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Quando Marcello Caetano impediu António Champalimaud de engolir um terço da banca portuguesa

Para resolver o impasse no BPI, o Governo avançou com legislação que ajuda a superar o problema. No tempo de Marcello Caetano, também houve um decreto à medida. Serviu para travar Champalimaud.

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A adopção de legislação que impõe a extinção de limite ao exercício de direitos de voto nas assembleias-gerais dos bancos assentou como uma luva no “caso BPI”, ao dar uma ajuda preciosa para ser superado o impasse criado por divergências entre os accionistas CaixaBank e Isabel dos Santos. Mas a aprovação de um decreto de aplicação geral e universal, que estava na forja há dois anos, com Pedro Passos Coelho na liderança do executivo e Cavaco Silva na Presidência da República, destinado, prioritariamente, à solução de um problema concreto, não é uma situação inédita em Portugal.

No início dos anos 1970, durante o governo de Marcello Caetano, no curto período de dez dias foi criada legislação que tinha um alvo muito concreto. Sem que os intervenientes prestassem contas a ninguém, António Champalimaud fez um acordo com o fundador do Banco Português do Atlântico (BPA), Arthur Cupertino de Miranda, que lhe abria as portas ao controlo de uma fatia de leão do sistema financeiro português, através da fusão com o Banco Pinto & Sotto Mayor, que o industrial dominava. Nem a administração do banco foi informada sobre o negócio. Marcello Caetano não gostou. E decidiu desfazer a operação à força da lei.

O que se passou de grave para criar tamanho sobressalto?

Uma operação negociada nos melhores restaurantes e hotéis de Paris

Em janeiro de 1971, o governo liderado por Marcello Caetano impediu que António Champalimaud, que fugira para o México e que estava a ser julgado à revelia em Portugal, ficasse com as acções do BPA compradas ao seu maior accionista, Arthur Cupertino de Miranda. O advogado Francisco Salgado Zenha, que defendia António Champalimaud no “caso Sommer”, disse que era o “locupertinamento à custa alheia” e Adriano Moreira considera, nas suas memórias, que este decreto era uma pedra negra na vida jurídica portuguesa.

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Mas, para João Salgueiro, então subsecretário de Estado do Planeamento, naquele tempo uma manifestação de estudantes era mais preocupante para o governo e as pessoas do que um episódio protagonizado por capitalistas. A legislação adoptada visou apenas impedir uma excessiva concentração bancária, perante a possibilidade de um grupo privado passar a controlar cerca de um terço do sistema financeiro.

Em Fevereiro de 1970, Arthur Cupertino de Miranda discursava na assembleia-geral do BPA: “Visionamo-nos como um grande banco de depósitos, dotado do maior dinamismo na captação e emprego dos crescentes recursos do País, totalmente afeiçoados à expansão das actividades económicas nacionais sem discriminações de favor – dada a sua independência – para qualquer grupo, cada vez mais universal pelos serviços que presta”. Mas, pouco tempo depois, em Maio de 1970, estava em Paris a negociar a venda de uma participação no BPA a António Champalimaud. Nas negociações participaram Elmano de Sousa Costa, corretor da Bolsa, e João Rocha, administrador do BPA.

Elmano de Sousa Costa esteve com António Champalimaud em Paris nos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e, ainda, nos últimos dias de Novembro de 1970. Como contou, quando foi ouvido como testemunha no julgamento do “caso Sommer”, “as ligações para tais encontros eram previamente estabelecidas em Lisboa com o genro de nome Luís Pombal (Luís Daún e Lorena)”. Elmano de Sousa Costa dirigia-se a Paris, instalava-se no hotel Plaza Athénée, na avenue Montaigne, e depois esperava que António Champalimaud o contactasse para combinarem o local do encontro.

António Champalimaud. Quando fez o negócio com Cupertino de Miranda, estava "exilado" no México.

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Entre esses locais incluíram-se os restaurantes Trois Limousines, Tour d’Argent e La Sie, mas também os hotéis Bristol, Plaza, Intercontinental e Ritz, em Paris. Em quatro dessas deslocações à capital francesa, viajou acompanhado por Artur Cupertino de Miranda, um dos contratantes do negócio. Por sua vez, João Rocha encontrou-se por quatro vezes em Paris, no Hotel Lotti, com António Champalimaud.

Em 11 de Julho de 1970, foi celebrado, no Hotel Ritz parisiense, um contrato entre Artur Cupertino de Miranda e Elmano de Sousa Costa, em representação de Champalimaud, para a venda de 150 mil acções, correspondentes a 23% do capital do BPA, e ainda outro entre Elmano de Sousa Costa e António Champalimaud, o comprador da participação. O total de acções envolvido na operação era de 660 mil, depois de um aumento de capital do BPA, realizado em 30 de Abril de 1970, em que a Siderurgia Nacional, empresa de Champalimaud, tentou subscrever duas mil acções, mas só conseguiu alcançar 350, que foram vendidas em Setembro de 1973.

O mais insólito do negócio é que, por causa do julgamento da herança Sommer, António Champalimaud estava foragido e era julgado à revelia desde 1969 pela Justiça portuguesa, com mandados de captura na Interpol. Por este motivo, as negociações tiveram de ter as suas cautelas e os seus lados rocambolescos.

As manobras nos bastidores de António Champalimaud

Em Setembro de 1970, as empresas do grupo Champalimaud, como a Siderurgia Nacional e a Empreza de Cimentos Leiria, entre outras, que já eram clientes do BPA, começaram a fazer pedidos de empréstimos volumosos. A comissão de crédito da instituição financeira, liderada por Carlos da Câmara Pestana, considerou que tinham sido ultrapassados os limites de exposição no crédito ao grupo económico. Deu indicações aos gerentes que lidavam com as empresas do Grupo Champalimaud para as avisar que os empréstimos que ultrapassassem o limite seriam recusados.

Desde março de 1970 que o BPA deixara de ter um director geral no Porto, Carlos da Câmara Pestana, e em Lisboa, Vasco Vieira de Almeida, e passara a ter uma comissão executiva formada pelos antigos directores-gerais. Na distribuição de pelouros, Carlos da Câmara Pestana ficou com a comissão de crédito, responsável pela apreciação e autorização dos pedidos de financiamento, salvo nos casos que tinham de ir ao conselho de administração.

Dias depois, João Rocha, que era administrador não executivo do BPA, dirigiu-se a Carlos da Câmara Pestana questionando-o sobre os limites colocados aos empréstimos concedidos ao Grupo Champalimaud. O responsável pela comissão de crédito explicou que, apesar de ser um grupo muito forte, um banco tinha limites de exposição, de repartição e de dependência em relação a um cliente e propôs-lhe que se levasse o tema a conselho de administração. Na reunião seguinte do órgão máximo na gestão do BPA, encontros que tinham uma periodicidade semanal, presidido por Artur Cupertino de Miranda, os administradores manifestaram acordo sobre a decisão da comissão de crédito, que foi ratificada sem que o fundador do BPA tenha dito uma palavra.

