Várias publicações que estão a circular por estes dias nas redes sociais alegam que o Presidente do Brasil, Lula da Silva, autorizou a legalização do aborto em todo o período da gravidez — ou seja, na prática, até aos nove meses de gestação, imediatamente antes do nascimento do bebé.

“O governo do amor não era contra? Esse sangue não levo em minhas mãos”, diz o autor de uma das publicações consultadas pelo Observador. Outras versões da publicação incluem acusações de “assassinato” de crianças e de “sacrifício de bebés e crianças no altar do demónio”.

Em todas as publicações surge a mesma ligação: um artigo publicado no site “Brasil Sem Medo”, uma página que se apresenta nas redes sociais como “o único streaming de notícias e análises sobre política e cultura declaradamente conservador”. A página já foi várias vezes incluída em listas de sites que disseminam notícias falsas sobre a política brasileira.

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O título do artigo do Brasil Sem Medo é “Governo Lula libera aborto em qualquer tempo gestacional”. No texto é feita referência a uma “nota técnica do Ministério da Saúde” que “estende para qualquer período da gravidez o assassinato de bebés e define aborto como ‘direito’ da mulher”.

É verdade que existe uma nota técnica do governo brasileiro sobre o assunto — mas a publicação que alega que o executivo decidiu permitir o aborto sem qualquer restrição e alargar a sua aplicação é totalmente falsa e resulta de uma distorção da nota técnica em questão, como explicou ao detalhe, no início de março, o jornal brasileiro O Globo.

O que está, então, em causa?

De acordo com O Globo, o aborto é crime no Brasil há várias décadas. O Código Penal brasileiro em vigor, implementado em 1940, determina que o aborto é crime, mas abre duas exceções: se houver risco para a vida da mulher grávida e se a gravidez for resultado de uma violação. Aí, o aborto não é considerado crime. E, de facto, a lei brasileira não estipula qualquer prazo limite — embora restrinja o aborto àquelas duas situações, não prevendo a interrupção da gravidez por vontade da mulher, como sucede na lei portuguesa.

Em 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal, foi acrescentada uma terceira exceção à lei penal brasileira: em caso de anencefalia fetal, isto é, a existência de malformações no cérebro do feto, também não é crime fazer um aborto.

Ora, em 2022, o governo do Presidente Jair Bolsonaro introduziu uma nova norma no ordenamento jurídico brasileiro que aumentou consideravelmente as restrições ao direito ao aborto, determinando que só seria legal fazer um aborto até às 21 semanas e seis dias de gestação.

Toda a controvérsia que deu origem a esta publicação falsa surgiu no final de fevereiro, quando o Ministério da Saúde do novo governo brasileiro publicou uma nota técnica para reverter aquela decisão do tempo de Bolsonaro. A reversão da norma de 2022 criou grande polémica nos meios mais conservadores — e, no dia seguinte, o governo suspendeu a validade daquela norma técnica, por considerar que ainda não tinha passado pelo crivo jurídico necessário para a sua publicação.

Ainda assim, como explica o jornal O Globo, a reversão da norma do tempo de Bolsonaro não abriria a porta ao aborto irrestrito no Brasil. Na verdade, simplesmente ficariam em vigor as normas do Código Penal de 1940 — ou seja, o aborto seria um crime, exceto naquelas três situações concretas de risco de vida da mulher grávida, de violação e de malformação no cérebro do feto. Nesses casos, efetivamente, a lei não prevê um limite de tempo para fazer o aborto.

Conclusão

Ao contrário do que a publicação sugere, o governo de Lula da Silva não legalizou o aborto no Brasil até aos nove meses da gravidez. A publicação distorce o verdadeiro sentido de uma nota técnica que existiu efetivamente para reverter o prazo imposto pelo governo de Bolsonaro para a legalidade do aborto — e que foi suspensa no dia seguinte. Ainda assim, caso essa nota estivesse em vigor, isso não significaria que o aborto seria irrestrito no Brasil: apenas regressava a aplicação do Código Penal de 1940, que prevê a criminalização do aborto em todas as circunstâncias exceto em três. Nessas três situações, é verdade que a lei antiga não previa um prazo legal — o que não tornaria o aborto irrestrito no país.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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