Esta semana, uma fotografia de um político em frente à escola privada que o filho frequenta gerou mais uma vez uma onda de discussão sobre a suposta hipocrisia dos políticos. Antes da discussão que merece ser havida, alguns pontos prévios. Considero inaceitável que se tirem e divulguem fotografias sem autorização de figuras políticas na sua vida privada normal, e ainda mais quando estas envolvem crianças e terceiros que não são figuras públicas e merecem a sua privacidade. Também considero que acusações políticas a pessoas concretas, utilizando detalhes da vida privada são de baixo nível num debate democrático civilizado.

No entanto, há uma pergunta a que os políticos, incluindo os políticos de esquerda que mais dizem defender a escola pública, necessitam de responder. Porque é que grande parte dos políticos nacionais de destaque, quando se trata da vida e futuro dos seus filhos, e independentemente da sua ideologia, escolhe uma escola privada e não uma escola pública? Individualmente, cada uma das suas escolhas é perfeitamente livre e pessoal. Colectivamente, elas demonstram um padrão. Um padrão colectivo que não pode ser ignorado.

Como já escrevi há umas semanas, o conceito de preferências reveladas é útil: aquilo que as pessoas dizem valorizar é, muitas vezes, menos revelador das suas reais preferências, do que aquilo que as pessoas fazem. As preferências reveladas de grande parte da nossa classe política mostram-nos que têm uma opinião que não costumam proferir em voz alta: consideram que, actualmente, no nosso país, o ensino privado tem maior qualidade que o ensino público. E, se acreditam nisto em privado, têm o dever de ser honestos com o eleitorado em público. Devem, em primeiro lugar, reconhecer e listar as falhas que acreditam que o ensino público hoje enfrenta em Portugal. Em segundo lugar, devem com honestidade propor políticas públicas que possam diminuir o fosso de qualidade entre as escolas públicas e as escolas privadas que querem para os seus filhos.

É evidente que, no mundo real, a elite económica, social e política poderá sempre pagar um premium por uma escola melhor, que ofereça mais e melhores serviços que aqueles que uma escola pública pode oferecer, seja ensino bilingue, Montessori, aulas de japonês, lacrosse ou aconselhamento para ingressar no ensino superior no estrangeiro. É também evidente que, tal como todas as famílias querem o melhor para os seus filhos, estas elites não são diferentes e portanto tomam decisões que, directa ou indirectamente, têm como resultado a permanência dos filhos nessa mesma elite. E, assim, inevitavelmente, observamos uma tendência para a reprodução social das elites, que naturalmente desejam manter o seu status e posição social. Essa tendência sempre existiu, nas mais diversas sociedades, e creio que é uma característica antropológica quase universal do ser humano. No entanto, não deve ser demasiado difícil, em sociedades democráticas e desenvolvidas, que pessoas provenientes de fora dessa elite ascendam socialmente, com o saudável corolário de diversificar e estimular a elite existente.

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Acresce que, em muitos países, as classes alta e média-alta consideram que o diferencial de qualidade entre a escola pública e privada não compensa o preço elevado dos colégios privados nem compensa se para isso for necessário abdicar da função e lugar social de uma escola pública. Segundo os dados da OCDE, Portugal tem uma proporção de estudantes do ensino secundário no sector público inferior à média da OCDE. Por si só, este dado não tem necessariamente nada de errado. Mas quando a classe política recusa reconhecer que muitas famílias escolhem sair da escola pública porque acreditam que esta não tem qualidade global suficiente, então temos um problema.

Qual é o propósito da escola pública universal? Naturalmente, há múltiplas razões para que os Estados modernos, autocráticos ou democráticos, tenham desejado investir na escolarização da população, através de currículos uniformizados e da acção do Estado. A escola pública serve, naturalmente, para qualificar a mão-de-obra de um país e, com isso, tentar aumentar a possibilidade de prosperidade económica futura, em particular para garantir que a população activa tem o capital humano necessário para conseguir aproveitar as evoluções tecnológicas. O investimento em educação permite, portanto, aumentar o produto futuro, com todos os benefícios associados de qualidade de vida, mas também reduzir custos que o Estado possa vir a ter com a sua função de amparo e integração social, como subsídios de desemprego ou diversos apoios de combate à pobreza e integração social. Mas, para além da sua função económica, um sistema de escolarização público tem outras funções. A investigação existente é clara sobre as funções de nation-making e state-making que os sistemas de educação tiveram ao longo da história. Os mais diversos regimes utilizaram a educação pública para construir uma ordem social e uma consciência nacional de comunidade, muitas vezes durante processos de unificação nacional e em contexto de pós-conflitos civis. E todos os regimes utilizaram – e ainda utilizam – a educação para “criar” cidadãos conscientes dos valores que o regime considera centrais: sejam os valores de regimes autoritários fascistas ou comunistas, sejam os valores de cidadania democráticos e liberais, que as escolas públicas em democracias liberais pretendem ensinar.

