1 É difícil imaginar alguém mais indicado para quebrar o unanimismo vigente na cena política nacional desde o início da crise sanitária do que Eduardo Ferro Rodrigues. Imprudente, arrogante e sectário, Ferro deixou vir ao de cima essas suas velhas características políticas para dividir a Opinião Pública sobre uma data que merece um consenso óbvio da esquerda à direita, dos mais novos aos mais velhos e dos mais letrados aos menos informados: o 25 de Abril é a celebração da liberdade e o início da construção do regime democrático.
Olhemos primeiro para o método de Ferro Rodrigues para manter as celebrações do 25 de Abril no Parlamento, apesar de tudo o resto. Citemos Inês Sousa Real, líder da bancada do PAN, em declarações à Visão: “Foi-nos transmitido, no início da conferência de líderes parlamentares [que se realizou no dia 15 de abril], que o presidente da Assembleia da República já tinha falado com o Presidente da República e com o PSD” e que, portanto, já havia uma “decisão da maioria.” Como diz Sousa Real, e bem, esta é uma “forma pouco democrática” de tomar uma decisão mas é assim que Ferro diz que a decisão foi tomada por 90% dos votos. Uma maioria albanesa conseguida com métodos venezuelanos.
Além desta censurável forma de agir, Ferro Rodrigues e os partidos que aprovaram a sua proposta revelaram uma tremenda falta de bom senso ao avançarem para uma decisão destas sem antes consultarem a Direção-Geral de Saúde (DGS) — só esta segunda-feira é que a autoridade nacional de saúde será informada pelo Parlamento das condições em que as celebrações decorrerão. Não se compreende, aliás, que a 10 de março Ferro tenha decidido consultar a DGS antes de interromper as sessões do Parlamento do Jovens mas agora não tenha feito o mesmo.
Por outro lado, não se percebe como o presidente do Parlamento quer organizar uma cerimónia com 130 pessoas — 50 dos quais convidados — quando o país está em Estado de Emergência até ao próximo dia 2 maio — proposto pelo Presidente da República e renovado pela Assembleia da República — e quando os eventos com mais 100 pessoas foram proibidos pelo Governo logo a 15 de março.
2 Não contente com todas estas incongruências, Ferro Rodrigues ainda tentou corrigir João Almeida como se fosse um mestre-escola do antigamente por o deputado do CDS ter tido a ousadia de criticar a decisão da conferência de líderes. Não é a primeira vez, nem será a última, que o presidente do Parlamento exerce uma espécie de ‘contraditório’ sobre afirmações dos deputados das bancadas do centro-direita (e não, não estou a incluir um partido radical como o Chega nessas bancadas) que mais não é do que uma tentativa de menosprezar uma opinião diferente da sua.
Não, a arrogância da segunda figura do Estado vai mais longe do que isso. Para socialistas como Ferro, que nasceram nas franjas do radicalismo da extrema-esquerda que defendia a ‘pureza de Abril’ e viraram pretensos moderados ao entrarem para o PS, a direita não é naturalmente democrática. Além de apenas ter o direito a ser uma espécie de acessório do sistema parlamentar — exceto quando os portugueses, para mal dos pecados dos ‘ferros’ e dos ‘louçãs’ desta vida, votam por uma maioria de direita para governar —, tem de ser regularmente admoestada por simplesmente existir.
Na cabeça de Ferro Rodrigues, chama-se a isso ser um verdadeiro democrata — um conceito não muito diferente daqueles que ainda hoje dizem que a sua ‘democracia’ é a única admissível: os comunistas.
3Pior do que tudo foi a tentativa de Ferro e de Ana Catarina Mendes (PS) de tentarem transformar um sentido de revolta genuíno de muitos milhares de famílias numa questão ideológica. É preciso ser muito desonesto intelectualmente — e ter tendência para a pequena canalhice política — para ver qualquer espécie de “pressão de saudosistas” do fascismo numa preocupação genuína com a saúde pública nas cerimónias do 25 de Abril. Só cabecinhas sectárias e muito desligadas da realidade podem pensar assim.
Fechados na sua bolha de socialistas encantados com os elogios que a imprensa internacional vai fazendo ao relativo sucesso de Portugal no combate à pandemia — um mérito dos portugueses que o PS confunde com elogios ao Governo —, Ferro Rodrigues e a líder parlamentar do PS não percebem a revolta natural de quem viu familiares morrerem durante a pandemia sem poder ir aos respetivos funerais por respeito às regras do Estado de Emergência. O presidente do Parlamento e Ana Catarina Mendes não querem entender que há uma flagrante contradição do poder político quando restringe fortemente, e bem, a liberdade de circulação dos portugueses e impõe corretamente um dever geral de confinamento mas autoriza uma reunião com 130 pessoas que terão de deslocar-se de vários pontos do país para estarem na Assembleia da República no dia 25 de Abril.