Pelos finais de Outubro e princípios de Novembro, Arthur Cupertino de Miranda teve um encontro com António Champalimaud em que este lhe manifestou o desagrado pela medida de fixação de limites ao financiamento, o que não estava de acordo com a relação que estavam a construir. O banqueiro do BPA terá explicado que fora uma decisão da comissão de crédito e que tinha escrúpulos em passar por cima das regras estabelecidas. Por esta razão, não vetara a decisão.

“Mas não tem escrúpulos em tomar essa decisão depois de me ter vendido o banco?”, terá questionado António Champalimaud. Artur Cupertino de Miranda retorquiu que o acordo implicava que tivessem a mesma posição accionista e que ele continuasse a apoiar a gestão do banco. Nessa altura, o industrial terá revelado a lista de accionistas do BPA, a quem já teria comprado ou com quem já teria feito acordos de compra, o que lhe garantia o controlo do banco, com 42% do capital. Artur Cupertino de Miranda compreendeu, neste momento, que António Champalimaud não se limitara a ficar com uma participação no capital do banco igual à que ele próprio detinha.

Arthur Cupertino de Miranda, fundador do Banco Português do Atlântico, que foi forçado por Marcello Caetano a abandonar a presidência do banco.

António Champalimaud tinha adquirido 10% das acções de João Rocha, que já era accionista e administrador do banco desde 1966. Este foi, também, um dos testas de ferro utilizados para comprar acções do banco com dinheiro emprestado pelo Banco Pinto & Sotto Mayor, mas quando o negócio se desfez teve de pagar ao banco e a juros de mercado. Tal como Afonso Pinto de Magalhães, do Banco Pinto de Magalhães, que, segundo Belmiro de Azevedo, também “foi testa-de-ferro de António Champalimaud” nesta operação, acrescentando que, “anulado o negócio, queixava-se Pinto Magalhães, António Champalimaud ter-se-ia recusado a aceitar como suas as acções adquiridas por Pinto de Magalhães, dando lugar a prejuízos consideráveis para o banqueiro portuense”.

António Champalimaud fora adquirindo pacotes de acções a alguns dos restantes accionistas do BPA: as famílias Bordallo, Borges Vinagre, Vinhas, Sousa Lara, Lello, António Brandão Miranda, João Lacerda e Domingos Barreiro, que controlavam 27% da instituição e tinham um gentleman agreement, que quase ninguém respeitou.

Quando regressou a Portugal, Artur Cupertino de Miranda, sem dizer nada a ninguém, nem ao seu genro, João Meirelles, vice-presidente do BPA, começou a comprar acções do banco. Os administradores do BPA assistiam incrédulos à subida das cotações do título. Mas ninguém suspeitava de nada até porque as acções de Artur Cupertino de Miranda continuavam intactas, pois o que entregara a António Champalimaud, na assinatura do contrato, fora um documento de custódia dos títulos com endosso, nem sequer fora o título de custódia.

Emissários de Champalimaud anunciam compra do BPA

A 23 de dezembro de 1970, João Rocha entrou no gabinete de Carlos da Câmara Pestana e comunicou-lhe que, nesse momento, Luís Filipe Pinto Elyseu, gestor da confiança de António Champalimaud, estava na sala de Artur Cupertino de Miranda a anunciar-lhe que este deixava de representar os interesses de António Champalimaud no BPA porque estava a comprar acções, o que violava os princípios do acordo celebrado.

Nessa altura, João Rocha revelou que estava mandatado para convidar Carlos da Câmara Pestana para futuro vice-presidente do banco. Este recusou a oferta e disse que, no caso de António Champalimaud se tornar maioritário, abandonaria o banco. A administração do BPA integrava, então, além do presidente Arthur Cupertino de Miranda e do vice-presidente João Meireles, os gestores Afonso Patrício Gouveia, Alberto Saraiva e Sousa, António Brandão Miranda, Carlos Câmara Pestana, João Rocha, Mário Vieira de Miranda Monteiro e Vasco Vieira de Almeida.

Mais tarde, surgiu o mito das notas. Segundo a família de Cupertino de Miranda, o negócio foi conhecido quando se deu a “entrega de uma fortuna em notas no balcão da sede do Banco Português do Atlântico, no Porto. Os maços de dinheiro estavam arrumados em cintas do Banco Pinto & Sotto Mayor [BPSM] e o portador deu instruções para que a verba fosse depositada na conta de Cupertino de Miranda. (…) Os dois homens de negócios recorreram a esta forma para evitar dar nas vistas com um cheque de valor tão elevado com a assinatura de António Champalimaud”, como se conta em “Salazar e os Milionários”, de Pedro Jorge Castro.

Arthur Cupertino de Miranda convocou uma reunião extraordinária do conselho de administração do BPA e explicou o negócio. Considerava que António Champalimaud, por quem tinha apreço e admiração e a quem o banco apoiara em todos os negócios, o traíra.

Uma história de José Manuel Galvão Teles conta outra realidade porque, no início de Janeiro de 1970, foi portador de um cheque de 100 mil contos do BPSM que depositou na conta de Arthur Cupertino de Miranda no balcão da sede na praça de Dom João I, no Porto. Nessa altura, foram levantadas objecções e, como não lhe davam o comprovativo, José Manuel Galvão Teles chegou a pedir para que se chamasse a Polícia Judiciária porque queria apresentar queixa. A situação acabou por ser resolvida com a participação de Artur Santos Silva, então director do BPA, e do advogado do banco, Alberto de Oliveira Luís, casado com Agustina Bessa-Luís, que em 1973 escreveu a “História do BPA”. Pelo negócio, António Champalimaud dera um sinal de 300 mil contos e o pagamento do restante seria feito nos nove meses seguintes à oficialização do negócio, a um ritmo de cem mil contos por mês até perfazer os 1,2 milhões de contos.

Arthur Cupertino de Miranda convocou uma reunião extraordinária do conselho de administração, a que João Rocha já não compareceu, e explicou o negócio. Considerava que António Champalimaud, por quem tinha apreço e admiração e a quem o banco apoiara em todos os negócios, o traíra, pois o compromisso era o de ficarem com a mesma posição accionista. Referiu a sua consulta junto de Adelino da Palma Carlos com o objectivo de analisar o contrato, tendo a administração decidido falar com o advogado, que era, na época, uma das estrelas do direito português.

