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Muito antes de Fernando Pessoa, já Robert Schumann (1810-56) tinha a sua personalidade e a sua produção criativa dividida por dois heterónimos: Eusebius e Florestan, o primeiro introspectivo e sonhador, o segundo exuberante e arrebatado. Schumann atribuiu explicitamente aos dois heterónimos a composição de algumas das suas peças, mas Eusebius e Florestan também se manifestaram nos seus artigos sobre música, nomeadamente num dos primeiros que publicou, em 1830, no Allgemeine Zeitschrift für Musik, sobre as variações para piano e orquestra de Chopin sobre a ária La ci darem la mano, que é apresentado como uma discussão dos pontos de vista opostos que Eusebius e Florestan tinham sobre a obra.

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Schumann, em 1830

Embora Schumann não tenha levado a fragmentação heteronímica tão longe quanto Pessoa, Eusebius e Florestan não foram únicos: em 1833, no primeiro artigo sobre música que publicou, Schumann fantasiou uma sociedade literária destinada à defesa da música inovadora contra os filisteus (onde se incluíam os compositores de amável música de salão, os críticos conservadores e quem possuísse um gosto burguês e acomodado em geral), a que deu o nome de Davidsbündler (Liga de David, em alusão à luta do David bíblico contra os filisteus). Esta “liga” voltaria a ser mencionada em artigos posteriores e incluiria, além de Eusebius e Florestan, claramente as personalidades dominantes, Mestre Raro (que intervinha como moderador nos debates entre Eusebius e Florestan), Chiarina (Clara), Estrella (Ernestine von Friecken, uma das paixões de juventude de Schumann) e outras mais obscuras, e continuaria a manifestar-se nos artigos que Schumann escreveu para a Neue Zeitschrift für Musik. Porém, apenas Eusebius e Florestan se manifestariam regular e explicitamente na sua música. Em Carnaval op.9 (1834-5), há peças que representam “Eusebius”, “Florestan”, “Chiarina”, “Estrella” e a “Marcha dos Davidsbündler contra os filisteus” (e também Chopin e Paganini e personagens da Commedia dell’Arte); nas Davidsbündlertanz op.6 (1837) todas as 18 “danças” são atribuídas a Eusebius, a Florestan ou a ambos.

[N.º17 e 18 de Davidsbündlertanz, por Walter Gieseking]

A heteronímia de Schumann não nasceu do nada: Eusebius e Florestan são congéneres de Vult e Walt, duas personagens do romance Flegeljhare (1804-5), de Jean Paul, nom de plume de Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), escritor por ele idolatrado desde a infância e que, como Schumann deu conta, “em todas as suas obras projecta a sua personalidade, sempre sob a forma de dois caracteres contrastantes”.

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Retrato de Jean Paul por Heinrich Pfenninger, 1798

Fantasia e realidade

Mas os jogos de Schumann com nomes não se ficaram por aqui: chamava por vezes a Clara, a grande paixão da sua vida, Ambrosia e Beda, e é tentador arrumar Ambrosia, Beda, Clara, David, Eusebius, Florestan de forma a obter a sequência ABCDEF. Também Mestre Raro poderá ter resultado da fusão de Clara + Robert.

Os jogos com letras e as personagens inventadas já estavam presentes na sua primeira obra publicada, as Variações Abegg (1830): numa carta, Schumann afirmou que tinham sido inspiradas por uma certa condessa Pauline von Abegg, com quem teria dançado num baile, e fez questão de que fossem publicadas a 18 de Novembro, de forma a coincidir com o aniversário daquela. Porém, Schumann acabaria por reconhecer que a condessa era uma fantasia e num caderno de um amigo escreveu sobre o nome “Abegg”, “je ne suis qu’un songe” – sou apenas um sonho – uma das falas de uma personagem do romance Titan, do seu amado Jean Paul. Há quem sugira que as variações terão sido antes inspiradas por uma pianista chamada Meta Abegg, que Schumann teria conhecido em Mannheim, em 1830, mas também a existência desta figura é diáfana: afinal, “Abegg” corresponde, na notação musical germânica (A lá, B si bemol, E mi, G sol), às notas do tema que é variado e “Meta” é um anagrama de “tema” (em latim).

