Uma ação de protesto do Chega marcou o que prometia ser uma manhã com pouca história na maratona orçamental. O momento, além de ter atrasado os trabalhos, motivou uma reprimenda violenta de José Pedro Aguiar-Branco, mereceu críticas de todas as bancadas e obrigou à intervenção dos bombeiros sapadores. Ultrapassado o número político e mediático do partido liderado por André Ventura, os partidos, do poder e da oposição, esforçaram-se por tentar relançar as bases do novo ciclo político que se inicia esta sexta-feira.
E este debate já permitiu recolher alguns sinais interessantes. As bancadas mais à esquerda, muito encolhidas desde as últimas legislativas, a tentar explorar o facto de Pedro Nuno Santos se ter aliado a Luís Montenegro para viabilizar o Orçamento do Estado; André Ventura, como vinha anunciando, a tentar afirmar-se como verdadeiro líder da oposição; Pedro Nuno Santos a virar a página do traumático processo orçamental e a calçar em definitivo as luvas de boxe; e Luís Montenegro a procurar manter dois pratos a girar ao mesmo tempo: o discurso de dramatização e de alguma vitimização que seguiu até aqui; e a tal aura de Governo fazedor, que tem resultados para apresentar e um projeto para o país.
À saída do hemiciclo, em declarações aos jornalistas — Montenegro não interveio no debate parlamentar —, o primeiro-ministro celebrou a “etapa superada” com este Orçamento do Estado, assumiu que o documento “contempla o essencial do programa do Governo”, mas não deixou de dizer este exercício “tem corresponsabilidade do PS e do Chega”, com decisões que foram “tomadas contra a vontade do Governo”. Se correr mal — nomeadamente em matéria de consolidação orçamental —, a culpa será do PS e do Chega, vai sugerindo Luís Montenegro.
Governo faz balanço e antecipa: estará pronto para eleições
Coube a Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas e da Habitação, defender a honra do Governo. Inevitavelmente, o social-democrata acabou por fazer o balanço destes primeiros oito meses de mandato e das decisões com maior impacto — redução de impostos, aumento das pensões, as medidas para a Habitação e nos transportes, valorização de professores, forças de segurança e oficiais de justiça, investimento na Saúde, resposta à “imigração descontrolada”, a formalização do projeto para o novo aeroporto ou, por exemplo.
Pelo meio, e numa semana marcada pela muito criticada declaração de Luís Montenegro ao país sobre segurança interna, o Pinto Luz fez questão de secundar a posição assumida pelo primeiro-ministro e de garantir que o “Governo, em momento algum, vacilará no dever de garantir a segurança e a tranquilidade dos portugueses” — prova de que a Aliança Democrática está de facto empenhada em não deixar cair o discurso sobre segurança, mesmo perante as acusações de “deriva securitária” vindas da esquerda e a marcação cerrada de André Ventura — “O original é sempre melhor do que cópia”, provocou esta manhã o líder do Chega.
Mas as duas grandes ideias da intervenção de Pinto Luz foram inscritas no princípio e no final da intervenção. Em primeiro lugar, a assunção clara de que o Governo chegou a ter a “tentação” de forçar legislativas antecipadas e uma clarificação eleitoral. “A escolha foi um esforço derradeiro de negociação, um apelo à responsabilidade perante a comunidade. A escolha foi, apesar da tentação, oferecer num quadro de instabilidade, estabilidade. A escolha foi entregar ao país um Orçamento do Estado, porque o interesse de todos o exigia. O primeiro-ministro decidiu que Portugal estava primeiro”, assumiu Pinto Luz.
Ao mesmo tempo — e foi essa a nota com que terminou o seu discurso — o ministro das Infraestruturas e da Habitação deixou claro que o Governo tem perfeita consciência de que está a prazo. Sem a ameaça de uma crise política, com Marcelo Rebelo de Sousa constitucionalmente impedido de dissolver a Assembleia da República, ninguém no núcleo mais próximo de Montenegro ignora que o Orçamento do Estado para 2026 será muito provavelmente chumbado, atirando o Governo para o regime de duodécimos. A seguir, será eleito um novo Presidente da República, que depois de março recuperará a capacidade de convocar eleições antecipadas.