Este causídico recebeu-os durante a tarde do mesmo dia, referiu-lhes que o contrato tinha várias lacunas e que até poderia ser posta em causa a sua validade, porque, para a transacção dos valores mobiliários, era necessária a traditio, a entrega dos títulos. Havia dúvidas se o documento de custódia representava ou não os títulos, se era equivalente a um documento de transferência das acções. Adelino da Palma Carlos preveniu para a possibilidade de uma batalha jurídica que poderia durar muito tempo e ameaçaria paralisar a administração do BPA durante meses. Tanto mais que os contratos “estavam bem feitos, tirando umas pequenas ilegalidades”, recorda José Manuel Galvão Teles, que foi advogado de António Champalimaud.

Carlos da Câmara Pestana disse ao ministro das Finanças, João Dias Rosas: “senhor ministro, o conselho de administração não sabia de nada; o senhor soube a notícia hoje e nós ontem”.

À noite, a administração do BPA reuniu-se em casa de Arthur Cupertino de Miranda e Carlos da Câmara Pestana referiu que este cometera várias falhas, algumas delas gravíssimas. Não só não comunicara à administração que tinha assinado um acordo com António Champalimaud, como não informara o Governo, nem o Ministério das Finanças, nem o Banco de Portugal. Por isso, deveria preparar-se para sofrer alguma consequência. Arthur Cupertino de Miranda fez um telefonema a João Dias Rosas, ministro das Finanças, a quem pediu para receber a administração do banco no dia seguinte. O problema é que o dia seguinte era 24 de Dezembro e o Ministério estava fechado. Por isso, a audiência foi marcada para casa do ministro.

No dia seguinte, a administração do BPA foi recebida em casa de João Dias Rosas, em Lisboa, que não deixou de manifestar surpresa e admiração pelos acontecimentos. Carlos da Câmara Pestana disse ao ministro: “senhor ministro, o conselho de administração não sabia de nada; o senhor soube a notícia hoje e nós ontem”.

Carlos da Câmara Pestana assumiu, num depoimento feito em 1994 à revista “Exame”, que defendia que “o banco não podia ser instrumentalizado por um grupo industrial e devia manter-se independente em relação aos grupos económicos”, tendo os administradores, com excepção de um, que seria João Rocha, decidido evitar que o BPA caísse nas mãos de António Champalimaud, exilado no México e com mandados de captura. Além disso, Arthur Cupertino de Miranda ter-se-ia arrependido do negócio.

Uma manifestação de estudantes preocupava mais o regime

“Na época, uma manifestação de estudantes era mais preocupante do que esta questão entre capitalistas”, diz João Salgueiro, que na época integrava o governo de Marcello Caetano. O economista não tem ideia de o assunto ter sido especialmente debatido. Considerou-se que havia o risco de uma concentração excessiva no sector financeiro e prosseguiu-se a estratégia de Salazar de não deixar que o poder económico se impusesse ao poder político. No BPA, foi um choque porque, como se recorda Rui Vilar, subdirector da instituição, o banco que viera do Norte conseguira ultrapassar o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), o banco lisboeta por excelência, e chegar à liderança do mercado. Sublinha que o BPA tinha duas sedes, a social no Porto, e a central em Lisboa.

Viviam-se tempos de quebra nas economias ocidentais e fazia-se sentir, desde 1969, a pressão inflacionista. O fluxo de remessas de emigrantes crescia, os salários subiam, “não poucas vezes bastante desacompanhados de melhorias de produtividade”, como se escrevia no relatório e contas do BPA em 1971. A balança de pagamentos deixava de ser “altamente excedentária”, mas aumentou o investimento.

Uma bomba no julgamento do “caso Sommer”

O episódio de proibição do negócio que visava o controlo do BPA surgiu em pleno julgamento do “caso Sommer”, desencadeado pelos desentendimentos entre os irmãos Champalimaud em redor da herança e da gestão dos negócios da família. A acusação usou a tentativa de compra do banco, para, como diz José Freire Antunes na biografia autorizada de António Champalimaud, provar que este “seria tão poderoso e tão pérfido que até o Governo lhe travara o passo com o diploma 1/71”.

A 8 de Janeiro de 1971, Eridano de Abreu, advogado dos três irmãos Champalimaud, pediu a extradição de António Champalimaud, escrevendo no seu longo requerimento: “enquanto tudo isto sucede, o réu revel, gozando da mais ampla liberdade, oferecendo lautos banquetes no Maxime, como pode ser testemunhado por Elmano de Sousa Costa (…) e por João Anjos Rocha, vai fazendo os seus negócios, um deles do montante de 1 250 000 contos, por virtude do qual chegou a pagar a modesta quantia – para ele – de 300 mil, ficando de pagar o resto – o costume – ‘com o pêlo do mesmo cão’ e pagá-lo-ia se a tempo e horas lhe não fossem descobertas as manobras de que é useiro e vezeiro, como é do conhecimento, hoje de todo o País. Este julgamento será necessariamente abreviado, se o réu António for apanhado pela Polícia, uma vez que não é próprio do seu carácter prestar contas a ninguém e muito menos à Justiça”. Além disso, António Champalimaud recordava-se do pânico dos administradores do Banco Pinto & Sotto Mayor “devido às amplas represálias com que o Governo terá ameaçado o banco”.

A 19 de Junho de 1968, a PJ, sub-directoria de Lisboa, enviou uma carta ao director da PIDE pedindo que fosse “interditada a saída do País (continente) ao nacional A. de S. C., “administrador industrial”, “arguido no processo à margem indicado”.

A guerra na família Champalimaud tornou-se pública quando Carlos Champalimaud lançou, na assembleia-geral da Sommer & Cª, a 25 de Março de 1957, acusações a António Champalimaud como a de ser “desonesto”. Exigiu a fiscalização da Empreza de Cimentos de Leiria através da Sommer & Ca, de que seria o representante, a devolução das acções da 9ª emissão, subscritas por António Champalimaud utilizando direitos pertencentes à Sommer & Cª, e a devolução à Sommer & Cª de um prédio adquirido pela Empresa de Cimentos de Leiria.

Curiosamente, foi a primeira assembleia-geral “a que assistiram senhoras”. Era a luta pelo controlo do grupo. Em Março de 1959, os irmãos de António Champalimaud, Henrique, Carlos e Maria Ana, apresentaram na Polícia Judiciária uma queixa contra António Champalimaud. Em 15 de Junho de 1968, António Champalimaud foi acusado de se locupletar “com as acções mediante abuso de confiança nele depositada pelas tias, proprietárias das acções, que lhas tinham emprestado”. A 19 de Junho de 1968, a PJ, sub-directoria de Lisboa, enviou uma carta ao director da PIDE pedindo que fosse “interditada a saída do País (continente) ao nacional A. de S. C., “administrador industrial”, “arguido no processo à margem indicado”.

Em fuga, da Amareleja para o México

A 13 de Fevereiro de 1969, António Champalimaud foi conduzido para fora de Portugal numa avioneta pilotada pelo então genro, Luis Lino, a partir de uma herdade localizada na Amareleja. Rumo? Sevilha. No mesmo dia, seguiu para Madrid num voo da Iberia. A 16 de Fevereiro, partiu para o México, via Nova Iorque.