[Variações Abegg, por Christoph Eschenbach]

Também Carnaval, que recebeu por subtítulo “Scènes mignones em quatre notes”, alberga várias mensagens cifradas: as 21 peças têm em comum um grupo de quatro notas em que predomina a combinação representada, na notação germânica, por ASCH (A lá, S mi bemol, C dó, H si), o que se liga a Robert Alexander Schumann e à cidade de Asch (hoje Aš, na República Checa), onde nascera a jovem baronesa Ernestine von Fricken, por quem Schumann estava apaixonado, e à palavra alemã para Carnaval, “Fasching”.

[Carnaval, por Evgeny Kissin]

https://www.youtube.com/watch?v=ryyNx_7bETo

Os jogos de palavras e as supostas “inspirações” que envolvem as suas composições revelam um Schumann dividido entre realidade e fantasia, nem sempre sendo claro onde acaba uma e começa a outra.

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A casa onde Schumann nasceu, em Zwickau

Luz e sombra

Uma das peças que melhor revela os conflitos na alma de Schumann é Ende vom Lied, a oitava e derradeira peça das Fantasiestücke op.12, compostas em 1837, quando o tormento causado pela separação da sua amada Clara, “sequestrada “ pelo pai (ver abaixo), estava no auge. A peça tem a indicação “Mit gutem Humor”, de bom humor, mas a sua alegria e assertividade (de um cunho algo banal) acabam por dar lugar a uma melancolia rarefeita e soturna.

Schumann, consciente desta desconcertante mudança de humor, fez questão de explicá-la numa carta a Clara: “pensei que a melhor forma de terminar [as Fantasiestücke] seria com uma jubilosa festa de noivado, mas quando me aproximei do fim da peça, pensar em ti inundou-me de tristeza, e é por isso que entre o repicar dos sinos anunciadores de boas novas se intrometeu o dobre de finados”.

[Ende vom Lied, por Arthur Rubinstein]

Literatura e música

Uma outra vacilação entre dois mundos marcou a adolescência de Schumann: deveria seguir carreira na literatura ou na música?

August Schumann, o pai de Robert era proprietário de uma livraria e de uma pequena editora em Zwickau, na Saxónia, bem como tradutor de Walter Scott e Byron e autor de um “Quem é quem” das “mais famosas pessoas de todas as nações e todos os tempos”.

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August Schumann,1826

É natural que, crescendo neste ambiente, Robert, um miúdo inteligente e sonhador, ao mesmo tempo que lia avidamente as obras de Jean Paul, E.T.A. Hoffmann, Novalis, Goethe, Schiller, Byron e Clemens Brentano, se lançasse também na escrita, quer na poesia, no ensaio ou no romance – Juniusabende, terminado aos 16 anos e publicado pela editora do pai, e Selene, que ficou incompleto, são romances que denotam a flagrante influência do seu idolatrado Jean Paul e do seu registo fantasioso, grandiloquente, indisciplinado e com mudanças abruptas de atmosfera.

Schumann recebeu lições de música de um professor local e logo revelou dotes bem acima da média, datando as suas primeiras composições dos oito anos de idade. Estes primeiros ensaios estiveram, todavia, longe de revelar o talento precoce de um Mozart e a paixão pela literatura acabou por levar a que a sua educação musical se fosse mantendo num estádio rudimentar até ao fim da adolescência.

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Sala de música da casa de Schumann em Zwickau, hoje convertida em museu

Aos 16 anos o pai, que sempre tinha encorajado a sua carreira literária, faleceu e a mãe decidiu que o futuro de Robert não estaria nem na literatura nem na música, antes num curso de Direito. A escolha da Universidade de Leipzig é que não se mostrou acertada para tal desiderato, já que a cidade tinha uma vida musical fervilhante. Mas a vida do jovem Schumann não se circunscrevia a assuntos do espírito e a fantasias etéreas: graças à pequena fortuna herdada do pai, também se entregava regularmente à estroinice, com périplos por tabernas que terminavam em coma alcoólico, intensa actividade sexual e paixonetas várias (incluindo uma pela filha de um farmacêutico de Augsburg e outra pela esposa de um médico de Colditz), comportamento que não sendo invulgar para um jovem bon vivant de famílias abastadas, não se coaduna com a imagem de lânguida flor-de-estufa romântica que costuma ser-lhe associada.