Ciente disso mesmo, Miguel Pinto Luz terminou o discurso deixando uma certeza: “Seremos avaliados no momento próprio. Que não subsistam dúvidas, não receamos nem recearemos essa avaliação”. Ultrapassado o Orçamento do Estado, abriu-se um novo ciclo político que terá eleições autárquicas (em setembro de 2025) e presidenciais (em janeiro de 2026). Montenegro tem um ano e mais uns pózinhos para preparar o caminho e tentar vencer as próximas legislativas com um resultado mais generoso.
Chega acusado de “vandalização política”
Antes do debate final e das votações, os deputados ainda tinham de votar uma série de propostas avocadas pelos partidos – como a medida do PS que pretendia isentar os pagamentos antecipados nos créditos a taxa variável e limitar a 0,5% na taxa fixa. A votação repetiu-se e o resultado foi o mesmo – chumbo com os votos contra da AD, do Chega e da IL.
Mas até chegar às votações, passou cerca de uma hora. Tudo porque o Chega estendeu, do lado de fora do parlamento, uma série de faixas de protesto contra o fim do corte do salário dos políticos. Adjetivando a medida, aprovada esta quinta-feira, como uma “vergonha”. O protesto acabou por impedir o normal arranque dos trabalhos, porque o PS e o PAN queriam que a sessão plenária fosse suspensa até que as faixas fossem retiradas. Mas para o presidente da Assembleia da República, Aguiar Branco, isso seria “beneficiar o infrator”. Aguiar Branco não quis suspender a última sessão orçamental do ano (e os restantes partidos também travaram o intento, mas deixou bem vincadas as suas críticas à ação do Chega.
Com palavras de “repúdio”, o presidente da AR lembrou que o edifício é monumento nacional e não é permitida a colocação de publicidade, à semelhança do que acontece com monumentos como a Torre de Belém ou o Mosteiro dos Jerónimos. E acusou o Chega de “vandalização política”, sublinhando que a ação nada tinha que ver com liberdade de expressão.
Seguiu-se uma discussão acesa sobre a retirada das tarjas, que só poderiam ser retiradas de duas formas: ou através dos gabinetes do Chega ou do lado de fora, pelos bombeiros. Se as tarjas não fossem retiradas, avisou Aguiar Branco, “os bombeiros farão a retirada pelo exterior, não esperam que eu arrombe as portas dos gabinetes”. O PS chegou a sugerir que as forças de segurança entrassem pelo gabinete do Chega para fazer a remoção, o que não aconteceu.
O episódio, que gerou ruidosos protestos de todas as bancadas, acabaria por ser resolvido quando os trabalhos já decorriam. E com o Chega sempre a afirmar que o protesto era legítimo. “Não danificámos património, não incendiámos carros nem agredimos polícias”, afirmou Pedro Pinto. “Em 50 anos de democracia, antes de este partido existir, nunca tinha acontecido”, disse Alexandra Leitão.
E só mesmo quando os bombeiros já estavam no topo das escadas, prontos para cumprir a ordem de Aguiar Branco, é que membros do Chega, entre eles André Ventura, retiraram as faixas — ou, como chegaram a ser chamadas no plenário, as “colchas” — que durante uma manhã ornamentaram uma parte da fachada do parlamento. A ação de protesto do Chega não ficaria, porém, por aqui. Já com o orçamento para 2025 votado e aprovado, e enquanto as bancadas dos partidos do Governo aplaudiam, os 50 deputados da bancada do Chega levantaram-se e empunharam cartazes com uma mensagem: “Este Parlamento perdeu a vergonha.”
Em causa está a proposta, da AD, de fazer com que a partir de janeiro os políticos deixem de ter um corte de 5% nos salários, uma medida que está em vigor desde 2011, ainda antes da intervenção da troika. O PS ainda chegou apresentar uma proposta distinta para que só os mandatos iniciados em janeiro fossem abrangidos, mas acabou por chegar a um acordo com PSD e assim a medida vai mesmo abranger os mandatos já em vigor. André Ventura garante que todos os deputados do partido vão prescindir desta reposição salarial.
PS deixa trauma para trás. Esquerda tenta distanciar-se de Pedro Nuno
Apesar do resultado e aprovação final, nem sequer o salvador de Montenegro — o PS, com uma abstenção — se mostrou satisfeito com o documento. Para os socialistas, este é o ponto de viragem, com Alexandra Leitão a realçar que, de agora em diante, o Governo não tem “desculpas”, que “a dramatização acabou”, bem como as “manobras de vitimização” e Montenegro passa a estar nas suas próprias mãos. E mais: findo o processo, há duas mensagens a retirar: “O Orçamento é do Governo. As opções são do Governo. A responsabilidade é do Governo” e “o PS continuará a fiscalizar a atuação do Governo” — no lugar de líder de oposição que o Chega tanto ambiciona roubar.
