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Os constrangimentos à atividade não são de agora. Tal como todos os espaços, o Cine Incrível, em Almada, teve muitas limitações à sua programação durante a pandemia.
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Os constrangimentos à atividade não são de agora. Tal como todos os espaços, o Cine Incrível, em Almada, teve muitas limitações à sua programação durante a pandemia.

Os constrangimentos à atividade não são de agora. Tal como todos os espaços, o Cine Incrível, em Almada, teve muitas limitações à sua programação durante a pandemia.

Qual o futuro do Cine Incrível e dos pequenos clubes e espaços culturais? “Nós também fazemos serviço público”, dizem

A sala de Almada foi obrigada a suspender a programação. Outras lutam contra a gentrificação e a pressão imobiliária. Como vivem as pequenas salas de espectáculos do país e que planos fazem?

São pequenos clubes, espaços culturais ou salas de espetáculo. Espalhados por todo o país, estão na linha da frente da programação musical, levando artistas portugueses e internacionais pelo território, apostando em novas bandas e contribuindo para a oferta cultural de cada cidade. Uns são associações, outros empresas privadas, e apesar de o seu papel ser fulcral no ecossistema musical, quase todos enfrentam desafios que ameaçam a sua atividade.

Foi na última semana de janeiro que foi anunciado que o Cine Incrível, espaço de concertos pertencente à Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, em Almada, terá de abandonar a programação de música ao vivo graças a uma decisão judicial, na sequência de uma queixa de ruído interposta por um conjunto de moradores vizinhos. Como a associação cultural que gere o espaço — a Alma Danada — resolveu recorrer da decisão, por enquanto vão poder manter os concertos, até haver uma conclusão definitiva.

“Foi um dos primeiros casos do género, por isso não tínhamos grandes expetativas sobre o que poderia acontecer”, explica ao Observador o presidente e um dos fundadores da associação Alma Danada, Jaime Quental. Foram eles quem, há uma dúzia de anos, restauraram aquela sala e passaram a explorá-la, promovendo uma programação musical regular e diversa na zona mais antiga de Almada.

Nascido e criado na cidade, Jaime Quental reconhece que a razão de queixa dos moradores até pode ser “justa”, mas defende que “também é justo que a Incrível Almadense tenha direito a exercer a função que sempre exerceu já há quase 200 anos, antes de o prédio onde moram aquelas pessoas sequer existir”.

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O edifício onde funciona o Cine Incrível foi inaugurado há mais de um século, em 1921. Ao longo dos anos, levou várias obras de insonorização, algo que o tribunal pede que seja novamente realizado para que o problema fique resolvido. A Incrível Almadense anunciou que, graças a um donativo de uma sócia benemérita, encomendou um estudo acústico a uma empresa especializada. Esse procedimento aconteceu na manhã desta sexta-feira, 1 de Março, com peritagens no Cine Incrível e nas habitações de alguns dos moradores queixosos.

A Incrível Almadense reuniu também com a presidente da autarquia, Inês de Medeiros, para sensibilizar a câmara para a situação, até porque o edifício está classificado como Imóvel de Interesse Municipal. Em declarações ao Observador, Inês de Medeiros explica que primeiro é necessário tirar conclusões do estudo para que seja possível averiguar a dimensão do investimento que será preciso fazer.

“Depois, podem-se candidatar aos fundos públicos que temos disponíveis para associações culturais e coletividades ou, se for um investimento mais avultado, fazer-nos algum outro pedido de apoio que possa ser discutido na câmara, como todos são”, explica a autarca. “A Incrível Almadense sabe que estamos disponíveis para ouvir e o trabalho que fazem é importante.”

O Bafo de Baco, em Faro, e o Barreirinha Bar, no Funchal

Jaime Quental acredita que a “solução” tem de passar por ambas as partes, “averiguar” o que é possível fazer no Cine Incrível mas também no prédio de residentes. “O nosso recurso também vem nesse sentido, porque achamos que é algo que não foi explorado e obviamente queremos manter a música ao vivo. Tem se arranjar uma relação que não prejudique nenhuma parte. Certamente que o fecho de uma delas não seria justo.”