A mudança para a Universidade de Heidelberg, em 1829, não lhe robusteceu o entusiasmo pelo Direito e em 1830, animado pelos progressos que fizera entretanto no piano e galvanizado por um recital de Paganini a que assistira em Frankfurt, conseguiu convencer a mãe a passar a ter aulas com Friedrich Wieck, um reputado professor de piano de Leipzig – quando instado a pronunciar-se sobre as aptidões do futuro aluno, Wieck garantiu à mãe de Schumann “ser capaz de, em três anos, transformar o seu filho […] num dos maiores pianistas do nosso tempo”. Wieck iria arrepender-se amargamente deste entusiasmo.

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Friedrich Wieck

Concertista e compositor

Schumann revelou-se um aluno errático e pouco inclinado a seguir regras, talvez por só muito tardiamente ter recebido educação musical formal. O que não quer dizer que não trabalhasse arduamente – ou arduamente demais, já que uma geringonça a que recorreu para aperfeiçoar a digitação e fortalecer os dedos mais fracos acabou por causar-lhe uma lesão grave num dos dedos e nenhum dos tratamentos que experimentou (incluindo a imersão da mão em sangue de um boi acabado de matar) produziu melhorias significativas. Porém, há quem sugira que a lesão no dedo foi antes consequência de um tratamento com mercúrio, que era um remédio usado na altura para combater a sífilis. Não é certo que Schumann já sofresse de sífilis por esta altura, mas na sua fase de “deboche” não terão faltado oportunidades para a contrair.

Fosse qual fosse a causa da lesão, ela punha termo ao sonho de tornar-se “num dos maiores pianistas do nosso tempo” e restava-lhe concentrar-se na composição. Porém, a sua primeira incursão na música orquestral, dois andamentos de uma sinfonia em sol menor que nunca completaria, foi mal recebida quando estreou na sua cidade natal de Zwickau em 1832. Este fiasco e a morte, em 1833, do irmão Julius e da cunhada Rosalie, mergulharam-no numa profunda depressão, onde há quem veja a primeira manifestação das perturbações mentais que ditariam o seu fim.

Criador e crítico

Uma vez recuperado, a sua energia foi desviada para a crítica musical, que já praticara no Allgemeine Zeitschrift für Musik e no Komet. Mas agora tinha um jornal por sua conta, o Neue Zeitschrift für Musik, que co-fundou com Friedrich Wieck e o amigo Ludwig Schunke, mas cujos primeiros números – o primeiro saiu a 3 de Abril de 1834 – foram essencialmente obra de Schumann.

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Primeiro número do Neue Zeitschrift für Musik

Como crítico, Schumann deu generoso apoio a jovens compositores em que via mérito e inovação – Chopin, Berlioz, Brahms, Niels Gade – e zurziu nos “filisteus”, os compositores que, em seu entender, faziam concessões ao gosto das massas só “para fazer dinheiro e ruído”, como Rossini e Meyerbeer (“um director de circo”), ou que cultivavam o virtuosismo pirotécnico, como Liszt (“bufarinheiros da arte”), já sem falar dos compositores de salão, como Henri Herz e Franz Hünten, hoje completa e misericordiosamente esquecidos, mas que na altura fizeram furor por toda a Europa.

Schumann tinha ideias bem definidas sobre o papel da crítica musical: “não basta que reflicta o seu tempo. O crítico deve estar à frente do seu tempo e pronto para lutar pelo futuro”. Schumann manteria o cargo de editor do jornal até 1843.

O espiritual e o material

Entretanto, enquanto era aluno e hóspede de Wieck, Schumann tornou-se amante de uma certa Christel que – não é hoje possível apurá-lo – ou era outra aluna de Wieck (neste tempo era frequente os alunos serem alojados na casa dos professores) ou era criada na sua casa. A relação terá durado um ano e está atestada no diário de Schumann, embora envolta numa aura de auto-recriminação e repugnância por si mesmo, presumivelmente por esta relação contrariar os princípios morais em que fora educado.

