será sempre para mim um motivo de satisfação este tipo de reconhecimento. Não o posso negar.
Escolheu fazer uma reinterpretação das “Três Graças”, uma obra que conta com várias versões feitas por outros autores e que estão também integradas na coleção do Museu do Louvre. O que o motivou a escolher esta peça?
Enquanto artista, sempre tive um interesse particular pela história da arte, por peças que ao longo da história da arte se foram transformando em momentos icónicos dessa mesma história. Olhando para a antiguidade, para a modernidade e talvez até para a contemporaneidade, os artistas refletem sempre no seu trabalho os estudos, as análises e as perceções que têm da obra de outros artistas, independentemente da época histórica a que esses outros artistas possam pertencer.
As “Três Graças” são um tema recorrente na história da arte ocidental desde a Antiguidade Clássica, desde os tempos de Atenas, da cultura grega que nós conhecemos e que, de alguma forma, fundamenta a cultura europeia no seu cruzamento com a cultura romana e, mais tarde, a influência judaico-cristã transforma estas reminiscências da cultura latina e grega. É disso que se faz a cultura europeia ou, pelo menos, as bases da cultura europeia.
Um artista nunca pode estar alheado a esta circunstância. As “Três Graças” são três jovens, três irmãs, com milhares de anos e que atravessaram toda a história da arte europeia, desde a Antiguidade Clássica até aos nossos dias. Enquanto artista de hoje, vivo, a trabalhar, que me inscrevo na corrente de arte contemporânea, estou a trazer um olhar pessoal, particular, único e espero poder acrescentar com esta peça composta por três esculturas mais um passo a esse longo caminho das “Três Graças” através da história.
Que olhar é esse? O que espera que o público veja com este trabalho?
Enquanto autor, o que me interessa mesmo é refletir e trabalhar sobre um exemplo que se inscreve na História e que tem tido uma resistência conceptual, cultural e estética de significado ao longo do tempo que não desapareceu. O tema tem mais de mil anos de história e não desapareceu, volta no período modernista do século XX.
Vários autores, de uma forma direta ou indireta, voltam ao tema das “Três Graças”. O próprio Picasso também, embora nunca tenha chamado “Três Graças”, tem uma ou duas obras em que estão representadas três figuras femininas que claramente se percebe que são uma referência direta ao tema clássico das “Três Graças”. Essa é a parte mais importante para mim: enquanto artista, poder começar a olhar para uma peça que tem uma longevidade histórica muito particular e olhar para ela, refletir sobre ela e produzir uma continuidade. O que me interessa mesmo, mais do que outra coisa qualquer, é refletir sobre algo que chegou ao meu olhar, ao meu pensamento, às minhas mãos e que eu transformo para deixar para o futuro.
Toda esta obra é produzida em cortiça, um material com que nunca tinha trabalhado antes. O que é que o inspirou a realizar e conceber esta obra com este material?
Como esta iniciativa cultural era denominada de “Temporada Cruzada França-Portugal”, com um conjunto de criadores portugueses que levam a França os seus projetos, pareceu-me bem fazer uma escultura num material que é inegavelmente um material associado a Portugal. Além disso, é também um material para o qual devemos olhar com muita atenção, porque é um material natural, do ponto de vista ecológico, é um material absolutamente incontornável, que provém de uma cultura sustentável e é um material que ele próprio, em si mesmo, é um programa de atitude e de comportamento.
Os artistas são sempre pessoas que têm uma visão estruturada de responsabilidade política e ética em relação à sociedade em que se inserem e é natural que, para mim, este material me interessasse. Foi por isso que quis fazer estas esculturas com cortiça e que fiz a proposta à Corticeira Amorim, que desde o primeiro minuto e de uma forma bastante entusiasta e generosa acedeu e me acompanha desde o início deste projeto.
Estamos a falar de uma obra que, à semelhança do que já tem feito, é de grande escala. Que características decidiu aplicar nestas peças?