De acordo com os registos da autarquia, terá sido a primeira queixa formal efetuada contra o Cine Incrível. “Houve uma vez uma tentativa por parte de um morador, anterior a isto, que se deslocou até nós, explicou a situação, na altura até fomos à casa da pessoa e tentámos encontrar um método para baixar o som. Depois disso, fizemos mais insonorizações. Desde então, parecia tudo bem, até porque somos todos vizinhos e as pessoas falam-se. E, do nada, surge esta queixa.”

Os constrangimentos à atividade não são de agora. Tal como todos os espaços, o Cine Incrível teve muitas limitações à sua programação durante a pandemia. “Nunca saímos muito dessa bolha de dificuldades, e quando finalmente pudemos abrir surgiu esta situação e rapidamente ficámos condenados, indeterminadamente, a estar apenas disponíveis para fazer concertos até às 23 horas, mediante a lei do ruído.”

Jaime Quental explica que isso provocou um decréscimo do público e que tiveram de se “reinventar” na hora de idealizar a programação. Por isso mesmo, têm apostado mais em matinés e começaram a promover espetáculos de comédia, já que o ruído é diminuto. Tiveram ainda de abdicar dos cartazes com várias bandas. “Tudo isto é fruto destas dificuldades. Temos encontrado estas soluções e metamorfoses.” Por enquanto, vão mantendo a programação nestes moldes e lançaram uma campanha digital de angariação de fundos para contribuir para os custos com o processo judicial.

De Beja a Viseu, os desafios que enfrentam os pequenos clubes e espaços culturais

A 170 quilómetros de distância, outro espaço cultural debate-se com um problema semelhante. Os Infantes, no centro histórico de Beja, será o único clube com programação regular de música original em todo o Baixo Alentejo. Todos os sábados recebem DJ sets, mas os problemas dão-se sobretudo quando se viram para a música eletrónica. “Temos sempre queixas à polícia e acaba-se a festa”, explica a responsável, Ana Ademar. “Desconfiamos que é por causa dos graves, que sobem pelas paredes, porque são casas antigas. Abriu recentemente aqui um alojamento local e essa é a questão. Espero não chegar ao ponto do Cine Incrível, mas o que se passa é um bocadinho o mesmo.”

Foi bar, discoteca e restaurante. Desde 2017 que funciona como espaço cultural, com uma sala para mais de 100 pessoas e um piso de cima que funciona como galeria. Atriz de formação, Ana Ademar organiza ali formações artísticas, exposições, promove os DJ sets e, sempre que pode, acolhe concertos. Mas não tem sido fácil.

“Viseu sofre muito de emigração e de migrações internas, as pessoas vão para outras cidades. Isso faz-nos perder equipa, público e artistas. Na altura do Natal, por exemplo, consegues perceber a quantidade de gente que é de cá mas não vive cá. São pessoas que poderiam ser o nosso público ou que poderiam colaborar connosco.”
Nuno Leocádio, Carmo81, Viseu

“A cidade é pequena, há pouco público e interesse. Trabalhamos para um nicho muito reduzido. A ideia era que o bar conseguisse suportar as despesas da programação cultural, mas tem sido muito difícil. Estamos no interior do país e fazer uma programação implica pagar deslocações, dormidas e alimentação a quem vem. Portanto, é sempre muito mais caro do que numa cidade como Lisboa, porque a maior parte da programação vem de Lisboa ou do Porto. Os custos estão muito elevados.”

Quando falamos destes clubes ou espaços culturais, cada caso é um caso. Não só cada local tem as suas próprias características, como as cidades onde funcionam têm dinâmicas muito distintas, públicos mais alargados ou reduzidos, apoios municipais ou a ausência de qualquer tipo de ajuda. Os modelos são diversos, mas a falta de reconhecimento e apoio está generalizada.

Em Viseu, o Carmo ‘81 mantém uma programação regular desde 2015. Foi nesse ano que sete amigos puseram mãos à obra e transformaram um edifício devoluto, onde outrora se fabricavam e vendiam alfaias agrícolas, num espaço de intervenção cultural. Funcionam como cooperativa e usaram o seu próprio dinheiro para fazer as obras e arrendar o espaço.