O julgamento do “caso Sommer” começou a 20 de Abril de 1970 no 1º Tribunal da Boa-Hora em Lisboa, e António Champalimaud era acusado de se ter apropriado de 9996 acções da Empreza de Cimentos de Leiria, no montante de 50 mil contos, que faziam parte da herança, e, ainda, de ter vendido 22 311 acções (ou 23 311) da Empreza de Cimentos de Leiria, que tinham sido adquiridas pela Transformal à Companhia de Cimentos de Moçambique.

Noutro processo, era julgado Henrique Champalimaud, que estava preso sem admissão de caução. Ofendido e assistente no anterior caso, era réu neste julgamento e, segundo o despacho de pronúncia, teria retirado, por várias vezes, da caixa da Transformal no período em que foi gerente, entre 26 de Dezembro de 1954 e 15 de Outubro de 1957, 8 205 526$10 que pertenciam à sociedade, tendo restituído 1 090 428$20.

O "caso da herança Sommer", como ficou conhecido, foi um dos mais longos processos julgados em tribunais portugueses, com 427 sessões de julgamento, entre 24 de Abril de 1970 e 16 de Julho de 1973 no 1º Juízo da Boa-Hora, em Lisboa.

Este irmão de António Champalimaud tinha como advogado Filinto Elíseo, que também era o representante da irmã, Maria Ana Champalimaud Jardim, e do cunhado, Vasco Jardim. A prima, Maria Helena Brazão de Sommer de Magalhães e Menezes Vilas Boas, tinha como advogado Lobo Vilela e, mais tarde, João Luís Marques dos Santos. Em 5 de Dezembro de 1970, conseguiu que o tribunal validasse a sua desistência na qualidade de assistente ofendida, pois confirmava a versão de António Champalimaud e não se sentia herdeira das acções do tio Henrique.

Eridiano Abreu era o causídico de Carlos Champalimaud, que também era réu, pois fora apenso um processo que decorria no 7º Juízo Correccional por injúrias a António Champalimaud e a Heliodoro Caldeira, advogado já falecido. Na terceira sessão, a 13 de Maio de 1970, a requerimento do Ministério Público, foi aplicada a Carlos Champalimaud uma disposição legal que amnistiava este tipo de crimes, pelo que passou a ser apenas ofendido e assistente no processo.

O “caso da herança Sommer”, como ficou conhecido, foi um dos mais longos processos julgados em tribunais portugueses, com 427 sessões de julgamento, entre 24 de Abril de 1970 e 16 de Julho de 1973 no 1º Juízo da Boa-Hora, em Lisboa. Em 1968, quando terminou a instrução especial, o processo da Transformal contava com 8oito volumes e 1850 folhas, o da 9ª emissão dez volumes e 3024 folhas e o da Herança Sommer, seis volumes e 1227 folhas. Em 15 de Maio de 1973, contava com 98 tomos, com mais de 20 mil folhas, ou seja, ultrapassava as 40 mil páginas.

O decreto Raquel e as paixões cruzadas

Ao fim da manhã de 24 de dezembro de 1970, Carlos da Câmara Pestana e Vasco Vieira de Almeida saíram juntos da audiência realizada em casa do ministro das Finanças, João Dias Rosas. No interior de um táxi, Vasco Vieira de Almeida disse que, se António Champalimaud entrasse no BPA, ele também se demitiria. No meio da conversa, decidiram que tinham de ir falar com Marcello Caetano, de quem tinham sido alunos e com quem mantiveram relações, sobretudo por questões de âmbito jurídico. Tinham percebido que Dias Rosas pouco iria fazer.

João Dias Rosas teria um affaire amoroso com Raquel Braga Serra, que fora casada com Mário Gentil Quina. Por sua vez, Arthur Cupertino de Miranda tinha um flirt com a mãe de Raquel. Na época, os rumores referiam que a medida governamental resultara de influências de Raquel junto do ministro. A lei passou a ser conhecia por “Decreto Raquel” e deu, também, origem ao Fado das Cem Mil, 20 quadras anónimas que circulavam por Lisboa e Porto:

Finanças e Economia, Economia e Finanças

Madame Serra não sabe, De tão raras contradanças

Que te aflige bichaninho, Tão generoso e tão meigo?

Não me digas que te foram, Roubar massas ao taleigo!

Pior que isso meu bem, Chama depressa a Raquel

Que eu estou quase a rebentar, Com este grande aranzel

Vendi as minhas acções, Ao sacana do António

Como foi que eu fiz isto, São tentações do Demónio…

Vem Raquel apressada, Das lides de concubina:

Estais à rasca, meus pombinhos, Vosso arrulhar desafina!

O meu Rosas é ministro, Só por mim ele quebra lanças

Isto está no seu pelouro:, Economia e Finanças

Mas nem o fado, nem a fama faziam justiça aos factos. João Dias Rosas, contou a José Freire Antunes, ainda tentou saber como se processara o negócio falando com Jorge Jardim, um dos homens de António Champalimaud. Mas este estava em Moçambique e não percebeu o que se passava.

“Jorge Jardim agiu neste caso como intermediário entre o Governo e Champalimaud. Dias Rosas queria saber como ocorrera a compra das acções por Champalimaud a Cupertino de Miranda e telefonou para o Dondo. Jorge Jardim deslocou-se a Lisboa, ficou a par do assunto, e voluntariou-se para ir ao México falar com Champalimaud. Veio de lá com a cópia de uma carta da qual ressaltava que Champalimaud estava de consciência tranquila: Cupertino de Miranda garantira-lhe por escrito que Dias Rosas daria o seu acordo à fusão” entre o BPSM e o BPA, conta José Freire Antunes na biografia de Jorge Jardim.

O papel de Marcello Caetano no “locupertinamento à custa alheia”

Carlos da Câmara Pestana e Vasco Vieira de Almeida dirigiram-se a casa de Marcello Caetano na rua Duarte Lobo, na capital portuguesa. Quando os recebeu, o presidente do Conselho já sabia dos pormenores do negócio. Reagiu, considerando que a fusão representava uma excessiva concentração bancária e não gostou que o negócio tivesse sido feito sem o seu conhecimento, tanto mais que superava o controlo sobre um terço do sistema bancário, ainda por cima em benefício de um empresário que estava a ser julgado à revelia nos tribunais portugueses.

Disseram-lhe que António Champalimaud já deveria controlar 41 a 42% do BPA e, portanto, o jogo estava terminado. Não havia muitas condições e o banco não se ia endividar numa luta de accionistas. Marcello Caetano instou-os a resistir, para salvaguarda do banco, que era independente em relação aos grupos económicos.

