Daniel tocava na campainha do 1.º Direito do prédio onde seu filho mais novo vivia. Era um prédio da década de 60, com cinco pisos, entalado numa das muitas ruas da zona oriental do Porto, numa transversal da Av. Fernão Magalhães.

Situava-se numa zona antigamente habitada por gentes do Porto e que agora se encontrava preenchida com muitos migrantes .

O prédio exibia uma fachada descolorida em que a tinta há muito tinha desaparecido e naquela noite tinha um ar sinistro parecendo que se confundia com o céu negro de inverno.

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O trinco eléctrico abriu a porta e Daniel subiu a escada sem pressa, observando as paredes  esfaceladas. Sentiu um cheiro amargo que lhe parecia ou de tinta fresca ou de desinfectante. O andar tinha quatro pequenos quartos, distribuídos de forma labiríntica através de um corredor  incerto e estreito.

Ali vivia um dos seus filhos e mais três jovens, todos eles portugueses. Era excepção pois nos restantes andares do prédio só viviam migrantes. Cada um dos quatro rapazes pagava 300,00 €. Daniel tinha conhecido o senhorio do andar. Era um homem muito magro, mal vestido, com aspeto de ex- tóxico dependente, que de vez em quando exibia um sorriso estranho pois rareavam-lhe os dentes. Tinha dito maravilhas do seu filho e dos bons serviços que ele prestou aquando da instalação do andar para ser alugado. Dizia ele que o seu filho o tinha ajudado a transportar tarecos e até alguns móveis. Mas Daniel não via agora qualquer melhoria, desde que lá tinha estado anteriormente. A sala comum estava com metade das janelas preenchida com um cortinado grosseiro e opaco, de um castanho tenebroso, que se estendia a partir do teto sustentado por argolas brancas. Tinha provavelmente uma atmosfera de um quarto de bordel. Nenhum móvel era afinal do senhorio e o pouco mobiliário que ali estava eram coisas que os rapazes tinham levado para lá para sentirem algum conforto. Tudo tinha um ar provisório como se os moradores não quisessem ganhar raízes àquele lugar.

Daniel já tinha sido em tempos senhorio e lembrou-se do esforço que tinha tido para poder alugar um andar, mobilando-o com móveis do IKEA pois dizia-se que não se conseguia alugar nada com móveis usados; não percebia bem como agora a realidade da habitação para arrendamento se tinha transfigurado em 12 anos de forma tão gritante.

– O Porto está cheio disto Pai! – Dizia o filho de Daniel.

– São montes de andares com quartos alugados a gente anónima, que nem pensa em protestar. Não têm onde viver e depois aluga-se de qualquer maneira…

Daniel olhou à sua volta e ficou em silêncio. Lembrou-se daqueles que diziam que era preciso ocupar andares vagos para resolver o problema da habitação. Depois lembrou-se ainda das promessas do Governo com vastas leis em prol dos mais desfavorecidos. Recordou ainda a visita que fez a um quartel no tempo da pandemia, com vários hectares desaproveitados em plena Circunvalação do Porto. E por fim veio-lhe à memória um inquilino que vivia numa boa casa junto à Casa da Música e que se gabava de pagar uma ridicularia de renda ao senhorio há 30 anos.

Mas Daniel via tanta construção na cidade do Porto, habitações que demoravam tantos anos para serem concretizadas e não percebia como se podia prometer milhares de habitações em tão pouco tempo, como ouvia frequentemente. Haveria assim tantos empreiteiros cheios de vontade de trabalhar para o Estado? Duvidou disso.

Num lampejo Daniel, lembrou-se por fim, da sua Avó que pagava 1,5 € por mês por uma casita na Rua de Bonjardim no Porto há 50 anos, fruto do congelamento de rendas feito por Salazar. Agora ouvia novamente em congelamento de rendas e na “responsabilidade social“ a que os proprietários deviam estar obrigados.

Acabou por concluir que no essencial o problema habitacional, para muitos, era o mesmo de sempre. A pobreza mantinha-se no interior da cidade, escondida e camuflada e os benefícios do AL – Alojamento local e que agora se estancava, não chegariam para salvar tanto património da cidade.

Se calhar era isso que tornava a cidade do Porto tão atractiva e típica para quem a visitava. Seriam as texturas das fachadas decrépitas? Interessantes e até curiosas, a registar nas fotos dos telemóveis, diriam alguns turistas. São ambientes sui generis, diriam outros.

Daniel despediu-se do seu filho e enquanto descia a escada sentiu um buraco dentro de si, voltando a inalar aquele odor incógnito do prédio.

Percebia melhor as mentiras camufladas dos políticos que lia e ouvia diariamente na comunicação social quando apresentavam soluções para o problema da habitação.

Novas leis iriam surgir para “corrigir assimetrias” e em nome dum qualquer “simplex”. Lia neles a divisão de esforços entre partidos políticos que não traria a resolução de tão colossal problema. No fundo focavam-se em ser imediatistas e populares junto dos seus público-alvo. Daniel sentiu emergir no seu estômago uma azia forte com aqueles pensamentos e procurou um pacote de açúcar no bolso enquanto entrava no carro.