Tal tipo de sentimentos não parece ter ensombrado o seu envolvimento, no Verão de 1834, com Ernestine von Fricken, outra talentosa aluna de Wieck que Schumann descreveu numa carta à mãe como “esplêndida, pura, com a natureza de uma criança, delicada e ponderada, e que nutre um amor sincero por mim e tudo o que seja artístico, extraordinariamente dotada para música. enfim, tudo o que poderia desejar numa esposa”. A paixão por esta rapariga de 16 anos foi formalizada em noivado, mas à última hora Schumann recuou precipitadamente. Descobrira que Ernestine não era afinal filha do abastado barão von Fricken e da condessa Zettwitz, fora adoptada – era talvez filha ilegítima da irmã do barão – e, nessa qualidade, não era herdeira da fortuna dos pais adoptivos nem possuía dote, o que parece ter sido um balde de água fria para Schumann.

Estando Friedrich Wieck a par dos casos com Christel e Ernestine e da natureza inconstante, irresponsável e pouco prática de Schumann, comprender-se-á melhor que aquele tenha reagido mal quando em 1835 Schumann redireccionou os seus afectos para a sua filha Clara (1819-1896), então com 16 anos.

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Clara Wieck, aos 15 anos

O pai planeara meticulosamente a carreira de Clara como pianista de concerto desde que ela revelara precocemente os seus dotes pianísticos – com apenas 11 anos já Clara se estreara na prestigiada Gewandhaus de Leipzig e fizera uma tournée de concertos pela Europa e era a melhor propaganda que se poderia imaginar para os infalíveis métodos pedagógicos do professor Wieck. A desilusão de Wieck quando Clara, a sua obra-prima, correspondeu à paixão de Schumann fê-lo perder a cabeça: classificou a filha como “uma rapariga imoral que se deixou seduzir por um miserável canalha”, lamentou que ela “deitasse tudo a perder com um compositor sem vintém”, promoveu campanhas de difamação obsessivas contra Schumann e interditou o contacto entre os dois amantes, que prosseguiu, agora através de cartas reenviadas com a cumplicidade de amigos mútuos, ao mesmo tempo que a separação incitava em Schumann composições inspiradas pela bem-amada cativa do pai.

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Clara Wieck, aos 20 anos

Schumann formalizara o pedido de casamento em 1837 mas só após um longo processo legal o tribunal deu razão ao casal de jovens apaixonados contra o pai-tirano. Ernestine von Fricken, ainda que rejeitada de forma humilhante por Schumann, recusou o pedido do pai Wieck para servir de testemunha do mau carácter de Schumann. Clara e Robert casaram-se em 1840, no dia do 21.º aniversário de Clara.

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Robert e Clara

Amante e esposo

Nos primeiros anos, Schumann compôs quase exclusivamente para o piano, mas a perspectiva de casar-se finalmente com Clara despertou nele uma inspiração torrencial para a escrita de Lieder: foram 138 só em 1840. Na véspera do casamento, Robert presenteou Clara com uma colecção de 26 Lieder, os Myrthen op.25, acompanhado por uma farfalhuda dedicatória – “Com murtas e rosas e cintilações de ouro, desejaria eu ornar este livro, bela e amorosamente […] Ei-los, pois, estes cantos que, como uma torrente de lava escoando-se do Etna, jorraram impetuosamente do mais fundo da minha alma” – que demonstra que apesar da vacilação juvenil sobre o caminho a seguir, Schumann era infinitamente melhor como compositor do que como prosador.

Mas, como Michael Steen faz questão de realçar em The lives & times of the great composers, o primeiro presente de Robert para Clara após o casamento foi um livro de cozinha. Ficava assim definida qual a repartição de papéis que Robert esperava. Uma vez que para ele compor era necessário silêncio, Clara não podia praticar piano, embora uma concertista do seu nível necessitasse de muitas horas diárias de treino. Apesar da genialidade das composições de Robert, eram os concertos de Clara que asseguravam a maior parte dos rendimentos do casal, mas o prestígio de Clara como pianista também causava algum ressentimento a Robert. Clara era uma compositora promissora, mas a definição de papéis no casal secou-lhe essa aspiração – na verdade, ficara convencida da sua inferioridade ainda antes do casamento, como revela uma entrada do seu diário, em 1839: “Em tempos, acreditei que teria talento para compor, mas perdi essa veleidade. Uma mulher não deve pretender tal coisa – nenhuma o fez até agora, porque seria eu a fazê-lo? Seria arrogante da minha parte”.