Durante a conversa, Marcello Caetano sublinhou que Arthur Cupertino de Miranda não poderia continuar como presidente do conselho de administração e que não poderia haver livres movimentações das acções do BPA. Nesta altura, já Carlos da Câmara Pestana sabia que António Champalimaud pressionava os accionistas Maria António Barreiro e António Brandão Miranda para que vendessem as acções que tinham em carteira. Mas estes investidores mantiveram-se fiéis à administração.

Marcello Caetano criou as condições legais para impedir a formação de um grupo financeiro que parecia demasiado poderoso

Gamma-Keystone via Getty Images

Dias depois, nascia a escapatória que permitiria reverter o negócio da venda das acções do BPA a António Champalimaud. Marcello Caetano conseguiu que o Governo elaborasse o decreto-lei 1/71 de 6 de Janeiro de 1971, da autoria do Ministério da Justiça, a que Francisco Salgado Zenha chamou decreto do “locupertinamento à custa alheia”, que, com efeitos retroactivos, criava condições para a reversão do negócio. Este decreto fez a manchete do “Diário de Lisboa” de 7 de janeiro de 1971, que o transcreveu na íntegra.

Propõe-se no preâmbulo do decreto que era “preocupação de legisladores, juristas e economistas a disciplina da transacção de lotes de acções de modo a assegurar um justo equilíbrio dos vários interesses em causa. Assim: os do accionista que encontra nas referidas transacções vantagens especiais; os dos outros accionistas que, reflexamente, ficam excluídos dessas vantagens; os da empresa, em si mesma, que sofre os impactes das lutas travadas entre os interessados no seu domínio; os da economia geral, que podem ser afectados das maneiras mais diversas, desde as perturbações introduzidas na concorrência normal entre empresas até à desconfiança do público, perante a radical transformação dos pressupostos tidos em conta por cada um ao escolher e efectuar os seus investimentos.

Tais problemas, que especificamente se centram na aquisição do domínio de empresas por elementos estranhos a elas, ganham em determinadas circunstâncias particular acuidade. Note-se, por exemplo, o grau de intensidade que assumem quando participam na operação, em qualquer qualidade, elementos da administração ou da fiscalização da empresa. Apresentam especial relevo nessa hipótese as regras de lealdade e de correcção pelas quais os administradores ou fiscalizadores devem guiar-se ao realizar, ou deixar de realizar, negócios sobre acções de sociedade por eles administrada (…).”

O decreto abrangeu os contratos que, "iniciados num período de tempo relativamente próximo, não tenham sido completamente executados nessa data”, de acordo com o texto legal publicado a 6 de Janeiro de 1971.

Operações do género daquelas que eram objecto do diploma só muito excepcionalmente eram instantâneas. Daí que a aplicação no tempo tome em conta essa circunstância, determinando-se que “abranja não só os contratos iniciados depois da sua entrada em vigor, mas também aqueles que, iniciados num período de tempo relativamente próximo, não tenham sido completamente executados nessa data” refere-se no Decreto-Lei nº 1/71 de 6 de Janeiro publicado no Diário do Governo, I série, nº 4 de 6 de Janeiro de 1971.

Nesta lei davam-se poderes aos conselhos de administração para consentir na venda de lotes de acções. No ponto 2 do artigo 8º dava-se a machadada em António Champalimaud: “os contratos celebrados nos doze meses anteriores à entrada em vigor deste diploma e que, na mesma data, ainda não hajam sido totalmente executados por ambas as partes, ficam sujeitos às disposições antecedentes; o consentimento nelas previsto deve ser pedido nos quinze dias anteriores à sua entrada em vigor, tendo a falta desse pedido dentro desse prazo os efeitos de recusa de consentimento”. O decreto foi redigido pelo ministro da Justiça, Mário Júlio Brito de Almeida Costa. Este professor de Direito da Universidade de Coimbra, catedrático desde 1962, fez a lei ainda que se tenha “sentido violentado” como referiu anos mais tarde.

Cupertino e as vantagens da fusão

Pela nova lei, Arthur Cupertino de Miranda teve de apresentar um pedido de consentimento para poder vender as 150 mil acções. Nesse documento, com data de 12 de janeiro de 1971, descreveu as vantagens que via na entrada de um forte grupo industrial “sem por em causa a tradicional política de independência seguida pelo banco”. O BPA beneficiaria “de uma corrente de negócios mais estável” e assumiria “uma presença mais relevante no sector industrial”. Por outro lado, seria a forma de Cupertino de Miranda financiar a criação de um banco de investimento “reduzindo o esforço do BPA neste projecto”.

Estas eram as razões aduzidas por Arthur Cupertino de Miranda para pedir o consentimento do conselho de administração e do conselho fiscal, órgãos a quem o novo decreto-lei confiou a defesa dos interesses das sociedades em transacções do género. Rui Vilar recorda-se de, durante a despedida da presidência do BPA a que foi obrigado por Marcello Caetano, Arthur Cupertino de Miranda ter defendido as vantagens desta associação e a necessidade de criar bancos fortes para o futuro Mercado Comum Europeu, o que equivalia à actual União Europeia.

A venda da participação no BPA poderia criar uma “maior dificuldade de o senhor Arthur Cupertino de Miranda” fazer a defesa da orientação da independência do banco e uma “possível sujeição a orientação diversa proveniente do comprador das acções". 

O conselho fiscal era presidido por José de Castro Côrte-Real, integrava António Albuquerque de Sousa Lara, António Joaquim Borges Fernandes Vinagre, Fernando Ildefonso Ferreira Bordallo e João Maria de Castro Lacerda, sendo suplentes António Roure Ferreira Roquette e Francisco Augusto da Silva Almeida. Depois de uma reunião realizada a 13 de janeiro de 1971, foi emitido um parecer. Referia que a venda das acções se inseria em “pelo menos um dos casos especiais de recusa de consentimento consignadas no art. 4 do citado Decreto Lei”, pois o preço que resultava do contrato excedia “em mais de dez por cento a cotação média das acções do BPA nos três meses anteriores”.

Adiantavam-se, ainda, razões como o facto de a venda da participação no BPA poder criar uma “maior dificuldade de o senhor Arthur Cupertino de Miranda” fazer a defesa da orientação da independência do banco e uma “possível sujeição a orientação diversa proveniente do comprador das acções”. Por outro lado, “os accionistas que investiram os seus capitais, com conhecimento da orientação seguida pelo banco”, deviam “legitimamente esperar que tal orientação” se mantivesse e, “da mesma forma, igual e legítima esperança” pertencia “a todos quantos procuram este banco no exercício das suas actividades”.

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As assinaturas dos administradores do BPA na resolução que impede o negócio entre António Champalimaud e Arthur Cupertino de Miranda.