Finalmente, a escola pública tem ainda uma função poucas vezes lembrada. A expansão e manutenção de uma educação pública de qualidade por parte do Estado faz parte do contrato social interclassista numa democracia. Mais uma vez recorro a investigação científica sólida existente. Apesar da maioria dos sistemas de ensino primário terem sido implementados por regimes autoritários, os episódios de democratização, nos mais variados países, correspondem quase sempre a expansões do nível de educação. Em países onde a escolarização primária não era comum antes da democratização, o novo regime implementa-a. Quando a escolarização primária já é generalizada antes da democratização, verificamos que há uma expansão da escolarização secundária e terciária após a democratização. A meu ver, isto revela um dado fundamental: em todas as nações, o eleitor e cidadão médio, assim que podem, votam para expandir a educação. É uma das suas grandes aspirações, que realizam através da democracia. Naturalmente, estará relacionado com a ideia de que a escolarização dos filhos representará mais oportunidades de mobilidade social e prosperidade para os mesmos. Sabemos hoje que um regime democrático, apesar de conferir direitos políticos iguais aos seus cidadãos, não elimina nem impede um aumento da desigualdade económica. Se a democracia pretende colocar freios na desigualdade económica, para dar a todos as condições sociais necessárias para o exercício positivo da liberdade, precisa de trabalhar activa e constantemente para tal.

Em 2001, quando foram divulgados pela primeira vez “rankings” das escolas secundárias portuguesas, com base nos exames nacionais, o grupo de 50 escolas com classificações finais mais elevadas continha 29 escolas públicas e 21 privadas. Em 2023, apenas 5 escolas públicas e 45 escolas privadas aparecem nos 50 lugares cimeiros. As classificações médias entre público e privado também mostraram uma divergência clara. Em 2001, as escolas públicas tinham uma classificação média de 10.26 nos exames nacionais e as escolas privadas 10.06 valores. Em 2019, as escolas públicas obtiveram uma classificação semelhante de 10.55 valores, mas as escolas privadas haviam subido para 12.49 valores. Já sei que muitos apoiantes do actual governo desvalorizam os rankings, mas a verdade é que acabam por escolher as escolas privadas mais bem classificadas nesses mesmos rankings quando se trata dos seus próprios filhos.

O que se passou, então, nestes 20 anos? Claramente, houve uma enorme democratização e expansão do ensino secundário, devido ao aumento do ensino obrigatório para o 12º ano em 2008 (correcto e tardio). Em 1999, apenas 58.6% da população em idade relevante estava matriculado no ensino secundário, enquanto hoje esse valor é de 88%. Naturalmente, isto é positivo. Mas esta democratização foi, infelizmente, acompanhada de uma crescente segregação social e segregação de resultados escolares. Concretamente, segregação em três grupos: as escolas privadas da via de ensino científico (onde se encontram as escolas privadas de elite, onde a classe política, a classe alta e média-alta põe os seus filhos), as escolas públicas do ensino científico, e um ensino vocacional/técnico-profissional surpreendentemente grande.

Apesar de serem quase ignoradas no discurso público, 47.18% dos alunos matriculados no ensino secundário encontravam-se nestas vias alternativas não-científicas (ensino profissional, técnico, de aprendizagem, recorrente, etc). Infelizmente, creio ser uma estatística infeliz. Não ignorando o papel relevante que este tipo de ensino possa ter em alguns casos, creio que estes devem ser uma minoria. No contexto económico e global actuais, precisamos de uma população activa qualificada e, de preferência, maioritariamente com cursos superiores. Para que possam realizar esses cursos superiores em condições adequadas e para que possa haver real mobilidade social, tem de ser possível que grande parte desses alunos que hoje frequentam o ensino vocacional consigam terminar o ensino secundário científico com sucesso e concluir um curso superior. Não é isso que hoje vemos. Hoje, o que vemos é que a escola pública e o Estado desistiram deste grupo enorme de jovens (e os privados são uma proporção ainda maior no ensino profissional do que no ensino científico).

Cada político e cada um de nós, individualmente, pode escolher que os seus filhos frequentem escolas privadas e não a escola pública. No entanto, a saída em massa da classe média-alta do ensino público retira capacidade ao mesmo. A classe média-alta é também a classe com mais capacidade reivindicativa e com recursos económicos, culturais, sociais e até de tempo disponível para exigir mais, quer ao sistema político como um todo quer na escola concreta do dia-a-dia (aos professores, aos currículos, às decisões das escolas). Quando esta classe abandona o sistema público comum, aumenta a probabilidade de negligência política e desinvestimento público, o que pode gerar uma espiral destrutiva, criando um equilíbrio pernicioso de dois sistemas paralelos. O equilíbrio social e democrático ficará também em risco.