Quando o país está a começar a preparar a reabertura da economia para depois de 2 maio, mas num contexto em que os mais velhos terão de continuar a ser especialmente protegidos e continuar em confinamento voluntário, que exemplo quer dar a Assembleia da República? Que mensagem quer passar Eduardo Ferro Rodrigues — ele próprio um membro de um grupo de risco etário devido aos seus 70 anos — às pessoas da sua idade? O que vão interpretar as pessoas mais idosas quando olharem para a televisão e constatarem que os principais titulares de cargos políticos e públicos — alguns dos quais membros de grupos de risco — mandaram às malvas as regras do Estado de Emergência?
Bem esteve Jorge Sampaio (80 anos) ao anunciar que não estaria presente por razões de saúde, como também agiu corretamente Vasco Lourenço (77 anos), presidente da Associação 25 de Abril, ao criticar o número exagerado de convidados.
Se a Ferro Rodrigues e ao Parlamento faltam bom senso, o mesmo não se pode dizer da CGTP sobre as manifestações do 1.º de Maio. Depois da UGT se ter recusado a organizar a sua tradicional manifestação, a secretária-geral da CGTP afirmou à Rádio Observador que central sindical não vai igualmente realizar a sua habitual mobilização de milhares de trabalhadores nas ruas de todo o país. Vai sim organizar iniciativas que respeitarão o distanciamento social e, promete Isabel Camarinha, com uso de máscara. Uma questão a acompanhar e a escrutinar.
4 A cerimónia do 25 de Abril podia perfeitamente realizar-se com Ferro Rodrigues, o primeiro-ministro António Costa, um representante de cada bancada parlamentar e apenas um convidado: o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Sem a presença de outros convidados e de jornalistas. Com a transmissão dos discursos via televisão, o país poderia assistir à cerimónia e ficaria com a mensagem correta de que vivemos um tempo de exceção que justifica medidas extraordinárias. E, mais importante, de que a reabertura da economia terá de ser muito cautelosa.
Basta ver, por exemplo, como a Alemanha agiu para celebrar as comemorações dos 75 anos da libertação dos campos de concentração de Sachsenhausen, Ravensbrück e Bergen-Belsen. Em vez de cerimónias, foram transmitidas por videoconferência mensagens do ministro dos Assuntos Exteriores e da secretária de Estado da Cultura do Governo de Angela Merkel.
Outro exemplo que devia ter sido seguido — e sem comprometer a laicidade que distingue a República — dá pelo nome de Papa Francisco. De forma verdadeiramente exemplar, o Papa celebrou as missas da Sexta-Feira Santa e do Domingo de Ramos sozinho na Basílica de São Pedro e fez a Via Sacra na Praça de São Pedro acompanhado de poucas pessoas. As imagens daquelas liturgias foram tão impactantes que acabaram por reforçar a importância simbólica daquelas datas para os católicos.
Da Igreja também vêm bons exemplos que, neste caso, podiam e deviam ter sido seguidos pelo Parlamento.
5 Depois da patranha de que nada faltou ao Serviço Nacional da Saúde no combate à pandemia proferida por António Costa a 23 de março. Depois de se saber que o Ministério da Saúde apenas comprou fatos de proteção individual para os médicos em março após quatro alertas da Organização Mundial da Saúde desde fevereiro. Depois das pequenas rábulas da DGS em março de não realizar testes em larga escala nem recomendar a utilização de máscaras — pela simples razão que não tínhamos nem testes, nem máscaras em número suficiente.
Depois de tudo isto, António Costa já estava novamente a atirar areia para os olhos dos portugueses com o delicado tema da austeridade. Após semanas a jurar que tudo seria diferente de 2011 — ano em que o maldito e sádico Governo de Passos Coelho impôs a austeridade porque simplesmente quis (é essa a mensagem que Costa e os seus apaniguados querem passar), o primeiro-ministro parece ter evoluído na sua posição. Agora já não dá “hoje uma resposta que amanhã não possa garantir”, afirmou ao Expresso.
Com as últimas previsões do Fundo Monetário Internacional a indicarem que Portugal pode ter uma taxa de desemprego de cerca de 13,9% — mais do dobro dos valores atuais — e uma queda do Produto Interno Bruto de cerca de 8%, é positivo que António Costa tenha percebido que lhe podia custar muito caro aos olhos dos eleitores essa sua tendência para efabular os factos. É que as taxas de popularidade de um primeiro-ministro não se costumam dar muito bem com crises económicas.
Texto atualizado às 01h25 de 21 de Abril
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