E, depois, há sempre esta ideia — muito naturalista — que nascemos ensinados. E que o ideal seria sermos devolvidos a uma atmosfera, quase bucólica, de um equilíbrio etéreo entre nós e aquilo que nos envolve. Que está presente em muito daquilo que se passa connosco. Quer quando nos apaixonamos e, em vez de tudo decorrer com trabalho e trabalho da nossa parte, alguém se apresse a vaticinar que fomos “feitos” um para o outro. Quer quando se acha que uma mulher, por ser uma mulher, quando é mãe pela primeira vez, nasceu a saber amamentar. (O que não é verdade.) Ou quando qualquer um de nós deseja ter um filho, e se cria a ideia que ele se educa “naturalmente”. Como se o código genético fosse um piloto automático — todo cheio de “sexto sentido”’e de “um dedo que adivinha” — e nada se aprendesse com sobressaltos, com hesitações e com falhanços. Ou quando as crianças, porque estão na escola, são ou “naturalmente” espertas ou têm, naturalmente, dificuldades. Ou aprendem todas da mesma forma ou à mesma velocidade, e enquadrados nas mesmas “fases”, sem que precisem que haja quem destrince a sua forma de pensar e faça pontes com ela, sem as quais elas não vêem mais longe. Ou, ainda, se separasse — duma forma incompreensível — o brincar do aprender. Como se o brincar fosse, naturalmente, a imagem de marca da infância. E aqueles que o defendem fossem contra o aprender ou imaginassem a infância, num registo idílico onde o brincar na rua, o sujar, o experimentar ou o inventar fossem inimigos da escola, das metas curriculares e doutras coisas assim. E, “naturalmente”, como se a infância fosse sinónimo de alegria, de felicidade, de desprendimento e de magia. De colo, de mimo e de família. Em vez de ser, ao contrário daquilo que todos queremos, muito diferente dessas aspirações naturalistas a quem a vida, tantas vezes, troca as voltas.

Depois, talvez por influência desta ideia muito naturalista, tornou-se vulgar que — seja a propósito duma equipa de alta competição, dum produto ou duma empresa ou, simplesmente, do desempenho dum filho — o argumento dos argumentos passe pelo “ADN”. Como se, ao mesmo tempo que se clama pela biodiversidade, prevalecesse uma certa unicidade de preconceitos biológicos e naturalistas. Quase como se a biologia mandasse e nós obedecêssemos. Como acontece, aliás, a propósito da política ou do desporto. Onde há os “líderes natos”, os carismáticos ou os “predestinados”. Ficando no ar a ideia que, tirando, os argumentos naturalistas, não resta muito espaço para pensar, conversar, argumentar, desejar ou experimentar. Ou, simplesmente, para aprender.

Mas, apesar deste furor bio e duma agenda ecológica — indispensável, aliás — há uma onda pouco naturalista de felicidade sintética. Onde, em vez do aprender com os problemas ou com as dificuldades, tivéssemos sempre à nossa espera uma solução simples, fácil, rápida e eficaz. Sem efeitos secundários, claro. Quer quando uma criança tem falta de apetite, e há sempre umas “gotinhas” à espera dela. O mesmo quando se emaranha com o sonho. E, claro — esteja ela cansada, não haja uma ponta de química entre ela e um professor, tenha o mundo lá de casa num reboliço, esteja simplesmente insegura ou aflita, ou seja ela vítima de bulying, por exemplo — quando a facilidade com que se diz que ela não está atenta, não se concentra ou é hiperactiva recomenda que tudo se resolva com outras gotinhas. Ou se está em pânico com os testes ou à beira do colapso, há sempre mais outra “solução” sintética que a faz controlar as emoções, a ansiedade, a tristeza ou, mesmo, os pensamentos maus.

Ora, nada é tão biológico como se diz. E tudo se aprende, mais do que parece. Daí que me incomode quando as dificuldades das crianças sejam “catalogadas” como dificuldades… delas. Genéticas, pois claro. Como se por trás duma criança difícil nunca estivesse um adulto em dificuldades. Ou como se os sintomas dos filhos não fossem, “regra geral”, a tradução dos sobressaltos dos pais. É estranho que, num mundo tão escolarizado e capaz de aprender, as nossas aprendizagens amorosas, familiares ou parentais fossem objecto de mal-estar ou de censura e aquilo que manda seja a biologia. Aliás, quando chamamos a atenção para os deslizes ou para os erros dos pais, a onda de comentários ásperos acerca da forma como eles são “responsabilizados”, é enorme. Como se os pais não errassem. Fossem, invariavelmente, capazes e competentes. E fosse quase inconveniente chamar a atenção para o peso que têm no comportamento dos filhos. Como, aliás, acontece com todos nós em relação a tudo resto, à nossa volta.

É verdade que, em muitos momentos, nós e a biologia das coisas nos damos mal. É verdade que cometemos exageros. E que, mais do que devíamos, somos desmedidos na relação com ela. E que lhe fazemos mal. Mas também a moldamos. E aprendemos com ela. E, muitas vezes, mexemos com ela e tornamo-la melhor. Nada é tão irremediavelmente biológico como parece. Depende daquilo que aprendemos. Sem dar por isso, sem querer mas, também, quando nos dispomos a compreender aquilo que nos liga a tudo o que acontece. Às vezes, esta ideia muito naturalista e muito biológica apela demais à preguiça. E alimenta, vezes sem conta, a ideia de que seremos, sobretudo, vítimas. Ou aconchega-nos no conformismo. Como se, diante dela — seja em relação ao ambiente como a propósito das nossas relações — nos perdêssemos quando discorremos, quando desejamos, quando escolhemos e quando pensamos. Como se o mundo se fizesse de uma biologia de coisas banais impenetrável aos nossos actos. E, de erro em erro, a biologia e nós não nos matizássemos nem nos tornássemos, um ror de vezes, mais cúmplices e melhores.

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