Cá fora, já depois da votação fechada, Pedro Nuno Santos diria exatamente o mesmo (“O Governo já não se pode vitimizar, tem é de resolver problemas”), deixando claro que “em nenhum momento o PS passa a ser o suporte deste Governo”. Aliás, as críticas, para quem viabilizou o Orçamento, nem sequer foram leves, tendo em conta que a líder parlamentar do PS disse que está em causa um “mau Orçamento”, feito por um Governo que é bom “mas em powerpoints” e que acusou de “incompetência ou opacidade” nos números apresentados em várias áreas, com a questão da colocação de professores à cabeça. Para o PS, restou festejar as vitórias conseguidas na especialidade, com o aumento extraordinário das pensões à cabeça e o fim das portagens nas ex-SCUT — ambas com o apoio do Chega.
Mais à esquerda, Mariana Mortágua optou por criticar duramente a posição do PS num Orçamento do Estado “muito mau” em que foi criado “o contexto para o velho plano da direita”. “O PS diz agora que este não é o seu Orçamento. É um facto. Neste Orçamento, o PS não escreveu o texto, mas o PS forneceu o contexto. E é talvez por isso que é obrigado a viabilizar a Lei do Orçamento, este mesmo que o próprio PS afirma ser mau para o país”, rematou.
Também o PCP, pela voz de Paulo Raimundo, criticou o PS por se ter tornado “cúmplice do Governo”, destacando a “escandalosa redução do IRC direitinha para as grandes empresas” e o facto de o PS ter chumbado a proposta do partido para aumentar as pensões em 5%. Para o líder comunista, o documento é uma “benesse para o patronato”, que deixará a vida do povo “mais difícil”.
Isabel Mendes Lopes, do Livre, atirou ao facto de, a seu ver, o progresso ter ficado “guardado na gaveta” na hora em que o Orçamento do Estado foi feito. Além de ter culpado a maioria de direita, e de ter atacado o Governo por ser “muito mais hábil na propaganda do que a governar”, a líder parlamentar do Livre não esqueceu a abstenção do PS e disse que “o Orçamento tem as prioridades todas ao contrário”.
Já pelo PAN, Inês Sousa Real elogiou o facto de o partido — que foi o que viu mais propostas de alteração aprovadas — ter tornado o “Orçamento um pouco mais verde, mais inclusivo e mais humano”. Contudo, referiu, o PAN recusou “ignorar os retrocessos que permanecem: a borla financeira às touradas, a ausência de apoios robustos à transição climática e as falhas em garantir justiça fiscal e social”.
Ventura tenta colar PS ao Governo. Rocha não esconde desencanto
Já André Ventura atirou-se ao primeiro Orçamento do Estado com um “cunho e marca” de bloco central “em muitos anos”, que lhe permitiu dizer que “PSD e PS estão juntos na governação do país” e que “não há setor em Portugal que não olhe para este Governo e não veja o rótulo da traição e da cedência ao PS”. O líder do Chega justificou as opções, desde logo a viabilização de pensões, e foi dizendo que “o país não pode tratar os pensionistas como lixo” ou até que o seu partido “não é o dos meninos ricos da IL”.
Durante o discurso, André Ventura ainda aproveitou para criticar a declaração de Luís Montenegro sobre insegurança interna, para dizer que “o Governo compreendeu” o que Chega anda “a dizer há meses”, mas com um alerta: “O original é sempre melhor do que a cópia.”
Pela Iniciativa Liberal, Rui Rocha defendeu que “o país fica na mesma” depois de mais de duas mil propostas de alteração e que o Orçamento do Estado “não muda nada”. Além de ter criticado propostas “assombrosas” de vários partidos, os liberais consideram que o Governo perdeu a oportunidade de fazer diferente, já que o Orçamento, sublinhou Rocha, não dá sinais “claros de mudança” nem sequer respeita o “programa eleitoral da AD e do Governo”.
Seja como for, o presidente liberal disse que o partido “aceita o desafio de defender sozinha a única visão de país focada no crescimento e na prosperidade dos portugueses”. E disse mais: “Ao contrário dos outros, não trocamos o futuro de Portugal por lógicas eleitoralistas de curto prazo.”