Divide-se em quatro salas: a primeira, onde acontecem quase todos os concertos, tem lotação para 120 pessoas. Têm outro espaço que funciona como bar de apoio, que também é loja e galeria; uma sala onde recebem ensaios, gravações, reuniões e workshops; e um pátio ao ar livre que tem uma obra de Bordalo II, que ali imortalizou um lince ibérico.

“Viseu tem um tecido cultural bastante fervilhante. Tem muitos grupos de teatro, uma excelente escola de música como o conservatório ou a Gira Sol Azul, que organiza o festival de jazz, o Teatro Viriato que presta um serviço incrível à comunidade; enfim, tem um ecossistema cultural rico. No entanto, não havia um espaço onde pudéssemos ver mais concertos ou outro tipo de concertos de forma regular”, explica o programador do Carmo ‘81 e um dos responsáveis pela cooperativa, Nuno Leocádio.

Recebem desde bandas de garagem locais a nomes consagrados da música portuguesa. Ao longo dos anos acolheram concertos de artistas como os Clã, The Legendary Tigerman, Capitão Fausto, Allen Halloween ou Linda Martini, entre tantos outros.

Quando se pensa nestes espaços e na forma como pode existir um equilíbrio entre apoios públicos e uma programação arrojada e independente, talvez o melhor exemplo seja o do Salão Brazil, em Coimbra

Tal como Os Infantes em Beja, dizem que programar no interior “acarreta sempre mais despesas do que no litoral”. Além disso, assumem o desafio que é manter uma equipa. “Viseu sofre muito de emigração e de migrações internas, as pessoas vão para outras cidades. Isso faz-nos perder equipa, público e artistas. Na altura do Natal, por exemplo, consegues perceber a quantidade de gente que é de cá mas não vive cá. São pessoas que poderiam ser o nosso público ou que poderiam colaborar connosco.”

Nuno Leocádio refere ainda que têm sentido a necessidade de “combater o conservadorismo que singra por Viseu”. “Quando fazemos, por exemplo, colaborações com a plataforma Já Marchavas, que organiza a Marcha LGBT em Viseu, é quando surgem as queixas de ruído e as mensagens de ódio.”

Como manter um espaço cultural destes na Madeira? O caso do Barreirinha Bar Café

Se dinamizar concertos no interior do país representa uma série de desafios, o que dizer da ilha da Madeira? É o que o Barreirinha Bar Café, no Funchal, tem vindo a fazer há mais de uma década. “Somos uma região ultra-periférica da Europa e de Portugal. Portanto, temos grandes dificuldades com tudo o que seja custos para trazer artistas — as viagens, a estadia, a alimentação, é completamente diferente”, conta Fábio Remesso, programador, produtor e um dos sócios da empresa, que também integra a equipa do festival madeirense Aleste. “Estar em Coimbra ou Braga, apesar de tudo, é completamente diferente de estar no Funchal. Embora tenhamos muitos turistas, somos um meio pequeno. A maior dificuldade é estar longe do centro, mas, pronto, vamos tentando fazer o nosso centro aqui.”

Aquilo que era um “snack bar comum” num largo com uma vista extraordinária transformou-se, aos poucos, num espaço cultural. “Sentimos a necessidade de acrescentar música ao quadro onde estamos, que é um espaço sobre o mar, com uma envolvência incrível, que tem um fim de tarde e um amanhecer extraordinário. Estamos ali para potenciar o próprio espaço que já é incrível por si só. E fazemo-lo com música, performances de teatro, exposições, residências artísticas ou workshops.”

A grande maioria dos concertos que programam acontecem no Largo do Socorro, onde têm a esplanada instalada, o que faz com que seja de acesso livre. Por terem uma programação regular — com diversos eventos em parceria com editoras, curadores ou artistas — acabaram por se tornar uma referência artística na ilha. Ao longo deste percurso, graças à rentabilidade do bar, conseguiram comprar o edifício onde estão. Por isso mesmo, têm uma estabilidade reforçada em relação a tantos outros espaços de cultura.