O parecer do conselho fiscal acrescentava que o negócio poderia, a breve trecho, “provocar distorções não só no regime de concessões de crédito praticado pelo banco, como ainda na sua posição relativamente a instituições do mesmo género, em que a mesma pessoa” era interessada, em referência ao Banco Pinto & Sotto Mayor. O conselho de administração reuniu-se a 14 de janeiro de 1971 e, na sua resolução, com base no parecer do conselho fiscal, recusou a venda porque “a operação poria em sério risco a independência tradicional da política de crédito da instituição, sempre conformada no apoio que vem prestando às actividades económicas nacionais sem descriminação [sic] de favor para qualquer grupo”. Recusou, por unanimidade, a venda. Esta recusa do consentimento para a venda das acções foi confirmada por despacho do ministro das Finanças de 19 de Janeiro de 1971.

A guerra entre Champalimaud e Marcello Caetano

Carlos da Câmara Pestana referiu: “não foi uma protecção ao Cupertino de Miranda. O governo deixara claro que este não podia sair vitorioso e que tinha de deixar de ser o presidente do banco”. Em Janeiro de 1971, o fundador do BPA abandonou a presidência do banco, sendo substituído pelo seu genro, João Carlos Sobral Meireles, que estava no banco desde 1953 e que já ocupava a vice-presidência desde 1967. Outra exigência governamental era a de que as acções de Arthur Cupertino de Miranda fossem colocadas numa sociedade com António Brandão Miranda e Maria Antónia Barreiros, únicos accionistas que não foram no “canto da sereia” de Champalimaud e de João Rocha. Arthur Cupertino de Miranda só as poderia movimentar, apesar de maioritário, com o voto de um dos outros accionistas.

António Champalimaud ainda recebeu uma carta de Jorge Jardim, escrita em papel timbrado do Banco Pinto & Sotto Maior, e de que foi enviada cópia a Marcello Caetano, que mais não era do que um ralhete do então presidente do Conselho.

No meio deste tumulto, António Champalimaud ainda recebeu uma carta de Jorge Jardim, escrita em papel timbrado do Banco Pinto & Sotto Maior, e de que foi enviada cópia a Marcello Caetano, que mais não era do que um ralhete do então presidente do Conselho. Aliás, para António Champalimaud a situação era clara: “Caetano assumia que a medida fora tomada exclusivamente para me atingir. E ao reconhecê-lo confessava, automaticamente, a violência, bem como o erro que estava cometendo”.

A carta, datada de 28 de Janeiro de 1971, procurava resumir o conteúdo da conversa que havia tido lugar entre Marcello Caetano e Jorge Jardim dois dias antes:

“Foi da iniciativa do Doutor Marcello Caetano o encaminhamento da conversa para problemas que a Si se ligam. Sublinho que o fez em inteira abertura, afectuosa serenidade e deixando transparecer preocupação sincera. Como nota dominante terei podido recolher a afirmação do apreço pelas Suas qualidades empreendedoras, reconhecimento pela coragem dos investimentos e capacidade empresarial, afirmação de sentimentos – e mesmo amizade – pessoal por Si.

Neste ambiente pareceram-me transparentes os intuitos com que se referiu a acontecimentos recentes, envolvendo-o a Si, e me transmitiu recomendações que tenho o dever de lhe fazer chegar.

Na fase que têm vindo a atravessar os Seus problemas pessoais afigurava-se-lhe que o mais aconselhável, para o Seu interesse pessoal e para as vastas responsabilidades do grupo de empresas que Você ergueu, teria consistido na adopção de procedimento discreto e sereno que arredasse a possibilidade de se erguerem, em Seu torno, novas especulações e concitarem dispensáveis animosidades. (…)

De todo o modo o que não seria de esperar, e menos de recomendar, era que a Sua actuação atingisse extremos como aquele que se concretizou com a tentada operação com o Português do Atlântico.

Reconhecendo-se que a operação era lícita no momento em que foi iniciada e nada continha de condenável em si própria, o certo é que as suas consequências no envolvimento financeiro e político conduziam a que, em qualquer ensejo, ela não pudesse ser aceitável pelo Governo. E disso não deveria ter Você dúvidas perante o que já se verificara no passado.

A intervenção governamental teria, assim, sempre que ser levada a cabo para o impedir. E isso em quaisquer circunstâncias e sem qualquer relação com o estado dos Seus problemas pessoais.

Só se pode lamentar as eventuais implicações gravosas que para estes possam resultar da situação criada e numa altura em que todas as aparências públicas pareciam ser favoráveis quando ao desenrolar do julgamento. (…)

O facto de o senhor Cupertino de Miranda haver assumido o compromisso de esclarecer a situação junto do Ministro das Finanças, se a operação se concretizasse, certamente que alivia a Sua responsabilidade mas dela não o isenta por completo.”

Champalimaud suaviza atitude

António Champalimaud deu-se conta dos riscos que corria com esta operação e do conflito com Arthur Cupertino de Miranda, como se deduz de uma longa carta a Marcello Caetano. Datada de 11 de Abril de 1971, é composta por sete folhas em formato A4 escritas nas duas faces. O empresário começa por referir: “as condições de vida e de trabalho perfeitamente anormais impediram que, há mais tempo, agradecesse a expressão das referências e dos sentimentos pessoais” que Marcello Caetano manifestara junto de Jorge Jardim e que este transmitira em carta de 28 de Janeiro de 1970 em que lhe relatou a conversa tida com Marcello a propósito do caso Atlântico.

Que explicações dava António Champalimaud ao líder do Governo?

O empresário referia que avançara para o processo negocial com Cupertino de Miranda, “seguro que o Governo não veria nele uma atitude menos correcta da nossa parte e só as condições anormais em que se processa a minha vida e o meu trabalho impediram que dentro do apertado período dos prazos processuais de que dispúnhamos eu escrevesse previamente a V. Excia. (…) Contudo, notícias recentes dizem-me da desagradável situação política em que este processo do sr. Miranda me envolveu com consequências muito marcadas e prejudiciais sobre os interesses das Emprezas que personifico perante o Governo e igualmente sobre a forma como está decorrendo o julgamento a que estou submetido.

Assim e nunca tendo pretendido ofender, ou contrariar em questões graves, o Governo do meu País, atitude que nunca modificaria, por maioria de razão, quando é V. Excia o Presidente do Conselho, venho informar que seguem hoje ainda, no curtíssimo espaço de tempo que me resta antes da saída de um portador, que igualmente levará esta carta, indicações precisas no sentido de se procurar uma solução equitativa de acordo com o sr. Miranda que nos permita desistir do processo que lhe intentámos e que tanto, ao que julgo, contraria o Governo. Para o bom e rápido êxito do acordo, ouso esperar, na medida do possível, a colaboração do Governo, não vá ou pretenda o sr. Miranda entrincheirar-se, simplesmente, na posição de força que lhe confere o facto de o decreto-lei haver, por um lado, satisfeito os seus desígnios quanto a uma anulação do contrato que comigo assinou e por outro, não haver contemplado e acautelado a defesa de situações decorrentes que para mim eram importantes.”