Mesmo que quisesse, Clara não teria muito tempo para se dedicar à composição, pois além de uma agenda de concertos bem preenchida esperava-se que fosse ela a cuidar dos oito filhos do casal (cinco sobreviveriam). Embora Robert a amasse sinceramente, tudo estava articulado em função dele: quando, em 1844, Robert acompanhou Clara num digressão russa, em São Petersburgo foram convidados a subir a uma torre de onde poderia admirar-se uma panorâmica da cidade: Robert, que sofria de vertigens, declinou o convite e, quando foi sugerido que Clara subisse sem ele, Robert tratou de esclarecer: “A Clara não vai onde eu não vou”.

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Clara Schumann com 35 anos, em 1854

Lucidez e loucura

Como compositor, Schumann era dado a obsessões: após ter passado o ano de 1840 a produzir Lieder a uma cadência infernal, consagrou 1841 à música orquestral (a Sinfonia n.º1 foi esboçada em quatro dias) e 1842 à música de câmara. Mas após regressar da Rússia, passou por um longo período de prostração e improdutividade que se prolongou até 1846. Era atormentado, revelam os seus diários, por premonições de morte, uma aversão a objectos metálicos e ouvia a nota lá ressoar-lhe dentro da cabeça, incessantemente.

Em 1848 compôs a sua única ópera, Genoveva (cujo libreto tem afinidades com o Lohengrin de Wagner), mas a recepção à estreia em Leipzig, em 1850, foi fria, de forma que a ópera não regressou aos palcos em vida do compositor e este não regressou ao género.

[Excerto da abertura da ópera Genoveva, pela Filarmónica de Berlim e Claudio Abbado]

Em 1850 surgiu a oportunidade de substituir Ferdinand Hiller como director musical em Düsseldorf, mas o escasso talento de Schumann como maestro e o progressivo agravamento da sua saúde mental – além das alucinações auditivas, também o seu discurso começara a sofrer perturbações – tornaram a experiência calamitosa, de forma que as autoridades da cidade se viram obrigadas a delegar a direcção das obras no maestro assistente.

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Schumann em 1850

A aparição do jovem Brahms à sua porta em 1853, trouxe alguma luz à sua vida, pois logo se convenceu que estava ali um compositor de génio, mas a degradação da sua saúde mental prosseguia inexoravelmente: as alucinações auditivas eram cada vez mais insuportáveis e dentro da sua cabeça ouvia ora “as vozes de demónios que queriam empurrá-lo para o Inferno” ora melodias angelicais, que, por vezes, dizia serem-lhe ditadas pelos espíritos de compositores falecidos. Segundo os diários de Clara, Robert ouvia “música gloriosa e com instrumentos de sonoridades mais belas do que alguma vez se ouviram na Terra”, mas Schumann não parece ter sido capaz de transpor para as partitura a música celestial que o assaltava, pois as composições dos últimos anos tendem a ser desconexas e tortuosas e a sua agitação e veemência podem ser vistas como evocando o exaspero de quem se descobre irremediavelmente perdido num labirinto – mas também é lícito ver nelas uma vontade consciente de explorar novas possibilidades expressivas. Seja como for, com o tempo, a música celestial foi cedendo lugar à música demoníaca e, por fim, até esta acabou por degenerar numa única nota, um lá que ressoava dentro da sua cabeça, ininterruptamente e a um volume ensurdecedor.

A ciência – ou os seus sectores mais dados à especulação ociosa e ao sensacionalismo – têm vindo a fazer diagnósticos de Schumann a mais de século e meio de distância e a tentar discernir na sua música sintomas das suas maleitas. Por exemplo, o Dr. Richard Kogan, professor de psiquiatria em Cornell, garante que o Carnaval op.9 “não poderia ter sido escrito por alguém que não sofresse de perturbação bipolar”, mas não faz mais do que inserir-se numa longa cadeia de pernósticos cheios de certezas e ar quente – em 1906 já o psiquiatra Paul Julius Möbius afiançava que “ouvindo a música de Schumann percebe-se que ele Schumann era uma pessoa extremamente nervosa. É óbvio que, desde a sua juventude, Schumann era um doente mental”.