“Nem na revista municipal, que tem uma agenda de toda a atividade cultural, podemos lá pôr a nossa programação, por sermos privados. Isso é algo que não é compreensível. Se trazemos artistas que os espaços públicos até também trazem, qual é a diferença?"
Ulisses Dias, Bang Venue, Torres Vedras

“Obviamente, o bar tem de ser rentável para podermos investir na programação. Não medimos o impacto da nossa programação diariamente. Acreditamos naquilo que fazemos a longo prazo, ou seja, a programação não tem de se pagar a si própria diretamente. Se fosse assim, no início tínhamos logo desistido. Mas claro que é preciso ter por trás um negócio, um bar ou uma estrutura que vá seguindo o seu caminho e que vá sendo sustentável.”

No piso de cima, a que chamam o T1, acolhem performances mais intimistas e promovem mostras. Um dos últimos artistas a tocar ali foi B Fachada. “O que gostamos é de diversificar e dar oportunidade a projetos menos conhecidos. De vez em quando também temos nomes conhecidos, mas que não vão assim tão regularmente à Madeira. Acredito que deveria haver mais Barreirinhas por aqui.”

Recentralizar em Torres Vedras: o exemplo do Bang Venue

No distrito de Lisboa, o Bang Venue beneficia da localização de Torres Vedras. Fica fora da área metropolitana da capital, mas consegue atrair público da cidade e dos seus vastos arredores. De Mafra às Caldas da Rainha, muitos deslocam-se com alguma frequência ao clube para assistirem aos concertos.

Com oito anos de existência, o projeto nasceu quando Ulisses Dias — que tinha alguma experiência a programar concertos em Torres Vedras — encontrou um espaço municipal que estava disponível para arrendar. No piso de baixo construíram o Bang Venue, no de cima funciona a sua empresa de comunicação, a Slingshot, onde também se organiza o festival de cinema Bang Awards.

“Queria fazer uma sala que fosse confortável para os artistas, em que eles gostassem de estar e onde se sentissem bem. Uma sala humilde mas com as condições necessárias”, explica Ulisses Dias, sobre o espaço que tem capacidade para cerca de 350 pessoas. “O objetivo era meter esta sala no circuito nacional de novas bandas, bandas alternativas. Foi um objetivo que já conseguimos, agora andamos em busca da sustentabilidade financeira, do equilíbrio. Esse é o maior desafio.”

Apesar de terem uma programação constante, nem sempre conseguem atrair o público quando apostam em projetos emergentes. “Sentimos que as pessoas não têm muita abertura para o novo, para o desconhecido. Se nas férias resolvem isso com facilidade, na área cultural e artística já têm mais dificuldade em tomar essa decisão de ‘vamos lá ver o que é’. Já se começa a fazer esse caminho, existem aqueles grupinhos que vêm sempre e dão estabilidade à sala, mas a grande maioria das pessoas ainda não tem essa disponibilidade. É um trabalho que tem de ser feito não só por nós, mas também por quem pensa a oferta cultural pública. Sentimos que é uma falha da política cultural.”

O Bang Venue, em Torres Vedras, e o Carmo 81, em Viseu

Tal como quase todos os outros, debate-se com a dificuldade do posicionamento, da maneira como o público muitas vezes encara estes espaços. “As pessoas que não conhecem referem-se ao Bang Venue como um bar. Apesar de ter um bar, isto não é um bar. Se eu não precisasse de ter o bar, não tinha mesmo”, diz.

Nuno Leocádio, do Carmo ‘81, refere-se a estes clubes como grassroot venues, o termo cunhado lá fora para designar estes espaços de intervenção cultural com programações regulares independentes. Durante a pandemia, graças à necessidade de afirmarem o seu valor cultural e apelando ao Ministério da Cultura para que atendesse às suas necessidades específicas — uma vez que não são meros bares ou discotecas, conceitos que mexem com os preceitos de “alta ou baixa cultura” —, criaram a associação Circuito, que junta 23 salas de todo o país, embora existam outras que funcionem em moldes semelhantes. Em Lisboa, o B.leza, Musicbox, Lux Frágil, Damas, Lounge, RCA Club, Valsa, Village Underground, Casa Independente, Titanic Sur Mer e o Hot Clube de Portugal integram a associação. No Porto, é o caso do Maus Hábitos, Plano B, Ferro Bar e Passos Manuel. O Club de Vila Real, a Sociedade Harmonia Eborense, Os Infantes, o Carmo ‘81, o Bang Venue, o Barreirinha Bar Café e o Salão Brazil, em Coimbra, são outros dos associados.