Nesta altura, o que António Champalimaud queria era controlar os danos e fazer com que o negócio do BPA tivesse o menor impacto possível no julgamento do “caso Sommer”.

[Sinto] “o maior desgosto que o Governo tenha publicado o Decreto-Lei sem ter-se certificado, previamente, da minha concordância acerca de uma voluntária anulação do contrato com o Sr. Miranda. É verdade que o Engº Jorge Jardim não se encontrava em Lisboa, nem tão pouco conhecia a operação que, aliás, por conhecida imposição do Sr. Miranda mantinha-se confidencial; mas é igualmente certo que por carta recente eu havia informado os nomes dos nossos homens que sempre poderiam representar os nossos interesses, tendo entre eles indicado, certamente tanto quanto me recordo, os de Eduardo Furtado, para o Banco, do Amílcar Marques, para Siderurgia, do Pinto Elyseu para os cimentos, e o de meu genro Luis Daun e Lorena, etc.”

Além disso, “tanto quanto sei – e aqui, parece correr-se o risco de o meu conhecimento poder não concordar com o de V. Excia – nunca o Governo me transmitiu o seu desacordo (nem tão pouco a sua aprovação, é verdade) para o que respeitava o projecto de fusão entre o Atlântico e o Sotto Mayor, até porque uma vez ele exposto, por mim e pelo Sr. Miranda, ao Sr. Ministro das Finanças, não teve este último tempo sequer para se ocupar do assunto, dado que o sr. Miranda, com a desenvoltura costumeira, logo de seguida me deu o “dito por não dito” fazendo gorar publicamente o previsto projeto de fusão”. Adiantava ainda que “para além da carta que julgo V. Excia conhecer e pela qual o sr. Miranda chamava a si a responsabilidade de informar o Governo acerca da transacção das 150.000 acções, ainda ele, para bem me assegurar do cumprimento desta obrigação moral, me disse por 3 vezes, nos hotéis, de Paris, Bristol, Plaza e Intercontinental, que viajavam com ele e ali estavam também hospedadas, pessoas cuja identidade era só por si garantia da sua capacidade para, sem mais intervenções, resolver e esclarecer os problemas com o Governo.

Pelo exposto, julgo legítimo convencer-me que não me cabem responsabilidades graves na publicação do decreto-lei; mas já o mesmo não sucede quanto às suas consequências que se concentram em pleno na condução do julgamento a que estou submetido, domínio, portanto, fora dos objectivos que o decreto lei procurava visar.”

Depois, António Champalimaud entrava no assunto que mais o preocupava:

“Entrego ao velho conhecimento que V. Excia tem de mim e também, seja-me permitido, daquele mínimo orgulho que comigo nasceu, que não vou pedir a interferência do Governo no sentido de influir na minha absolvição. Mas problema completamente distinto é eu chamar a atenção de V. Excia para os efeitos políticos da publicação do Decreto-Lei sobre o Corregedor, deformado como se sabe por um prolongado exercício de julgador no Tribunal Plenário”.

Depois de historiar várias peripécias e algumas entorses processuais, acabava a carta:

“Mas, então, o que ouso eu esperar do Governo? Simplesmente e se tanto for legítimo, relativamente a um cidadão que se preza conscientemente de haver prestado assinalados serviços à sua Pátria, que o Governo de V. Excia esclareça, na medida do possível, que, não obstante, a prática por ordem do Executivo de todos os actos de excepção anteriormente referidos, bem como a publicação do decreto-lei Atlântico, isso não significa que exista interesse político na minha condenação”.

A especulação bolsista salva Cupertino de Miranda

Arthur Cupertino de Miranda estava em maus lençóis. Assim que pressentira a perda de controlo do banco, usara os pagamentos de António Champalimaud, como os 300 mil contos de sinal, para comprar acções do BPA a preços especulativos. Tinha nas mãos acções cuja cotação caíra, o BPA não lhe podia fazer qualquer adiantamento e Manuel Espírito Santo e Manuel Queiróz Pereira, do BESCL, e Correia de Oliveira, do Fonsecas & Burnay, recusaram qualquer empréstimo.

Porém, António Champalimaud salvou-o sem querer, pois processou-o por ruptura injustificada de contrato tendo sido arroladas 65 mil acções em consequência do processo. Como referia a notícia de 4 de Março de 1971, que o Exame Prévio, o nome dado à Censura por Marcello Caetano, cortou: “possível processo posto por António Champalimaud contra Cupertino de Miranda (1 milhão e 200 mil contos)”.

De facto, António Champalimaud decidiu processar Arthur Cupertino de Miranda tendo comunicado a José Manuel Galvão Telles e a João Morais Leitão, advogado e então gestor da seguradora Mundial, do Grupo Champalimaud, que o advogado seria Alfredo Pimenta. No entanto, os dois acabaram por se desentender na estratégia e a acção foi conduzida pelos dois jovens advogados. “Fomos para um escritório que o João Morais Leitão tinha com o Francisco Pinto Balsemão, junto ao escritório do André Gonçalves Pereira, e estivemos dois dias e duas noites a preparar a acção”, recorda José Manuel Galvão Telles. Nunca mais se esqueceu porque, nessa altura, faleceu a sua amiga Natália Duarte Silva, a primeira mulher de Nuno Teotónio Pereira, e mal teve tempo para enxugar as lágrimas.

Isto permitiu que Arthur Cupertino de Miranda ganhasse tempo. A primeira audiência preparatória realizou-se a 16 de Julho de 1971 e houve um compromisso de se chegar a um acordo. Foi marcada nova sessão para 3 de Novembro, tendo havido um contacto entre advogados a 29 de Outubro de 1971. No dia seguinte, o advogado de Arthur Cupertino de Miranda comunicou aos causídicos de António Champalimaud a disposição de colocar um ponto final “ao processo na base da restituição da parte do preço recebida acrescida de um juro ‘equilibrado’”.

António Champalimaud temia que, ao passar uma procuração no México, as autoridades portuguesas desencadeassem um processo de extradição que, mesmo que não levasse a nada, poderia fazer com que ficasse detido por algum tempo.

A 23 de Dezembro de 1971, surgiu em cena Jorge de Brito, com carta branca de António Champalimaud para terminar com o caso, propondo “bases que, quanto ao fundo, me pareceram de aceitar”, segundo escreveu Arthur Cupertino de Miranda, ao mesmo tempo que mostrava interesse em que o assunto se sanasse rapidamente. Assim, a 29 de Dezembro de 1971, no gabinete de Jorge de Brito, na Casa Augustine Reis, em Lisboa, “assentou-se a substância do acordo, ficando os advogados de se debruçarem sobre as questões de direito”.

