Como acontece em quase todas as revoltas, a que estalou no Porto em 1820 também implicou uma enorme quantidade de ambições e expectativas diferentes. Dos militares que, mais do que qualquer outra coisa, exigiam o pagamento dos seus soldos e a recuperação dos cargos de chefia no exército, a pedreiros-livres, passe o pleonasmo, verdadeiramente empedernidos, a gama de feitios e correntes ideológicas é grande.

Desde os primeiros anos da nova configuração política, aliás, é possível ver entre vintistas, moderados e miguelistas aquela que será a grande divisão política do século XIX.

A insurreição do Porto inaugurou um novo tempo, fértil em revoltas e alianças improváveis, bodo ideal para protagonistas ambiciosos que usariam e abusariam da instabilidade para promoverem as suas ideias à força. Aqui daremos conta de alguns dos primeiros intervenientes.

Ribeiro dos Santos

© Grafismo Ana Martingo

Se é verdade que a Revolta do Porto deve muito à Revolução francesa e outro tanto ao golpe de Cádiz, que instaurou o liberalismo em Espanha, a verdade é que também colheu alguma aceitação por causa do terreno já semeado por alguns dos intelectuais do tempo de Pombal e de D. Maria I. A retórica liberal da luta contra o obscurantismo já vem de Teodoro de Almeida, o apreço pela instrução, ainda que numa perspetiva ingénua e algo tosca, já tivera em Verney um apóstolo e a Constituição encontrara em Ribeiro dos Santos um tímido defensor.

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Ribeiro dos Santos foi um juiz e uma importante figura intelectual do fim do século XVIII, com uma obra intelectual bastante curiosa. Não só se interessou pela cultura hebraica, como foi responsável pela fundação da Biblioteca Nacional. Se os estudos o aproximaram da vaga de Oratorianos que trouxe para Portugal o pensamento iluminista e a identificar a Inquisição e o fanatismo como as principais causas do atraso Português, também é verdade que esses mesmos estudos o afastaram um pouco dos teóricos do absolutismo secular e esclarecido. Poucas figuras fazem tão bem a ponte entre o absolutismo e o liberalismo, ambos alicerçados nas doutrinas de Rousseau e Voltaire, no contrato social e na ideia da soberania como representação de um povo, já não como o cumprimento de um Bem ou de uma verdade superiores a esse mesmo povo. A proposta constitucional de Ribeiro dos Santos nunca foi ouvida; era uma engenhosa solução, que não chegou a ter grande acolhimento; no entanto, foi pela sua pena que o constitucionalismo teve a primeira tentativa de se impor em Portugal.

Gomes Freire de Andrade

© Grafismo Ana Martingo

O prestígio militar de Gomes Freire, um dos grandes heróis da Guerra Peninsular, tornou-o o comandante óbvio da primeira conspiração liberal, de 1817, que viria a ser descoberta e levaria à execução dos conspiradores. Gomes Freire ficou, assim, como uma das grandes figuras de culto no imaginário liberal, um “mártir da pátria”, que de certa maneira facilitou a identificação entre o liberalismo e a resistência aos ingleses e ajudou a ilustrar o governo de Beresford como uma tirania bárbara.

O estatuto de Gomes Freire era tal que, aquando da revolta de Lisboa, foi nomeado Presidente da Junta Provisional de Lisboa José Gomes Freire de Andrade, deão da Sé de Lisboa. Este, no entanto, foi perdendo importância política com o decorrer do tempo.

Dom João VI

© Grafismo Ana Martingo

É por todos conhecida a atribulada vida de Dom João VI, o rei entalado entre o Antigo Regime e um novo tempo que via as monarquias perderem poder, as linhagens ameaçadas por chefes militares como Napoleão e os governos cada vez mais escrutinados por uma turba intelectual com ânsias de revoltas e de grandes mudanças políticas. Ora, Dom João VI, como bem o provou o tempo, não era um rei com um temperamento propício às grandes decisões que a conjuntura o obrigaria a tomar. Da fuga para o Brasil, que fez da sua a primeira Corte Europeia a aterrar numa colónia, ao regresso a Portugal, obrigado a jurar a Constituição, muito na vida de Dom João VI foi complicado. No Brasil é constantemente louvada a sua “visão”, que tornaria Portugal e o Brasil uma espécie de Reino bicéfalo e que, dotando o Brasil de uma elite política experiente, poderia fazer do grande país uma verdadeira potência. E se é verdade que a presença da coroa impediu o Brasil de se estilhaçar em pequenos Estados e garantiu a influência portuguesa num território muito maior do que aquele que a ocupação colonial faria prever, também é verdade que nenhum país europeu se sujeitaria, em pleno século XIX, à humilhação de se ver privado de um Rei que preferira a colónia ao Velho Continente. É natural, assim, que Dom João VI regresse a contra-gosto, já sem meios para reverter uma situação política que o tornara refém da Constituição e que obrigará a sua mulher ao exílio de Lisboa. É também a morte de Dom João VI, sem nunca se pronunciar sobre os direitos sucessórios ao trono Português, que tornará tão acesa a disputa linhagística, a ponto de provocar a famosa Guerra Civil.