Ulisses Dias, do Bang Venue, defende que o distanciamento entre as autarquias — que fazem programação cultural nos seus cineteatros — e estes clubes, que de certa forma também “prestam um serviço público”, não beneficia ninguém. “Nem na revista municipal, que tem uma agenda de toda a atividade cultural, podemos lá pôr a nossa programação, por sermos privados. Isso é algo que não é compreensível. Se trazemos artistas que os espaços públicos até também trazem, qual é a diferença? Deviam olhar para este tipo de equipamentos como tendo uma oferta cultural e tentarem que as coisas funcionem como um todo e não com enormes separações entre o que é público e o que é privado.”

Aponta que a cultura é muitas vezes instrumentalizada pelo poder autárquico como forma de garantir o apoio do eleitorado. Por isso mesmo, não ficaria bem dividir os louros com clubes privados. Além disso, refere que a missão de garantir o acesso à cultura por parte das estruturas públicas acaba por prejudicar o setor cultural. “Os nossos bilhetes variam entre os 10€ e os 20€, consoante o artista que cá vem. E na oferta pública são 5€. Isso é que torna as coisas mais difíceis porque, depois, para o público, tudo o que é mais de 5€ já custa. Os teatros municipais fazem um trabalho importante, mas são precisos espaços como o Bang Venue para se mostrar projetos novos e para as pessoas terem outra familiaridade com os artistas. Quando os Clã vieram cá, durante a pandemia, não tocavam num clube há 17 anos. E lembro-me de estar com eles no backstage e eles diziam uns para os outros: temos de fazer isto mais vezes. E depois foram fazer uma tour de clubes. É importante que as bandas também tenham esta proximidade com o seu público.”

Um reduto da música alternativa no Algarve

Aberto desde 1992, o Bafo de Baco, em Loulé, será uma das mais antigas salas do género a operar em Portugal — se não for mesmo a mais antiga, o que também diz muito da precariedade deste tipo de espaços. A ideia inicial, recorda o dono e programador, Horácio Costa, era ter um bar para bandas de covers, que tanto tocassem música de intervenção portuguesa como música popular brasileira.

“Só que, depois, Seattle apareceu em força e não houve alternativa”, ri-se. “Ainda não estava a começar a fazer aquilo em que tinha pensado quando abri o bar e já os objetivos se tornavam outros.” De repente, no Bafo de Baco desapareciam as mesas e cadeiras e o espaço tornava-se uma sala de concertos de culto, muito ligada ao rock, embora tenha acolhido concertos de outros géneros ao longo dos anos — é também um ponto importante no circuito do rap algarvio, por exemplo.

Nós não temos ajuda e muitas vezes fazemos mais do que aqueles que têm ajudas públicas. Muitas vezes, em vez de fazerem espetáculos com artistas que estão a criar, vão buscar bandas de covers ou de baile
Horácio Costa, Bafo de Baco, Faro

Numa das regiões do país mais afetas ao turismo, com uma atividade muito sazonal, Horácio Costa pretendeu sempre construir um espaço para o público local. Aliás, fazem muito mais concertos durante o inverno de forma propositada. “No Algarve há muitas casas, mas são para os turistas. Há bandas de covers a tocar os hits que os estrangeiros gostam de ouvir, para fazer festas e para estar tudo nos copos e a saltar. Como nós não trabalhamos para um público rotativo, é para um pessoal mais local e trabalhamos mais no inverno, o objetivo sempre foi ter bandas de originais. Já havia aqui muita malta ligada à música e tínhamos passado da fase em que até um disco era difícil de arranjar, quanto mais conseguir ouvir mesmo uma banda.”