Sim, têm cerca de 4,50 metros, cada uma delas e estão numa base feita em aço corten. Sobre essa base levanta-se a escultura em cortiça e parte dessa escultura é pintada de branco. Foi uma decisão que tomei no sentido de criar uma espécie de ponte visual entre muitas das esculturas que estão no próprio Jardim das Tulherias e que são feitas em mármore branco. As peças pegam nessa cor das esculturas pré-existentes, que estão lá há séculos, e retomam essa lógica do branco, mas como um sinal, um cumprimento, uma saudação silenciosa, mas pictórica, plástica e estética em relação às outras peças que estão também no jardim, deixando na base uma boa parte da cortiça à mostra, para que se perceba que material foi utilizado para fazer estas obras de arte.
Foi um desafio mais complexo ter de usar a cortiça como material para estas peças?
Em princípio, acreditamos que os artistas têm sempre uma curiosidade infindável em relação a tudo o que está à sua volta e é dessa curiosidade que nasce a criação artística. Neste caso, a curiosidade não é apenas de índole filosófica ou cultural ou política, é também uma curiosidade em relação a materiais, técnicas, aspetos práticos construtivos e aspetos que se prendem com questões ou de ordem tecnológica ou de seleção de materiais. Eu, que nunca tinha utilizado cortiça, quando me pus a mim próprio esta decisão, esta vontade de fazer uma obra num material que é um material português, decidi que ia aprender a trabalhar com cortiça.
O facto de ter estado aqui na Corticeira Amorim ensinou-me bastantes coisas. Tive o apoio e acompanhamento permanente de peritos da Amorim e foi em profundo e estreito contacto com eles que fui construindo esta peça.
Tudo começou no seu atelier e veio parar aqui a estas instalações. Foi um processo muito longo?
Sim, desloquei-me à Amorim para executar in loco cada uma das peças. Foram dois dias de trabalho para a montagem das peças, mas a construção dos diversos fragmentos que a constituem demorou cerca de três semanas de trabalho em cortiça e dois ou três dias para a montagem. Vêm de uma outra unidade fabril, onde são feitas as partes que depois são montadas para dar a origem da escultura como a vemos.
E foi também um processo que passou por vários locais. Começou ainda no verão de 2021, quando recebi formalmente o convite do Louvre para essa operação. Houve a fase de conceção, desenho, de estudo, muitos comentários escritos. E depois começaram os esboços, as pequenas maquetes feitas em papel, em cartão, em pedra, em plasticina, em barro.
Estas maquetes foram sendo selecionadas à medida que se foi estreitando o campo da escolha para perceber para onde deveria ir e para onde é que não queria ir. Quando já tinha umas maquetes que correspondiam ao meu projeto mandei fazer outras maquetes maiores em cortiça, para começar a perceber a forma como a cortiça reage, como é que se trabalha com ela. Era um material que para mim era uma novidade. E depois dessas maquetes em cortiça, que eram muito próximas já deste resultado, reajustei o desenho, voltei a trabalhar um pouco sobre essas maquetes e quando cheguei à conclusão de que estava pronto para passar à fase definitiva, passamos para aí.
“Não há uma maior pressão por ser no Louvre que não haja já no atelier quando se está a trabalhar”
O facto de estar a expor a convite do Museu do Louvre criou alguma pressão adicional ao seu trabalho como artista?
Os artistas têm sempre a mesma pressão, seja no silêncio e na intimidade e na solidão do seu atelier, seja em qualquer sítio do mundo. Pode ser um projeto numa pequena aldeia perdida numa serra de Trás-os-Montes, pode ser um outro projeto num jardim em Paris.
A forma como os artistas olham para o seu trabalho é sempre a mesma e não sofre com o contexto exterior. Pode, evidentemente, olhar para o contexto e a obra ser construída para responder a esse contexto. Fazer uma obra para o interior do museu não é a mesma coisa que fazer uma obra para o jardim, onde as condições climatéricas são diferentes – mas é apenas nesse domínio, que é muito modesto e muito simples. Não é tema para preocupação de ordem estética ou conceptual, que vem alterar a forma como o artista olha e procede à realização daquilo que inventou, que sonhou e que quer realizar. Não há uma maior pressão por ser no Louvre que não haja já no atelier quando se está a trabalhar.