A 10 de Janeiro de 1972, o diário “A República” anunciava o acordo entre os dois empresários, mas o problema, segundo Arthur Cupertino de Miranda, era que se aguardava por uma “procuração de António Champalimaud”. Mas não era só isto que preocupava o fundador do BPA. Havia, também, o “risco de ficar imobilizada e improdutiva durante um período de tempo indeterminado a volumosa quantia que eu teria de restituir e entregar ao Snr. Champalimaud”. Por outro lado, Jorge de Brito andava a comprar acções do Banco Português do Atlântico, do Banco Comercial de Angola e do Banco do Algarve, indícios de se poder “tentar alguma manobra no plano das assembleias gerais”, já que havia acções arroladas e, portanto, imobilizadas.

António Champalimaud temia que, ao passar uma procuração no México, as autoridades portuguesas desencadeassem um processo de extradição que, mesmo que não levasse a nada, poderia fazer com que ficasse detido por algum tempo. Como disseram os advogados a Arthur Cupertino de Miranda, António Champalimaud sofria “como que de uma inibição ‘psíquica’, quase ‘mórbida’, frente a qualquer risco, ainda que remoto, de ser preso. Teria ficado traumatizado por em determinada emergência quase ter sido detido em determinado país da Europa”.

Uma carta de Luis Daun e Lorena, genro de António Champalimaud, com data de 12 de Fevereiro de 1972, mostrava as dificuldades em chegar a acordo com Arthur Cupertino de Miranda. Referia Daun e Lorena:

“Ainda em 1971 procurei o Vosso filho João para avaliar das possibilidades de vir a ser de novo recebido por Vossa Excelência e, pessoalmente, anunciar o acordo entre meu sogro sr. António Champalimaud e o Sr. Artur C. Miranda. Pela cópia que junto duma carta enviada nesta data ao sr Miranda poderá Vossa Excelência constatar das dificuldades com que lutamos para que se consiga firmar o acordo e por termo ao processo. Tudo nos leva a crer que aquele sr. não se encontra mais na disposição de o fazer”.

Na carta a Cupertino de Miranda referia-se o facto de este só aceitar uma procuração com poderes especiais referidos ao próprio processo e propunha-se, em último caso, que António Champalimaud cedesse a um terceiro os direitos emergentes do contrato o que permitia ao cessionário intervir directamente no termo da transacção. Mas esta seria muito mais onerosa.

A primeira tentativa de venda do Banco Português do Atlântico ao Banco Pinto & Sotto Mayor deu-se em 1964. Segundo António Champalimaud, a aproximação de Arthur Cupertino de Miranda ter-se-ia dado com a inauguração da expansão da cimenteira no Dondo em Moçambique em 1964.

O processo deu-lhe o tempo suficiente para que as acções do BPA subissem e para Arthur Cupertino devolver, por volta de Março ou Abril de 1972, o dinheiro recebido, acrescido de juros. Para se ter uma ideia do movimento especulativo na Bolsa de Lisboa, o índice (a base era a média do quarto trimestre de 1969 igual a 100) passou de 1124 em 1968 para 74733,8 em 1973, ou seja, 66 vezes mais.

Segundo um texto de Augusto Mateus, até 1971 a evolução das cotações teve uma evolução próxima da taxa crescimento e da desvalorização da moeda que foi de 15% mas com alguns casos pontuais de crescimentos especulativos. Mas os anos de 1972 e 1973 foram de “especulação sem limites” com sectores a “evidenciarem valores sem paralelo na suas cotações, com uma taxa de crescimento anual de 52%, de 90% para os transportes, 76% para os bancos e 100% para os seguros”.

João Rocha, quando o negócio se desmoronou, entrou em litígio com Arthur Cupertino de Miranda e o BPA, que só seria resolvido em Março de 1974: “a sua posição no BPA passou de 10% para 4%, e como contrapartida fica com 76% do Banco do Algarve”, refere-se num perfil deste empresário publicado na Exame de Julho de 1993.

Curiosamente, a primeira tentativa de venda do Banco Português do Atlântico ao Banco Pinto & Sotto Mayor deu-se em 1964. Segundo António Champalimaud, a aproximação de Arthur Cupertino de Miranda ter-se-ia dado com a inauguração da expansão da cimenteira no Dondo em Moçambique em 1964, onde, como diz, esteve a “fina-flor da elite”.

Um dos convidados foi Manuel Espírito Santo, presidente do BESCL, e que era, segundo António Champalimaud, para Cupertino de Miranda, “uma espécie de supra-sumo da esfera social onde se sentia deslocado e queria conquistar”. A dada altura, o banqueiro originário do Porto, ter-lhe-á dito: “António, temos de dar umas festas assim em Lisboa. Você convida-me para sua casa, leva lá o Manuel Espírito Santo, e eu depois convido-os a ele e a si para uma festa em minha casa”.

Depois, a conversa desviou-se para os negócios e Arthur Cupertino de Miranda segredou-lhe: “António, já reparou a força que teríamos se juntássemos o Sotto Mayor ao BPA?”. A hipótese de unir os dois bancos agradava a Champalimaud, sobretudo porque o BPA tinha a vantagem de operar no Brasil com o apoio do Unibanco, de Walter Moreira Salles. Nesta altura, foi divulgada a notícia da provável fusão entre os bancos de Cupertino e de Champalimaud, o que fez ruir o negócio. Fora um primeiro ensaio e mostrava, desde logo, as dificuldades em fazer uma fusão de dois grandes bancos num regime que não gostava de surpresas.

Bibliografia

Consulta Diário do Governo, Diário da República, Diário de Lisboa, Arquivo Marcello Caetano, relatórios e contas do BPA e BPSM, entrevistas pessoais ou telefónicas com João Salgueiro, Daniel Proença de Carvalho, José Manuel Galvão Telles, Rui Vilar, Tiago Violas Ferreira, Carlos da Câmara Pestana.

Filipe S. Fernandes e Isabel Canha, “António Champalimaud- Construtor de Impérios”, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2011

José Freire Antunes (Org.), “Cartas Particulares a Marcello Caetano, 2º volume”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985

José Freire Antunes, “Jorge Jardim, Agente Secreto”, Bertrand Editora, 1996

José Freire Antunes, “Champalimaud”, Temas & Debates, Lisboa, 1997

Dora Ribeiro, “O Banqueiro que Travou Champalimaud”, Exame, Setembro de 1994

Magalhães Pinto, “Belmiro-História de Uma Vida2, Âncora Editores, Lisboa, 2001

Pedro Jorge Castro, “Salazar e os Milionários”, Quetzal, Lisboa, 2009

Adriano Moreira, “A Espuma do Tempo- Memórias do Tempo de Vésperas”, Almedina, Coimbra, 2009

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