O Bafo de Baco está umbilicalmente ligado a uma série de projetos artísticos locais que ali deram os primeiros passos. É o caso dos Devil in Me, de Sam Alone ou da génese de Mike Ghost, que integrou grupos como os Men Eater ou os More Than A Thousand. Pelo Bafo de Baco também passaram os já lendários Tédio Boys, que dariam origem a The Legendary Tigerman e a The Parkinsons, entre tantos outros; aliás, durante a pandemia, quando Paulo Furtado recebeu um apoio da Direção-Geral das Artes para fazer uma tour pelo país, escolheu o Bafo de Baco como um dos locais para a sua digressão, uma vez que desejava retribuir. Os Hybrid Theory, banda de tributo aos Linkin Park, que se tornaram num autêntico fenómeno internacional, tendo já atuado em nome próprio na Altice Arena, deram o seu primeiro concerto de sempre na sala de Loulé. E por lá passaram tantos outros, portugueses e internacionais.

Também Horácio Costa refere os crescentes aumentos dos custos para trazer ali artistas, desde as portagens e os combustíveis às estadias e alimentação. “Como é que uma casa que está a apoiar bandas que estão a aparecer e que precisam de mostrar o seu trabalho não tem qualquer apoio?”, questiona. Nunca se candidatou a fundos públicos, explica, alegando que seria praticamente impossível obter qualquer apoio por tratar-se de uma empresa privada. E aponta o dedo às associações e coletividades que recebem apoios, graças ao seu estatuto jurídico, mas que acabam por não desempenhar o papel que os clubes como o Bafo de Baco cumprem diariamente.

“Associações, motoclubes… Há muitos que são apoiados e muitas vezes quase nem fazem nada, nem funcionam como clubes nem como associações. Deixam entrar toda a gente, não é só para sócios, muitas vezes é mais um negócio de família. E os privados têm que pagar impostos, cada vez há menos e qualquer dia acabam por causa disso. Nós não temos ajuda e muitas vezes fazemos mais do que aqueles que têm ajudas públicas. Muitas vezes, em vez de fazerem espetáculos com artistas que estão a criar, vão buscar bandas de covers ou de baile… Nós, privados, é que deveríamos pensar nessas coisas para chamar mais gente e ter dinheiro; eles deveriam chamar bandas de originais para as divulgar, porque era serviço público. Mas acontece precisamente o contrário. Eles fazem o que dá dinheiro e nós é que lutamos para tentar ajudar as bandas e os artistas a terem um sítio para mostrar o seu trabalho original.”

Como transformar uma discoteca comum num espaço cultural

Do outro lado do país, em Braga, há outro caso distinto que se tem revelado um sucesso. Num espaço grande com três salas, o Lustre é uma discoteca que se tem afirmado cada vez mais como um espaço cultural multifuncional. Durante o dia, acolhem aulas de dança. E desde 2017 que têm concertos regulares programados por João Pereira, responsável pela agência musical Bazuuca. O contacto com o dono deste clube emblemático, que antes se chamava Populum, começou por João Pereira programar diversos concertos pela cidade, enquadrados na Braga Music Week.

“No ano seguinte, repetimos a dose, até que decidi fazer a Noite dos Reis da Bazuuca e foi a partir daí que ele falou comigo para ver se eu queria programar ali os concertos. Ele começou a ter procura porque começaram a ver aquilo como um espaço de concertos”, conta João Pereira. A sala tem capacidade para perto de 600 pessoas e tem acolhido artistas relativamente consagrados. “Têm de ser apostas que realmente tragam público, porque é muito complicado fazeres um evento e aparecerem apenas 80 pessoas ali. Num bar é fixe, mas ali… Basta-me cometer dois ou três deslizes seguidos, e não havendo retorno, acaba por haver prejuízo.”

Num espaço grande com três salas, o Lustre, em Braga, é uma discoteca que se tem afirmado cada vez mais como um espaço cultural multifuncional

Adriano Ferreira Borges

João Pereira conta que faltava em Braga um espaço de média dimensão com todas as condições que ali têm. “O Lustre aluga um PA e tem uma equipa técnica para operar tudo. Damos condições que quase não existem em mais lado nenhum do Norte. Neste momento, o Lustre já é um espaço cultural de referência aqui de Braga e onde as bandas querem passar, até porque não há assim tantos quanto isso.”