Partindo deste convite vindo diretamente do Museu do Louvre para um artista português, e contando já com a sua experiência de exposição em vários museus e galerias internacionais, de que forma é que a arte portuguesa é valorizada lá fora? Há alguma imagem do artista português?
O que os museus, historiadores de arte, críticos de arte, colecionadores e o público amante da arte e que visita exposições olham é para as obras. Não olham para o passaporte do artista. O passaporte do artista não tem qualquer importância. Se a tua obra tem as qualidades suficientes para interessar as pessoas num território muito vasto da arte, que vai desde os museus até ao simples apreciador que vai ao fim de semana com a família ver uma exposição numa galeria, o que as pessoas olham e querem experimentar é a relação com a criação artística, com o objeto. Se vem da Birmânia, da Mongólia, de Nova Iorque ou de Lisboa, isso é um dado que mais tarde pode ser que venham a estar interessadas. A nacionalidade não é um critério de interesse ou de apreciação para a criação artística ou para a divulgação da arte.
É um dado secundário?
Os artistas portugueses de hoje são jovens que estão a nascer e que estão a começar. Se a sua obra ganhar a massa crítica e a qualidade e a importância que ambicionam que ela venha a ter, tenho toda a certeza que, com uma facilidade muito maior do que artistas do meu tempo e outros ainda antes de mim, esses jovens artistas terão, pela qualidade da obra e não pelo facto de serem portugueses, a atenção que merecem.
E cá dentro, como olha para o estado da arte e da cultura em Portugal? Tem tido atenção e investimento suficiente?
O estado da arte que nos deve verdadeiramente interessar é o estado dos artistas. Temos uma geração de jovens fervilhantes, plenos de energia, que encontram todas as formas ao seu alcance – ou juntos ou separados, ou individualmente ou em coletivo. No que diz respeito às artes plásticas, sinto que há um ambiente de grande vibração e de energia criativa.
Há sempre razões para achar que os apoios, quer da área privada quer da área pública, deveriam ser sempre melhores. Isso é natural, é uma ambição que se tem. Mas não é pela circunstância de não terem os apoios que gostariam de ter que a energia dos artistas se reduz. Encontram formas alternativas, desenham formas de apresentar o seu trabalho que é, ao fim e ao cabo, o seu fim mais importante. Claro que há circunstâncias em que podem ou não ter o privilégio de auferir apoios financeiros ou logísticos ou de comunicação, que podem vir quer do universo privado quer do universo público. Quando isso acontece é sempre bom.
Considera que, por exemplo, seria necessário rever alguns aspetos do programa do ensino artístico em Portugal?
Apesar de ter sido estudante nas Belas Artes há muitos anos, tenho a certeza que a situação ter-se-á inevitavelmente, ao longo de 30/40 anos, transformado. Espero, e imagino, que se tenha transformado para melhor. Mas não tenho dados para o poder afirmar, nem é um mundo que tenha acompanhado.
Mas uma coisa é a criação artística, outra coisa é o ensino artístico. Não é necessariamente obrigatório que uma coisa tenha a ver com a outra, ou seja, não é uma escola perfeita que cria um artista perfeito. Os artistas são pessoas que trazem uma maneira particular de estar no mundo, de olhar e de transformar a sua perceção do mundo em obras de arte, que depois devolvem à comunidade, à sociedade.
As obras de arte vão no sentido de transformar a forma como essa sociedade, como o público se vê, não só a si próprio mas como vê o mundo à roda de si próprio. Um artista cuja obra possa não ser muito interessante ou não suscitar o interesse e a importância que outras obras suscitariam pode ter tido uma escola extraordinária que, pelo facto de as suas qualidades pessoais não serem as que se esperaria de um artista pleno. Ao contrário também é verdade: uma escola medíocre não é necessariamente responsável ao ponto de poder afetar a prática, a carreira, a vida e a obra de um artista que é bom.