A que distância estaremos realmente do objetivo de sinistralidade zero, traçado para o ano 2050 à custa de uma frota integralmente composta por veículos autónomos, capazes de artificialmente percecionar, compreender e agir-decidir, sem intervenção humana?

Para conseguir deslocar-se de um destino para outro, evitando obstáculos e acidentes e estacionando em segurança, sem intervenção humana, um veículo autónomo precisa de combinar sensores e sistemas de inteligência artificial mimetizando o que se esperaria de um condutor perfeito e infalível. No coração de um carro autónomo residem sistemas, que criam e gerem mapas do ambiente envolvente com base no input recebido dos sensores nele instalados, como por exemplo radares, lidares e câmaras.

O software processa e mapeia os inputs recebidos, pondera-os de acordo com o seu nível de inteligência (que inclui regras core inegáveis, algoritmos para evitar obstáculos, modelação preditiva, software de identificação/descriminação de objetos) e decide, enviando instruções que os demais componentes executam, determinando por exemplo que o veículo circula a determinada velocidade, toma certa direção, pára, arranca ou trava em determinado momento. Quanto mais robusta e evoluída for a inteligência artificial, mais eficaz e eficiente será o veículo autónomo e menor necessidade de controlo humano se justificará.

A Autoridade norte-americana para a segurança rodoviária e de tráfego nacional (National Highway Traffic Safety Administration) definiu 5 níveis de evolução contínua na tecnologia de condução autónoma. No nível 0, sem automação, o condutor humano tem controlo total do veículo. Entre os níveis 0 e 4 os humanos têm, um cada vez, menor nível de controlo, mas, em situações de crise, em que o software não consegue ter um nível de segurança adequado para reagir, devolve o controlo ao condutor humano, que decide. No nível 4, o veículo é conduzido sem qualquer controlo humano, não dispondo sequer de volante ou pedais.

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O objetivo que abre este artigo encerra a ideia de que os veículos possam vir a ser capazes de cumprir todos os desafios de condução, em segurança e de acordo com a regulação rodoviária num nível 4, sem qualquer intervenção humana. Na presente data, a linha de carros autónomos Alphabet não tem volante e é uma aposta em veículos de nível 4. Os fabricantes Lyft, Uber e Volvo têm apostas igualmente radicais e perseguem soluções de automatismo integral, estando apostados em dirimir barreiras legislativas ao mesmo tempo que procuram uma consciencialização crescente e um aumento da empatia global do público pelos carros completamente autónomos.

A iniciativa “Self-Driving Coalition for Safer StreetsOpens a New Window” é um esforço de materialização concreta desses objetivos. Na Europa, a Alemanha permitiu que a Volkswagen começasse a testar carros capazes de deslocação e auto-estacionamento no Aeroporto de Hamburgo. A Volvo está a testar carros e autocarros autónomos em Estocolmo e, na Holanda, a Amber Mobility está prestes a lançar um serviço contando com carros autónomos elétricos. No Reino Unido o Governo lançou recentemente a iniciativa de condução autónoma (a UK Autodrive initiative) mas cautelosamente está também a proceder a uma avaliação da segurança com uma base trianual, não tendo ainda aprovado a realização de testes nas redes viárias públicas. Igualmente sem pedais e sem volante, o AUTONOM SHUTTLE, do fabricante Navya, move-se eficientemente e consegue tomar decisões com elevado nível de segurança e acuidade, muito embora percorrendo pequenos percursos de forma controlada em cidades como Perth, Las Vegas, Christchurch, Michigan ou Londres.

Contrastando com os exemplos de iniciativas de nível 4 – já muito alinhadas com os objetivos do ano 2050 – e essencialmente direcionadas a serviços públicos no que concerne a consumidores finais a oferta é, ainda e essencialmente, de semi-automação, permitindo que o condutor assuma o controlo, ou que o próprio veículo lho devolva se for incapaz de decidir-agir em determinado momento crítico de condução.

Pretende-se idealmente que, se a máquina não conseguir decidir-agir, o Homem assuma o controlo e decida (bem) em sua substituição. Noutro cenário, igualmente ideal, se a máquina estiver prestes a cometer um erro, a vigilância e atenção do Homem deverão permitir tomar-lhe o controlo e evitá-lo. A máquina deverá ir interiorizando e aprendendo com o que observa na condução humana (devolvida ou tomada), enriquecendo a sua aprendizagem natural profunda e evoluindo na sua capacidade intelectual (artificial).