Embora nesta fase não consiga apostar tanto em artistas emergentes, a ideia passa por “trazer projetos novos a Braga, dá-los a conhecer à cidade”. O objetivo é que os concertos coexistam em simbiose com a discoteca tradicional, de várias pistas, mas nem sempre é fácil manter o público no espaço após o fim de um espetáculo. Ainda assim, têm conseguido atrair públicos distintos ao Lustre, de toda a região do Minho, e reposicioná-lo como o espaço cultural em que também se tornou. “É difícil para o Lustre ter uma identidade específica porque acontece muita coisa diferente ali dentro, mas na pista mais ligada à eletrónica também dão espaço aos coletivos artísticos da cidade, por exemplo.”

O exemplo simbiótico entre públicos e privados que é o Salão Brazil

Quando se pensa nestes espaços e na forma como pode existir um equilíbrio entre apoios públicos e uma programação arrojada e independente, talvez o melhor exemplo de todos seja o do Salão Brazil, em Coimbra. Edifício centenário no centro da cidade, já teve muitas vidas. Mas desde 2012 que é explorado pela associação cultural Jazz ao Centro Clube, que já existia há cerca de uma década e organizava o festival com o mesmo nome, além de ter fundado a revista Jazz.pt.

Foi nesse ano que arrendaram o espaço e, a partir daí, decidiram que iriam alargar a programação para que não ficassem circunscritos ao jazz. “Era absolutamente fundamental abrir o espaço e conseguir que ele funcionasse dessa forma bastante aberta, sem preconceitos em relação a abordagens ou estilos musicais, e que pudesse ser mais um ponto que permitisse a circulação de artistas”, explica o coordenador geral e diretor artístico da associação, José Miguel Pereira. “Sobretudo ligados à nova música portuguesa, até porque coincide com um período em que há muitos e bons projetos, e isso ainda reforçou mais a necessidade de espaços deste género. Queríamos garantir espaço a estes artistas, e também aos internacionais que estivessem de passagem pelo país.”

Antes do Salão Brazil, a Jazz ao Centro Clube enfrentou “dificuldades enormes” para manter a sua atividade. “Poderíamos ter desistido ao longo do caminho. A gestão era feita com uma navegação quase à vista.” Quando ficaram com o edifício, outros desafios apareceram. Apesar de “belíssimo”, tinha problemas constantes devido à sua antiguidade.

Hoje podemos dizer, sem sombra de dúvida, que haver ou não Salão Brazil faz uma diferença enorme em Coimbra. E acreditamos que o mesmo acontece em muitas outras cidades. A não existência deste tipo de espaços torna as cidades mais pobres.”
José Miguel Pereira, Salão Brazil, Coimbra

Porém, com o Salão Brazil aberto e com uma programação regular — numa sala que tem capacidade para 160 pessoas em pé —, a Jazz ao Centro Clube começou a candidatar-se a apoios públicos sustentados, como aqueles que a Direção-Geral das Artes atribui. “Foi super importante termos uma casa para termos a possibilidade de ter esses apoios. Isso mudou tudo. Nesse aspeto, somos privilegiados. Nem todos os espaços têm a possibilidade de terem um apoio sustentado, neste caso por parte do Ministério da Cultura e da Direção-Geral das Artes, que permite consolidar o projeto. E é o que temos feito ao longo da última década.”

O Salão Brazil é duplamente “privilegiado” pois, durante a pandemia, o dono do edifício resolveu colocá-lo à venda. Embora tenham sofrido com a incerteza daquele período — José Miguel Pereira diz que estiveram a “poucos dias” de serem despejados, algo ainda mais ingrato quando tinham sido eles a valorizar o edifício — acabaram por convencer a autarquia da importância daquele trabalho constante de programação cultural. Em 2021, a Câmara Municipal de Coimbra comprou o edifício do Salão Brazil, que continua a ser explorado pela Jazz ao Centro Clube, agora com uma revigorada estabilidade.

