No passado dia 9 de Novembro, a Fundação Francisco Manuel dos Santos lançou um interessante estudo sobre o estado da habitação em Portugal, da responsabilidade de Alda Botelho Azevedo e João Pereira dos Santos. Infelizmente, nessa semana, andámos todos a discutir a demissão do Primeiro-Ministro, a dissolução da AR e os contornos dos inúmeros “casos” políticos ao mais ínfimo pormenor. No meio da azáfama política focada no curto prazo, não se deu a atenção devida a este Barómetro da Habitação que a FFMS lançou, para o qual entrevistou uma amostra representativa da população portuguesa (1082 inquiridos) e que chegou a uma série de conclusões interessantes.

Em Portugal, os ministérios sectoriais tomam decisões em cima do joelho, sem antes realizarem estudos sobre a evolução dos factos e preferências dos portugueses. O pacote Mais Habitação é um belíssimo exemplo de como se fazem políticas públicas em Portugal: um documento muito parco em dados e detalhes, com medidas inventadas à pressa, que alguém nos gabinetes ministeriais achou que cumpririam os mínimos satisfatórios do debate público, sem antes ouvir os especialistas nos assuntos e realizar estudos sérios sobre a realidade. Passados poucos meses já ninguém se lembra, nem ninguém quer saber, e assim vamos saltando de assunto em assunto.

Este barómetro interroga os portugueses sobre três coisas: como vivem, quais as suas percepções e quais as suas preferências quanto a medidas que possam ser aplicadas no sector da habitação. Todas as três partes são interessantes e trazem dados curiosos e inesperados.

Como vivem os portugueses? A maioria reside em casa própria (cerca de dois terços) e, em média, os portugueses vivem na mesma habitação há cerca de 20 anos, o que revela uma reduzida mobilidade no sistema residencial. Cerca de 35.2% dos portugueses vive em casa própria sem encargos, a maior fatia, e 31% em casa própria com empréstimo bancário. Curiosamente, apenas 17.2% dos entrevistados arrendam casa no mercado privado, uma percentagem bastante baixa da população, e 2% arrenda no sector público, revelando que o Estado desprezou a questão habitacional nos primeiros 50 anos de democracia, apesar de esta ser um direito consagrado na constituição. Uma fatia considerável dos portugueses, cerca de 13.3% dos inquiridos – note-se que é uma percentagem quase tão elevada quanto a fatia do mercado de arrendamento privado — vive em casas cedidas sem custos (de familiares, emprestadas, herdadas ou a título de salário). No total, cerca de metade dos entrevistados não tem encargos mensais com habitação, o que nos deveria fazer reflectir sobre a influência assimétrica da questão da habitação nos eleitores.

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No entanto, os mais jovens e aqueles que recorrem ao mercado de arrendamento privado estão, em geral, bastante mais insatisfeitos com a habitação em que residem. Estes dados parecem-me apontar para uma conclusão preliminar: como em muitas outras coisas no panorama português, os custos da chamada “crise da habitação”, que adquiriu grande urgência nos últimos anos, estão concentrados de forma muito considerável numa fatia bastante minoritária da população, razão plausível para a pouca importância eleitoral do assunto, mas para a sua enorme urgência. Acresce a este facto que estes custos são muitas vezes suportados por pessoas mais jovens, que votam menos e que são quase ignoradas pela política nacional. Ao longo das últimas décadas, a política em Portugal focou-se sobretudo nos pensionistas e nas camadas mais velhas da população. A desigualdade territorial na habitação também é considerável. O peso político daqueles que sofrem as consequências deste panorama habitacional é tão baixo que o governo se pôde dar ao luxo de ignorar o assunto nos últimos oitos anos, e, com grande probabilidade, poderá continuar a fazê-lo.

O estudo confirmou ainda o que muitos intuímos acerca da má qualidade do parque habitacional português. Da qualidade da construção à sua eficiência térmica e energética, as casas em Portugal deixam muito a desejar. Quando questionados sobre que melhorias urgentes a sua habitação precisa, 15% respondeu que necessitavam de maior isolamento de portas/janelas, quase 11% tem problemas de infiltrações ou excesso de humidade, 2.6% precisa de substituir canalizações, e 8.5% salienta a necessidade de instalar sistemas de aquecimento ou arrefecimento fixos.