O que estes doutos tanatologistas parecem ser incapazes de perceber é que a “loucura” e a “perturbação bipolar” patentes na música de Schumann poderiam resultar simplesmente da sua imaginação fervilhante, do seu saudável desrespeito pelas regras e convenções, pela sua aversão em corresponder às expectativas dos frequentadores dos salões e, quiçá, ao facto de a sua cabeça não ter sido formatada em criança por um ensino musical ortodoxo. E também – e aqui são palavras do próprio Schumann – por ser “afectado por tudo o que acontece no mundo – política, literatura, sociedade – e, ao reflectir sobre estes eventos, anseio exprimi-los em música. É por isso que as minhas composições são difíceis de compreender – é porque estão ligadas a interesses remotos”.

Uma vez dissipado o nevoeiro das especulações, o que emerge como mais plausível é que a loucura de Schumann tenha correspondido ao estádio terciário da sífilis que contraíra com 20 e poucos anos. Ele estava consciente do seu crescente desequilíbrio mental e em Fevereiro de 1854 pediu a Clara para ser internado. Dias depois desapareceu de casa e tentou suicidar-se atirando-se ao Reno. Agora, o internamento parecia inevitável – passou os seus últimos dias numa clínica psiquiátrica privada em Endenich, perto de Bona, onde os pacientes gozavam de um tratamento de luxo quando comparado com os asilos comuns (o custo anual do internamento equivalia aproximadamente ao salário anual de Schumann como director de orquestra em Düsseldorf). O Dr. Franz Richarz, o director da clínica, entendeu que o contacto com Clara seria prejudicial ao doente, pelo que as visitas se circunscreveram sobretudo aos amigos Brahms e Joachim. Só quando o estado físico e mental de Schumann de deteriorou seriamente é que Clara foi chamada. Robert faleceu a 29 de Julho de 1856, com 46 anos.

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A clínica psiquiátrica do Dr. Richarz, em Endenich, onde Schumann faleceu

The masterworks

A caixa de 35 CDs The masterworks (Deutsche Grammophon) não contém a obra integral de Schumann, mas contém tudo o que é essencial.

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Estão lá as quatro sinfonias (CDs 1-3), que em tempos foram vistas como incompetentemente orquestradas, o que deu azo a que muito compositor e maestro as retocasse (até Mahler se entregou a essa tarefa), mas que agora são aceites tal como são, com “inépcias” e tudo. A interpretação é da Orchestre Révolutionnaire et Romantique, a formação de instrumentos de época que John Eliot Gardiner criou para tocar repertório clássico e romântico. O alinhamento segue a ordem cronológica da composição das sinfonias (n.º1, 4, 2 e 3) e ainda dá a ouvir uma 2.ª versão da n.º4, conforme à revisão efectuada em 1851. A interpretação é transparente, articulada e vigorosa, com metais refulgentes, e favorece tempos lestos (mas não precipitados).

[I andamento da Sinfonia n.º1 pela Orchestre Révolutionnaire et Romantique e John Eliot Gardiner]

Os CDs 1-3 albergam ainda a sinfonia dita “de Zwickau” – ouvindo-a, compreende-se porque nunca foi completada e é raramente tocada – e outras peças orquestrais menores, entre as quais se destaca a abertura de Genoveva, que é a única parte da ópera que permaneceu no repertório corrente – com toda a justiça, uma vez que é magnífica.
Os CDs 4 e 5 estão devotados à música concertante, com o Concerto para piano op.54 (1845), confiado a Vladimir Ashkenazy e à London Symphony Orchestra, com direcção de Uri Segal, e o Concerto para violoncelo op.129 (1850), por Lynn Harrell e a Cleveland Orchestra, com direcção de Neville Marriner.