Brigadeiro Silveira

© Grafismo Ana Martingo

A família Silveira está, como poucas, implicada em toda a História política do princípio do liberalismo. A saga começa com o pai, responsável pela defesa de Chaves aquando da Invasão de Soult. O episódio cobriu-o de prestígio e tornou-o um desses valerosos Generais que arriscaram a vida na defesa do país e receberam como prémio a completa subordinação ao corpo marcial inglês. Dos seus dois filhos o mais velho, o Conde de Amarante, esteve sempre contra a insurreição e foi desde a primeira hora um dos comandos militares do Miguelismo; o mais novo, porém, aderiu tardiamente ao Sinédrio mas foi o primeiro presidente da Junta Provisional do Porto, o governo instituído pela Revolta.

O Brigadeiro Silveira é provavelmente o melhor exemplo das dificuldades que surgem ao estudar a carga ideológica da Revolta. A subtil argumentação desenhada por Fernandes Tomás, centrada na ideia de que a Revolta do Porto era uma demonstração de fidelidade ao Rei, que visava apenas restaurar uma secular tradição representativa da Monarquia portuguesa terá chamado alguns patriotas, sobretudo entre os oficiais do exército a quem o patriotismo, por força do domínio inglés, era mais caro. Silveira terá sido, certamente um destes casos, tanto que, à medida que o aspeto bélico foi perdendo importância nos destinos da Revolta, as diferenças entre Silveira e Ferreira Borges ou Borges Carneiro foram aparecendo. O presidente da Junta Provisional foi perdendo importância no regime, participou numa pequena revolta gorada pouco depois da insurreição em Lisboa e acabou a sua vida política como apoiante de Dom Miguel.

Fernandes Tomás

© Grafismo Ana Martingo

De todos os obreiros da Revolta, Fernandes Tomás é, sem sombra de dúvida, o mais importante e o grande ideólogo da Revolução. Se é verdade que os militares andavam descontentes, também é verdade que é Fernandes Tomaz quem, a partir do Sinédrio, torna o descontentamento militar uma campanha liberal.

Homem de leis, com uma participação administrativa na defesa de Portugal durante a Guerra Peninsular, Fernandes Tomás terá o apogeu da sua carreira na forma como, após a Revolta de Cádiz no país vizinho, conseguiu organizar o liberalismo português e aguentar uma Revolução de propósitos firmes, mesmo no meio da confusão ideológica que a ausência da Corte provocava. É Fernandes Tomás que funda o Sinédrio e congrega os ideólogos e os militares responsáveis pela Revolta, é ele que lavra as exigências de regresso do Rei e de suspensão dos privilégios comerciais Ingleses com o Rio de Janeiro e ele que alicerça a defesa da Constituição numa suposta tradição portuguesa, essencial para conseguir manter os militares do seu lado. Fernandes Tomás teve a habilidade política de jogar com a insatisfação militar e com o sentimento anti-Inglês para os tornar uma mais-valia liberal, sem cair no excesso de vituperar o rei, coisa que afastaria decerto muito dos seus potenciais apoiantes.

É, assim, de um hábil aproveitamento da conjuntura, de uma capacidade fora do normal para equilibrar diferentes ideias e objetivos sob a capa do liberalismo que Fernandes Tomás consegue instaurar o liberalismo. O grande Homem da Revolução morre pouco depois dela e não verá a polarização do campo político em todo o seu esplendor. Assim, embora seja o seu grande ideólogo, não verá a completa radicalização do vintismo e a sua postura de barricada, tão estranha à habilidade política do seu fundador.