E preços? O estudo mostra que, em média, aqueles que arrendam no sector privado pagam cerca de 678 euros mês, enquanto aqueles que têm casa própria têm encargos mensais de 525 euros, mais uma vez revelando que os arrendatários no sector privado têm sido os principais perdedores do mercado da habitação. Note-se, no entanto, a enorme heterogeneidade que está escondida nestes valores. Ainda há muitos inquilinos a pagar menos de 100 euros por mês pela sua casa e, por outro lado, cada vez mais inquilinos a pagar mais de 1000 euros mensais. Por exemplo, segundo o Censos de 2021, dos 347 mil fogos arrendados na Área Metropolitana de Lisboa, onde os preços da habitação subiram a pique nos últimos anos, 21% ainda estão arrendados por menos de 150 euros. Simultaneamente, vemos a dificuldade que muitos jovens – que só agora chegam ao mercado habitacional – têm em encontrar casas com rendas inferiores ao valor mensal do salário mínimo nacional.

Assim, e apesar desta ser uma leitura minha do estudo (e não um argumento ali avançado), tal como o mercado laboral português, o mercado da habitação parece ter traços profundamente duais. Uma fatia considerável da população, aqueles que entraram no mercado nos últimos 10 anos, têm uma enorme dificuldade em navegar o mercado de arrendamento privado e em conseguir comprar uma casa, uma outra fatia considerável tem muitas vezes contratos antigos, de longo prazo, cujos valores estão totalmente desajustados da realidade actual e impedem sequer os senhorios de fazer uma manutenção decente da qualidade das casas (vide o problema de qualidade acima referido).

Ao mesmo tempo que cerca de 75% da população não se sente constrangida pela sua condição habitacional nas decisões de vida e quase 90% não se sente em risco de ficar sem casa, existe um quarto da população que afirma que nos últimos 8 anos condicionou decisões importantes da sua vida, como sair de casa dos pais, mobilidade geográfica, casamento ou ter filhos, devido aos problemas que enfrenta com a habitação. Mas estes 25% da população não se encontram distribuídos igualmente por todos os sectores da sociedade. Estão concentrados naqueles que têm menos de 55 anos. Infelizmente, agora que a campanha eleitoral já começou, vejo vários partidos políticos a anunciar medidas para os pensionistas e reformados como bandeira eleitoral, mas não vejo o mesmo entusiasmo em falar ou apresentar soluções para os problemas que as gerações sub-55 anos enfrentam hoje em Portugal, sendo a habitação uma das mais prementes.

O estudo da FFMS contém muitas outras informações interessantes, principalmente sobre percepções e opiniões dos portugueses quanto ao tema. Por exemplo, vemos que as percepções dos portugueses sobre o mercado habitacional e os movimentos populacionais estão completamente erradas. Os portugueses sobrestimam consideravelmente a evolução do número de novas habitações familiares construídas desde 2015 bem como o crescimento da população residente. A politização do tema da habitação tem sido feita com muitas opiniões e pouco sustentada em factos – de tal modo que a percepção dos portugueses sobre as várias componentes do problema habitacional e da sua importância relativa está bastante polarizada ideologicamente. As pessoas de esquerda acham que a causa dos problemas é uma, as pessoas de direita apontam outras causas. É uma das consequências negativas do debate político ser parco em factos e estudos sérios, mas rico em opinião infundada, politização e percepções construídas no vácuo.

Se o Governo e o Ministério da Habitação tivessem realizado um estudo semelhante (ou, idealmente, até mais aprofundado) sobre a realidade habitacional dos portugueses e as suas preferências políticas antes de apresentar o pacote Mais Habitação, saberiam que o aumento de impostos sobre casas vazias é uma das soluções mais impopulares entre os portugueses e que os cidadãos não apreciam particularmente mais restrições ao alojamento local. Por outro lado, as políticas que os cidadãos preferem são as seguintes: diminuição de impostos sobre reabilitação urbana, o fim dos vistos Gold, bem como limites máximos sobre as rendas e mais investimento em habitação pública. Nota-se bem a componente ideológica do debate neste top de preferências, que mistura propostas que ouvimos de quadrantes ideológicos totalmente distintos. No entanto, há um dado interessante e que cada vez mais se vê repetido em vários estudos e dimensões da política nacional: os mais jovens são significativamente mais liberais, não só do ponto de vista social, mas também económico. São os que menos se opõem ao Alojamento Local, os que menos apoiam habitação pública e os que mais se opõem a limitações da propriedade privada. E, apesar de não parecer se olharmos para a política nacional, os jovens é que são o futuro deste país.