[Concerto para piano por Vladimir Ashkenazy, London Symphony Orchestra, com direcção de Uri Segal]

https://www.youtube.com/watch?v=bmU7q14g53c

Somam-se a eles algumas obras menores e o Concerto para violino WoO1 (1853), tocado por Henryk Szering e pela London Symphony Orchestra, com direcção de Antal Dorati. O Concerto para violino, rejeitado na altura pelo virtuoso Joseph Joachim, que via nele sinais evidentes da deterioração mental do amigo, ficou esquecido durante muito tempo, já que Joachim, que ficara com a partitura, estipulara que esta só deveria estar acessível um século depois da morte de Schumann – em 1956 – mas uma série de eventos rocambolescos, envolvendo revelações feitas por espíritas, acabaram por fazer com que o manuscrito fosse descoberto em 1937 e estreado nesse mesmo ano. Porém, o Concerto para violino está longe da excelência dos seus pares para piano e violoncelo.
A música coral é a faceta de Schumann menos conhecida do grande público e The masterworks esforça-se por remediar essa lacuna através dos CDs 6-10, que incluem a oratória profana Das Paradies und die Peri op.50 (1843), o Requiem für Mignon op.98b (1849) e o Nachtlied op.108 (1849) pelo Monteverdi Choir e pela Orchestre Révolutionaire et Romantique, com direcção de John Eliot Gardiner.

[Nachtlied pelo Monteverdi Choir & Orchestre Révolutionaire et Romantique, com direcção de John Eliot Gardiner]

Das Paradies und die Peri é prejudicada por um libreto de prosa repolhuda e enredo místico-sentimental (vagamente inspirado na mitologia persa, via Thomas Moore), mas é um objecto único na música romântica e merece ser conhecida. Dois dos CDs são ocupados com outra oratória profana, Cenas do Fausto de Goethe (1844-53), numa gravação histórica de 1972 com Benjamin Britten à frente da English Chamber Orchestra, há muito descatalogada. O CD 10 cabe ao poema dramático Manfred op.115, a partir de Lord Byron, pela Radio-Symphonie-Orchester Berlin, com direcção de Gerd Albrecht, uma obra de que só costuma ouvir-se a abertura – e com razão, já que a qualidade é desigual e as numerosas intervenções declamadas tornam a audição fora do contexto teatral um teste à paciência.

À inclusão de Manfred teria sido preferível a de amostras da muita música coral a cappella composta por Schumann, que não tem direito em The masterworks uma peça sequer – a lacuna é fácil de remediar pois a Brilliant Classics oferece, por preço irrisório, uma caixa quádrupla com toda a obra coral a cappella, pelo Studio Vocale Karlsruhe e Werner Pfaff.
O Lied ocupa nove CDs (11-19) e fica muito perto de cobrir as 250 canções de Schumann. Estão maioritariamente entregues ao barítono Dietrich Fischer-Dieskau, com a soprano Edith Mathis a tomar para si as que estão inequivocamente associadas a voz feminina, como é o caso dos Frauenliebe und Leben op.42.

[Frauenliebe und Leben op.42, por Edith Mathis]

As gravações, sempre com acompanhamento de Christoph Eschenbach, datam de 1974-81 e captam Fischer-Dieskau e Mathis no auge das suas capacidades. Nos duetos há intervenções pontuais de Julia Varady e Peter Schreier; Régine Crespin, numa gravação de 1967, encarrega-se dos Gedichte der Königin Maria Stuart op.135.

A maior e melhor parte deste acervo corresponde ao frenético ano de 1840: a história da música tem muitos compositores com produções copiosas, mas as 140 canções – muitas delas sublimes, quase todas de muito alto nível – nascidas de um jorro em 1840, são um caso ímpar.

É tarefa difícil destacar uma canção em colecções que são uma fiada de pérolas: no Liederkreis op.39, “Mondnacht” é talvez a favorita do público.

[“Mondnacht” (n.º5 do Liederkreis op.39), por Dietrich Fischer-Dieskau e Christoph Eschenbach]

Mas nenhuma das outras lhe é inferior – ouça-se por exemplo a extraordinária peça que fecha a colecção, “Alte Laute”, de uma sublime rarefacção, com o acompanhamento de piano reduzido a um fio que ameaça quebrar-se a qualquer instante.

[“Alte Laute” (n.º9 do Liederkreis op.39), por Dietrich Fischer-Dieskau e Christoph Eschenbach]

Mas de comparável nível de genialidade são os Dichterliebe op.48, colecção que encerra jóias tão díspares como o majestoso e imponente “Im Rhein, im helligen Strome” ou “Die Rose, die Lilie, die Taube”, essa centelha rodopiante que dura apenas 34 segundos.

