“E foi aí que conclui que, afinal, eu não conhecia aquela pessoa”. Sendo que aquela pessoa era o seu marido. Há cinco, dez ou vinte anos. E, entretanto, acabaram por se separar. De forma surpreendente; para um deles. Talvez porque nunca discutissem. Logo, por isso mesmo, estaria tudo bem.

Concluir que, afinal, não se conhecia aquela pessoa, serve para atribuir uma espécie de transfiguração trazida pela separação. Como se tudo o que se sabia sobre ela tivesse ficado comprometido. Trazendo consigo a dúvida sobre qual das duas versões dessa pessoa que se conhecia muito bem será a verdadeira: aquela que vigorou até à separação; ou a outra, que despontou, logo a seguir.

Habitualmente, quem se surpreende porque não conhecia “aquela pessoa” desbobina todas as coisas horríveis em que ela se tornou. Por mais que, logo a seguir, como se fosse uma guerrilha, encontre nisso o álibi para que o seu ódio se afie e se solte. Ficando no ar a dúvida sobre a que pessoa que não conhecia se estaria a referir quando, entre o asco e o desdém, falava “d’aquela pessoa”: se daquela de quem se divorciou; se de si própria. Sempre que tudo o que a inquina se entrincheirou e, de tão tamanho, precisa (por isso mesmo) que vá assassinando a pessoa de quem se separou para que o seu ódio não a mate a si.

Ou, então, é o sofrimento misturado com revolta e com rancor que se comporta como um tsunami. E aquilo que se supunha saber sobre “aquela pessoa” fica submerso por uma onda torrencial de destroços que faz com que tudo passe a ser desconhecido. E, de repente, o mundo parecesse transformar-se num labirinto de ruínas de onde não se enxerga a saída. Só o que, entretendo, se desconhece. E onde tudo, até o familiar, se torna estranho.

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Mas a ideia que se conhece – sem obstáculos, sem segredos ou sem coisas opacas – “aquela pessoa” é o melhor sinal de que nos divorciámos dela. Antes de se tornar estranha. Porque, por outras palavras, é uma forma de dizermos que ela perdeu toda a surpresa. Ou os seus recantos de mistério. Ou a necessidade de nos entaramelarmos antes de chegarmos a um rasgo de ideias novas que ela nos traga. É por isso que muitas pessoas se transformam em estranhos que se conhecem bem. Porque é como se o tempo, os solavancos todos que a vida no traz, as atribulações que nós encontramos mais ou menos sozinhos, os medos que nos encurralaram, as desilusões, os falhanços ou os sonhos que ora adiámos ora de quem nos perdemos, mal passassem por nós. E a tudo isso reagíssemos como se nada nos tivesse tocado. Ou nos ousasse transformar. Ou se depois de nos conhecerem nos tornássemos, para sempre, conhecidos. Em quase tudo. E não merecêssemos nem a curiosidade, nem o espanto, nem o cogitar desassossegado sobre os nossos silêncios ou diante daquilo que estaremos a pensar. Se for assim, talvez aquilo que mais nos transformou (ou transfigurou, até) poderá ter sido a pessoa que, a determinado momento, nos passou a considerar “aquela pessoa”. A quem nos fomos adequando como um vírus que se deixa embalar pelo seu hospedeiro. E vice-versa.

É verdade, também, que “aquela pessoa” pode ter sido, desde sempre, outra pessoa qualquer que não ela própria. E que as duas se tenham aceitado com as estranhezas que não compartilharam. Porque entenderam que, a exemplo dos defeitos físicos ou dos traumatismos que se coleccionaram, aquilo que une duas pessoas ao crescimento numa relação é o que de mais exuberante se supõe que afasta as pessoas de se conhecerem tal como são. E aí, sim, claro, aquilo que nos une é a sensação que tudo o que o outro conhece de nós é a forma como se projecta naquilo que temos e em que se identifica. E que isso seja o quanto basta para se estar junto. Numa atmosfera de “se eu ficar por aqui tu não sais do pé de mim”. Como se as coisas que não unem nos mantivessem. Se bem que mantermos-nos assim seja renunciarmos ao desbravar, ao encantamento e à vida. E o amor fosse, dessa forma, uma ferida que só o tempo ajuda a sarar.

A verdade é que quando “aquela pessoa”, apesar da estranheza com que passamos a vê-la, continua a viver dentro de nós. E transporta-nos para um lugar árido e seco em que deixamos de saber quem somos. E ai, mais do que vítimas, talvez nos assumamos como desconhecidos de nós próprios.

O que dói, de verdade, nessa altura, não é tanto que a pessoa com quem dividimos a intimidade se tenha transformado “n’aquela pessoa”. Mas reconhecer que preguiçámos diante de todos os sinais que ela nos deu. Que desistimos de os acolher e esmiuçar. Porque nos agarrámos à ilusão que, por mais que ela tivesse sempre coisas novas para nos dizer, a conhecíamos. Duma ponta até à outra. Sem nada de novo. E, então, talvez tenhamos sido nós que a fomos transformando “n’aquela pessoa”. Sempre que desistimos de a conhecer melhor. Para além de tudo o que de mais ou menos familiar ela já tinha.

Sendo assim, o “e foi aí que conclui que, afinal, eu não conhecia aquela pessoa” talvez não seja um ror de acertos de contas. Nem ódio. Nem revolta. Nem, mesmo, perplexidades. Ou uma onda súbita de estranheza. São, sobretudo, remorsos. Só remorsos. Simplesmente.