Emmanuel Macron justificou a ausência com a “agenda intensa”. Rishi Sunak também não vai porque a conjuntura interna é complicada. Xi Jinping nem sequer justificou a ausência. E Vladimir Putin, por conta das tensões geopolíticas, nem sequer cogita deslocar-se aos Estados Unidos (EUA). Estes líderes, que representam quatro membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), declinaram o convite para estarem presentes na Assembleia Geral, que começa esta terça-feira e termina no próximo dia 26 de setembro.
Entre os membros permanente do Conselho de Segurança, apenas o anfitrião Joe Biden discursará perante os 193 países da Assembleia Geral da ONU, isto apesar de a comunidade internacional atravessar um momento conturbado: a guerra na Ucrânia, uma tensão permanente entre EUA e China, a exigência de um maior protagonismo por parte dos países do Sul Global, os sucessivos golpes de Estado em África, as cheias da Líbia, os efeitos das alterações climáticas.
As ausências dos principais líderes mundiais — à exceção de Joe Biden — é um sinal do declínio das Nações Unidas enquanto instituição, como têm apontado vários especialistas? A pergunta fica no ar. Mas, entre o desejo de que o encontro seja aproveitado pelos países mais pequenos para “sublinharem as suas prioridades” e a recusa de que esta semana seja “uma competição entre as grandes potências”, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU deixou um recado às principais potências mundiais: “É importante que os países participem neste fórum, ele só acontece uma vez por ano”, sublinhou Linda Thomas-Greenfield, citada pelo New York Times.
Com a presença de mais de 140 Chefes de Estado, a Assembleia Geral da ONU terá um protagonista claro: o Presidente da Ucrânia. Volodymyr Zelensky deixa o país, atualmente em guerra, para estar esta semana em Nova Iorque, onde discursará perante os Estados-membros da ONU (depois, parte para Washington, para um encontro com Joe Biden na Casa Branca e para voltar a discursar perante o Congresso norte-americano). O palco principal das Nações Unidas será uma plataforma para que a diplomacia de Kiev possa reiterar a importância do apoio à causa ucraniana.
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Não obstante, o facto de os holofotes estarem virados para Volodymyr Zelensky não agrada a alguns países, que sentem que a Assembleia Geral girará apenas em redor da guerra na Ucrânia, prejudicando a agenda que vários Estados-membros queriam que vingasse. Segundo o New York Times, vários países do Sul Global — normalmente marginalizados em grandes fóruns internacionais — esperavam que o encontro desse mais preponderância às suas necessidades, que deverão passar para segundo plano tendo em conta a participação do Chefe de Estado ucraniano.
Um possível frente a frente entre Lavrov e Zelensky
Na terça-feira, Volodymyr Zelensky será o 12.º a discursar. Antes dele, o Presidente do Brasil, Lula da Silva, faz a primeira das quase 150 intervenções na Assembleia Geral das Nações Unidas, seguindo-se Joe Biden. Marcelo Rebelo de Sousa será o 8.º a falar (e já prometeu que ia abordar o conflito na Ucrânia), sendo que imediatamente antes do Presidente da República subirá ao palanque o Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, que tem tido um papel de mediador entre Kiev e Moscovo.
O conselheiro da presidência ucraniana, Mykhailo Podolyak, já adiantou que o discurso de Volodymyr Zelensky incidirá sobre a necessidade de uma vitória rápida sobre a Rússia, salientando igualmente a importância do apoio militar de outros países. A ouvir este discurso, sentado também na Assembly Hall, estará o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, que será o representante da Rússia na Assembleia Geral das Nações Unidas.
Além de discursar perante o chefe da diplomacia russa, Volodymyr Zelensky terá a oportunidade de falar a países mais afastados da Ucrânia e que até simpatizam com a Rússia na Assembleia Geral. A diplomacia ucraniana terá, assim, uma plataforma para passar a mensagem de que é importante apoiar Kiev, tentando consolidar apoios — num momento em que muitos questionam o sucesso da contraofensiva que começou em junho — e cativar novos aliados.
Além disso, em Nova Iorque, o Presidente da Ucrânia deverá encontrar-se, à margem da Assembleia Geral, com vários líderes. Um deles é o primeiro-ministro de Israel (país que se tem recusado a enviar ajuda militar para a Ucrânia), Benjamin Netanyahu, e outro é o Presidente do Brasil — depois do desencontro de Hiroshima, durante a reunião do G7, em maio, Lula e Zelensky têm encontro marcado para esta quarta-feira, às 21h de Lisboa.