“A nossa história é um bocado diferente daquelas histórias infelizes, dos sítios que desapareceram, que não se puderam manter, sobretudo por causa de processos que são hoje muito comuns nas cidades, não só em Lisboa e no Porto, que têm a ver com alterações no centro histórico, a gentrificação. Uma série de processos que afastam associações e entidades deste género da possibilidade de ocuparem espaços desta natureza, sobretudo no centro histórico das cidades. Tivemos essa sorte. Temos noção desse privilégio que foi obtido através desse trabalho de sapa”, diz José Miguel Pereira.

“Era impossível não perceber que este espaço cumpria uma missão muito importante. Até por aquilo que contribui para a dinamização e revitalização dos centros históricos.

Embora tenha sido super complexa e difícil, é uma história que acabou por correr bem. É um exemplo de como as coisas podem correr bem. Gostávamos que este exemplo fosse disseminado e fosse assim em muitas outras cidades. Mas sabemos que, infelizmente, não o é. Num contexto como o nosso, a mera sobrevivência e continuidade da missão é uma vitória.”

José Miguel Pereira aponta ainda que estes espaços culturais “juntam muitos dos criadores, das pessoas que fazem ou querem fazer música”. “Querem estar próximas de espaços como este, e isso também tem um impacto. Há um suporte à atividade criativa de vários artistas, através de encomendas, de residências artísticas… Isso muda a face de uma cidade. Hoje podemos dizer, sem sombra de dúvida, que haver ou não Salão Brazil faz uma diferença enorme em Coimbra. E acreditamos que o mesmo acontece em muitas outras cidades. A não existência deste tipo de espaços torna as cidades mais pobres.”

Em Viseu, o Carmo ‘81 lamenta a falta de uma visão cultural do lado da autarquia. “A cidade passa neste momento por uma fase mais obscura da sua atividade cultural no que diz respeito ao município, quando este considera que o apoio à cultura é um esforço. Não pode ser visto como um esforço, mas como um investimento”, defende Nuno Leocádio.

O edifício onde funciona o Cine Incrível foi inaugurado há mais de um século, em 1921. Ao longo dos anos, levou várias obras de insonorização, algo que o tribunal pede que seja novamente realizado

Por enquanto mantêm uma atividade constante e até ambicionam, um dia, mudar-se para um espaço maior onde possam ter outras valências. “Queremos fazer mais criação cultural com agentes locais, fazer mais residências artísticas, ter mais e melhores condições. Em Viseu não existe um espaço para as bandas poderem ensaiar, muitas desaparecem antes de sequer existirem, por falta de sítio de criação. E acho que essa é uma responsabilidade que nós poderíamos assumir. Mas tem que haver uma profissionalização, um investimento maior e uma responsabilização política maior se for para manter um espaço como este numa cidade como Viseu.”

Em Beja, Os Infantes, que nunca recebeu qualquer apoio público, pretende intensificar as candidaturas a fundos culturais. “Não é um trabalho que um privado possa fazer sem apoios”, acredita Ana Ademar. “Queríamos trabalhar de forma independente, mas de facto aqui está mais do que provado que não é possível — pelo menos ainda. Então este ano estamos mais atentos a candidaturas e vamos tentar enveredar por essa área.”

Para José Miguel Pereira, a fragilidade destes espaços “impede um maior desenvolvimento da cena da música ao vivo”. “É óbvio que a edição discográfica é super importante, mas se não se puder apresentar os trabalhos ao vivo, a coisa fica a meio.” Embora o Salão Brazil possa servir de exemplo, os contextos locais são decisivos para que esta possa ser ou não uma solução noutras cidades. “Depende muito da visão que, por exemplo, os responsáveis autárquicos têm em relação ao que é a oferta cultural na sua cidade. Portanto, é muito distinto estarmos a falar de Évora ou de Viseu, Leiria ou Coimbra.”

Nuno Leocádio acredita que a associação Circuito pode ter mais responsabilidade no caminho das soluções. “Da mesma forma que existe a rede de cineteatros ou a rede de arte contemporânea, acho que o Circuito deveria conseguir valorizar-se o suficiente perante a próxima Direção-Geral das Artes e o próximo governo para poder ter este reconhecimento a nível nacional, porque isso seria bom para todos na área da música em Portugal. A arte contemporânea também não existiria se fosse na base do lucro, na base da bilheteira. Nós também fazemos serviço público.”

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