Ferreira Borges

© Grafismo Ana Martingo

Se Fernandes Tomás é o arquiteto, Ferreira Borges foi o verdadeiro executor do Vintismo. Entre a Revolução Liberal e a sua morte, em 1838, Ferreira Borges esteve presente em todos os momentos políticos-chave da vida portuguesa. Esteve com Fernandes Tomás no sinédrio, fez parte da Junta Provisional, foi deputado à Constituinte e escreveu o primeiro código comercial português. Não fosse o exílio a que o levou a Vilafrancada, poderíamos dizer que percorrera um caminho no liberalismo quase sem sobressaltos. Escreveu algumas das proclamações dos insurrectos, esteve com Fernandes Tomás no Ministério da Fazenda depois da junção das Juntas do Porto e de Lisboa, e, após a vitória liberal na Guerra Civil, esteve sempre ligado à Fazenda, tema particularmente importante num país que, perdido o Brasil, tinha de repensar toda a sua política económica e financeira.

Borges Carneiro

© Grafismo Ana Martingo

Entre os teóricos portugueses do Liberalismo, saídos do Sinédrio, Borges Carneiro foi um dos mais importantes na constituição do ordenamento jurídico liberal. Lavrou a estrutura do governo da regência, foi deputado constitucional e deputado nas primeiras eleições e deputado novamente quando, depois da Vilafrancada e do fim da primeira experiência liberal, foi outorgada a Carta. Foi, durante este tempo, o grande tribuno e o principal legislador do princípio do liberalismo. Quando D. Miguel regressou, foi preso em S. Julião, onde viria a morrer.

Coronel Cabreira

© Grafismo Ana Martingo

Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira foi um dos últimos membros do Sinédrio, mas um dos principais militares da conjura. Militar experiente, esteve na Guerra das Laranjas e escreveu um relato da Revolta do Algarve contra os Franceses, antes de se tornar vice-presidente da Junta Provisional do Porto. Também ele, como tantos outros militares, acabou por se desiludir com o governo e participou na “Martinhada”, chefiada pela fação mais conservadora do novo ordenamento político. Ao contrário de outros militares, porém, continuou sempre partidário do Liberalismo, e participou no desembarque do Mindelo e no governo da Terceira, depois de vários exílios.

Dom Pedro II

© Grafismo Ana Martingo

Aquando do regresso de Dom João VI ao reino, D. Pedro, o herdeiro da coroa, ficou como regente do Brasil. Aqui, pouco depois de se saber das insurreições em Lisboa e no Porto, estalaram também algumas revoltas liberais a exigir para o Brasil um governo constitucional (a coroa tencionava, ao que parece, manter o governo do Brasil nos mesmos pressupostos). As exigências portuguesas a Dom João VI, nomeadamente a restauração da dependência comercial do Brasil, geraram contestação natural no Brasil. Dom Pedro cavalgou a onda e proclamou a independência do Brasil, o que criou um problema dinástico em Portugal. Afinal, o chefe de outro estado soberano não poderia ser Rei de Portugal. O problema tentou resolver-se com o casamento entre D. Maria, filha de Dom Pedro, e D. Miguel; no entanto, a recusa da Constituição por parte de D. Miguel fez gorar a solução. D. Pedro, no Brasil, abdicou em favor do seu filho e veio para Portugal, combater na guerra Civil de que saiu vitorioso.

Dom Miguel

© Grafismo Ana Martingo

Desde o tempo da Vilafrancada que se via que o liberalismo, por mais que tivesse conseguido algumas vitórias militares importantes e se confundisse, no princípio do seu percurso em Portugal, com o ódio aos ingleses, tinha uma boa quantidade de opositores.

Carlota Joaquina, que se recusou a jurar a constituição, foi durante vários anos o rosto da contestação; a morte de Dom João VI, porém, entalou o país num problema dinástico difícil de resolver. Mais do que dois reis, o que estava em causa eram duas formas de governo. De um lado, Dom Pedro, que outorgaria a Carta Constitucional logo após ser aclamado rei; do outro, Dom Miguel, que teve papel importante na Vilafrancada e que haveria de, em 1828, dissolver as cortes e procurar o regresso à monarquia tradicional. Dom Miguel contava com o apoio de vários militares importantes nas revoltas do Porto e de Lisboa e com a insatisfação de uma boa parte da população, insatisfeita com o lastro do liberalismo, que já levara à perda do Brasil e à extinção de algumas das instituições mais antigas do Reino.

A perda da Guerra levou ao exílio de Dom Miguel, que viria a morrer na Áustria. O Partido legitimista, ainda assim, continuou uma força importante na História política do século XIX.