O discurso de Volodymyr Zelensky e os encontros bilaterais não serão as únicas oportunidades para realçar a importância de apoiar a Ucrânia. Assumindo a presidência do Conselho de Segurança, a Albânia, pertencente à NATO, marcou uma reunião extraordinária do órgão mais importante da ONU para quarta-feira para discutir precisamente o conflito na Ucrânia. O Chefe de Estado ucraniano, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo e o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, estarão frente a frente nesse encontro, para dos representantes britânico, chinês, francês e dos restantes nove membros temporários do Conselho de Segurança (Brasil, Emirados Árabes Unidos, Equador, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique e Suíça).
Não se espera, no entanto, que este encontro possa alterar o estado do conflito. Como membro permanente do Conselho de Segurança, a Rússia dispõe de poder de veto, o que complica qualquer resolução a favor da Ucrânia. Tal como salienta o Wall Street Journal, aquele órgão tem sido ineficaz em promover a paz, tal como a Assembleia Geral das Nações Unidas, na qual a Rússia tem conseguido encontrar alguns aliados.
Uma organização em crise? Sul Global reclama mais visibilidade
Criada no rescaldo da Segunda Guerra Mundial para assegurar a existência de mecanismos tampão — e espaço de diálogo — que impedissem o início de um novo conflito mundial, a agressão russa na Ucrânia veio colocar a nu várias fragilidades da ONU, nomeadamente a falta da unidade entre os Estados-membros para promoverem a paz e a falta de mecanismos eficazes para cessar as hostilidades, principalmente se um dos agressores for membro do Conselho de Segurança, o que acaba por condicionar a atuação do órgão mais importante da organização.
Adicionalmente, o maior conflito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial veio contribuir ainda mais para esse clima de desunião entre os Estados-membros. O secretário-geral da ONU, António Guterres, já o reconheceu. “A guerra na Ucrânia é hoje um grande fator do aumento das tensões geopolíticas e isso é uma grande razão para não conseguirmos resolver de forma eficaz os desafios dos tempos atuais”, afirmou o responsável.
Com a presença de Volodymyr Zelensky em Nova Iorque, os países do Sul Global temem que a Ucrânia canibalize toda a atenção mediática da Assembleia Geral. Esta queixa não é nova: vários Estados africanos e asiáticos têm manifestado alguma frustração com a desproporcionalidade com que o conflito na Ucrânia é tratado face aos problemas internos que atravessam.
A própria realização da Assembleia Geral deste ano gerou várias tensões. Os países do Sul Global sentem-se mais uma vez secundarizados e reclamam mais visibilidade, voltando à reivindicação da entrada de um país (como a Índia, o Brasil ou a África do Sul) no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A insatisfação, dizem os países do Ocidente, está a ser utilizada pela Rússia e pela China (também membros do Conselho de Segurança) para tentar afastar os países em desenvolvimento da órbita do Ocidente.
Ciente desta tática da Rússia e da China, segundo o New York Times, o Ocidente cedeu e tentou, na preparação desta Assembleia Geral, prevenir um confronto com o Sul Global, dando mais atenção a tópicos como a dívida pública, as alterações climáticas ou os objetivos que visam o desenvolvimento dos países do Sul Global.
Paralisada com vetos dos membros do Conselho de Segurança e arena de divergências cada vez mais profundas, a ONU pode estar a chegar um ponto sem retorno em que pede cada vez mais credibilidade e importância, como ficou provado pelas ausências de Emmanuel Macron, Rishi Sunak, Vladimir Putin e Xi Jinping da Assembleia Geral, que preferem apostar numa diplomacia mais centrada na prossecução dos interesses nacionais (ou em bloco) do que num visão conjunta.
“Estamos muito perto do abismo relativamente à diplomacia das Nações Unidas”, lamenta, citado pela Associated Press, Richard Gowan, diretor do think tank International Crisis Group, que acrescenta: “As tensões diplomáticas estão a ter cada vez mais um efeito na organização.” A Assembleia Geral das Nações Unidas será, também por isso, um teste à vitalidade (e validade) da organização.