[“Die Rose, die Lilie, die Taube”, por Jonas Kaufmann]

As canções mais tardias são menos conhecidas, mas os Sechs Gedichte und Requiem op.90, de 1850, não ficam atrás das obras-primas de 1841.
A música de câmara está cá toda – incluindo obras obscuras e menores – repartida por sete CDs (20-26): os três Quartetos de cordas op.41 são confiados ao Hagen Quartet, que, com o reforço do pianista Paul Gulda, se encarregam também do Quinteto com piano op.44. A interpretação combina precisão de relojoaria com plena intensidade emocional e faz toda a justiça a estas quatro obras-primas nascidas de rajada em 1842 (o “ano da música de câmara”).

[Quinteto com piano op.44, por Paul Gulda e Hagen Quartet]

Os três Trios com piano (op.63, op.80 e op.110) são interpretados pelo Beaux Arts Trio (um empréstimo do catálogo Philips), que, com a adição da viola de Samuel Rhodes, trata também do Quarteto com piano op.47.

[I andamento do Trio com piano n.º1 op.63, pelo Beaux Arts Trio]

As duas sonatas para violino e piano (op.105 e op.121) ficam com Gidon Kremer e Martha Argerich, a música para oboé e piano (ou seja, as Fantasiestücke op.73, os Romanzen op.94 e as Peças em tom popular op.102) com Heinz Holliger e Alfred Brendel. Vale a pena destacar os Romanzen, que entre a energia febril e a natureza enredada de algumas composições dos últimos anos de Schumann, representam um oásis de simplicidade e serenidade.

[Romance op.94 n.º1, por Heinz Holliger e Alfred Brendel]

Só não se percebe a inclusão na caixa dos 14 Caprichos op.1 de Paganini (CD 25), uma obra para violino solo, para a qual Schumann se limitou a escrever um acompanhamento de piano
A música para piano (CDs 27-35) está entregue maioritariamente a dois eminentes schumannianos, Maurizio Pollini e Vladimir Ashkenazy (“emprestado” pelo catálogo Decca), com Christoph Eschenbach e Homero Francesch a terem cada um o seu CD.

Tal como nos Lieder, é difícil na música para piano escolher entre tantas riquezas. Da “Aria” da Sonata n.º1 op.11 disse Liszt que “era uma das coisas mais perfeitas que já ouvi”.

[“Aria” da Sonata n.º1 op.11, por Claudio Arrau]

Ninguém se atreverá a desdizer Liszt, mas algo análogo pode dizer-se do III andamento (“Langsam getragen”) da Fantasie op.17, de uma serenidade que parece não fazer parte deste mundo.

[III andamento (“Langsam getragen”) da Fantasie op.17, por Murray Perahia]

Mas a música para piano de Schumann não se faz apenas de momentos etéreos: tanto pode revisitar, em registo cerimonial, a Ouverture do barroco francês (com Bach como intermediário) no Estudo VIII dos Estudos sinfónicos op.13, como entregar-se a audaciosas explorações harmónicas na primeira peça das Nachtstücke op.23;

[das Nachtstücke op.23, por András Schiff]

https://www.youtube.com/watch?v=q2gP6frJ8qg

Ou à correria vertiginosa através de uma floresta eriçada de obstáculos do Prestissimo possibile que fecha o Concerto sem orquestra op.14.

[Prestissimo possibile do Concerto sem orquestra op.14, por Valery Sigalevitch]

O comentário do compositor Carl Kossmaly (que colaborou no Neue Zeitschrift für Musik), às obras para piano de Schumann é paradigmático da reacção da ortodoxia musical a Schumann: escreveu Kossmaly, em 1844, que as achava demasiado densas e sobrecarregadas de significados, fazendo com que o ouvinte se sinta “como se estivesse perdido numa floresta espessa e luxuriante, em que o caminho é barrado, a todo o momento, por enormes troncos, raízes nodosas, vigorosas trepadeiras e espinhos aguçados”, revelando “uma tendência para tudo o que seja arbitrário, excêntrico e informe”. Felizmente, neste caso o tempo acabou por exercer a sua acção depuradora, e a floresta caótica de Schumann continua hoje a fazer parte do repertório, e será em vão que se procurarão registos dos jardins franceses, de alamedas traçadas a régua e esquadro e sebes bem aparadas, desenhados por Kossmaly.