Sucede que o equilíbrio complementar de forças entre Homem e máquina, que deveria permitir uma evolução rápida e consiste da inteligência artificial, não tem sido linear. Os acidentes ocorridos em maio de 2016 e de 2017 nos Estados Unidos (um dos quais, com uma vítima) servem, não só para questionar o nível de maturidade da tecnologia, mas também para colocar um ponto de interrogação sobre a efetiva capacidade do Homem para superar a tecnologia em situações de crise ou de particular tensão.

Em qualquer um dos acidentes de viação ocorridos, o condutor não foi capaz de assumir o controlo de condução, corrigir a mesma e evitar o acidente, estando em linha com os estudos científicos que demonstram que, em geral, os seres humanos têm muita dificuldade em decidir de forma rápida e em segurança, justificando os níveis de sinistralidade por “falha” humana acima de 90%.

No entanto, tem sido muito difícil à inteligência artificial apreender aspetos da ação-reação humana. Os humanos tomam decisões aleatórias, não têm capacidade ilimitada de observação e de perceção, não decidem por layers, de forma síncrona e estruturada, são condicionados por contexto, preconceito, experiência, raramente têm um índice de vigilância e atenção que lhes permita sequer estar próximo da infalibilidade e têm um número de neurónios e sinapses que os levam a ponderar o imponderável e a agir de acordo com uma complexa e intrincada rede de valores, por ora, ainda difíceis de replicar (sequer por aproximação) pela rede neuronial mais sofisticada que existe.

Talvez devido a tão Humana complexidade, os cidadãos continuam reticentes a uma incondicional e irrevogável entrega de controlo da condução a uma máquina, ainda que, objetivamente, seja mais provável ter um acidente determinado por falha humana. A remota e improvável hipótese de a Inteligência Artificial poder decidir sacrificar a vida de um condutor em prol da defesa de um outro valor é (compreensivelmente) desconfortante, mais ainda se estiver em causa a hipótese de um risco fatal associado à nossa integridade física ou à dos nossos entes queridos, ainda que, na mesma situação, pudéssemos decidir de igual (ou pior) forma.

No fundo, à questão se mandaríamos os nossos filhos para a escola num veículo autónomo com uma probabilidade de acidente de viação mortal de (apenas) 0,001% (muito inferior ao risco inerente a uma condução humana), muito provavelmente responderíamos negativamente e com uma fundamentação eminentemente emocional.

Neste contexto, os cientistas definiram um novo desígnio para a Inteligência Artificial de veículos plenamente autónomos.

A infalibilidade.

Apenas esta parece, objetivamente, não estar presente no Homem e poder justificar, numa relação de custo-benefício, a entrega do controlo da condução à máquina. Apenas este grau de maturidade e robustez para a Inteligência Artificial parece ser suficiente para contrariar o ceticismo e desconfiança dos cidadãos na mobilidade plenamente autónoma, viabilizando-se um futuro querido, de plena automação de condução e sinistralidade zero.

No Instituto de Investigação Toyota, no MIT, o cientista Ryan Eustice e a sua equipa estão atualmente focados no desenvolvimento de um carro incapaz de causar acidentes. Ali perto, outros investigadores norte-americanos procuram poder contribuir com o treino profundo de Inteligência Artificial (Deep Learning) para a capacidade de decisão de acordo com os valores da defesa e preservação da vida humana e da ordem social.

Se tudo correr bem, pode ser que 2050 se cumpra antes do tempo que falta para lá chegar.

Carina Branco é sócia fundadora da Techlawyers e é especialista na área da tecnologia, inovação e criatividade. Advogada desde 1997, teve desde cedo contacto com as primeiras tecnológicas multinacionais que chegaram a Portugal no final dos anos 90 (v.g. Cisco Systems e AMS). Foi responsável da Direção Jurídica da tecnológica Novabase (2002-2017) e em parceria com a sociedade de advogados pbbr fundou a Techlawyers by pbbr, um novo conceito na área da advocacia que atua transversalmente no setor da Tecnologia, IT e indústrias da criatividade e inovação.