Para enfrentar momentos de crise violenta, a velha República Romana (509 a.C.-27 a.C.), o mais duradouro regime político-constitucional da Roma Antiga, criou uma magistratura extraordinária a que deu o nome de «ditadura».

Esta consistia num verdadeiro estado de exceção constitucional, justificado por razões de extrema gravidade que impendiam sobre a civitas, como a ameaça de um inimigo externo, uma guerra civil, ou uma séria crise alimentar ou de saúde pública. Essa magistratura era extraordinária porque não compunha o cursus honorum – a carreira dos cargos públicos regulares da República –  e só podia ser instituída pelo próprio povo romano, reunido em assembleias de base representativa, como medida de autodefesa. O ditador, verdadeiro «Magister Populi», caudilho e tribuno aclamado pelo povo, assumia todos os poderes e competências da ordem constitucional republicana, exercendo-os sem quaisquer constrangimentos, de modo a debelar a ameaça e a repor, tão breve quanto possível, a normalidade. Embora pudesse exercer o poder despoticamente, o ditador não se confundiria com o tirano, que Cícero tinha como «o animal mais terrível, hediondo e odioso que se pode imaginar», porque, ao contrário deste, tinha um mandato limitado no tempo, no máximo de seis meses, e governava não para si, mas pelo bem do populus. Findo aquele período, tivesse ou não cumprido a sua missão, a constituição ordinária seria reposta.

Mais tarde, já na Época Contemporânea, a figura da ditadura popular seria recuperada, como regime de suspensão da ordem constitucional burguesa, fundamentado também em razões de grave excecionalidade. Nesse tempo daria origem a momentos históricos tão díspares entre si, como o Terror do Comité de Salvação Pública, de Maximilien de Robespierre, a ditadura cordata de Passos Manuel, a tentativa desesperada de salvar a Monarquia, em 1907, de  João Franco, o regime militar instaurado, em 1926, por antigos fiéis desiludidos da República, como Mendes Cabeçadas.

Uma imagem legalista da ditadura perduraria, assim, na Época Contemporânea, durante o século XIX e, em parte, nos primórdios do seguinte. A “ameaça”, que pairava nesse período sobre as sociedades europeias que a acolheram, seriam os “excessos” do parlamentarismo e da democracia, que faziam perigar a ordem burguesa do primeiro liberalismo. Com a eclosão da violência fascista, do terror leninista e estalinista, do nazismo e da II Guerra Mundial ficou muito claro que a ditadura, se alguma vez tivera uma faceta amável e consensual, se amalgamava, agora definitivamente, com as odiadas tiranias do passado. A ditadura deixou de ser considerada, a partir daí, como regime de exceção constitucionalmente tolerável.

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Por isso, as democracias substituiriam essa imagem do passado por outras de recorte efetivamente constitucional, também previstas para momentos de extrema perigosidade social, mas com reforço de controlo legal e das instituições democráticas do Estado, que em circunstância alguma podem ser suspensas ou condicionadas na sua atuação. Sendo uma ameaça ao exercício de direitos fundamentais dos indivíduos, que o constitucionalista alemão Carl Schmitt considerava, e bem, como «direitos do homem individual livre (…) face ao Estado», esse jurista lembrava o óbvio: «todos os direitos fundamentais autênticos são direitos fundamentais absolutos», pelo que qualquer limitação ou suspensão que incida sobre todos ou um só deles terá de ser absolutamente excecional e, sobretudo, minuciosamente determinada pela Constituição e fiscalizada pelos órgãos de soberania competentes. Aqui não poderá haver improvisos nem discricionariedades.

Portugal incluiu, na sua Constituição de 1976, que se encontra hoje ainda em vigor, normas sobre esses momentos de excecionalidade e a forma democrática de lhes dar resposta. Atualmente, encontram-se nos artigos 18º e 19º da Lei Fundamental, dizendo o primeiro que «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição» (nº 2). e o segundo que esses «casos» são o «estado de sítio» e o «estado de emergência», ambos necessariamente «declarados na forma prevista na Constituição». Essa forma consiste numa declaração formal do Presidente da República (artigo 134º, al. b), uma vez ouvido o Governo e autorizada pela Assembleia da República (artigo 138º, nº 1). Por sua vez, a Lei nº 44/86, de 30 de Setembro (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), subscreve estas regras constitucionais, como não poderia deixar de ser, e remete para o Governo a competência de execução das medidas necessárias ao decretado pelo Presidente da República. Dentro, obviamente, do que este tiver determinado e durante o prazo máximo de 15 dias, que é o que cada um dos decretos poderá durar, segundo a Constituição.

No passado dia 11 de Março, o Presidente da República, após ouvido o Governo e obtida a aprovação da Assembleia da República, decretou o décimo terceiro estado de emergência por causa da epidemia da Covid. Até aqui nada a dizer. As normas constitucionais e a lei foram devidamente respeitadas. Acontece que este novo estado de emergência foi anunciado como sendo o último que se pretende declarar e terminará a 31 de Março. A partir daí, entraremos em desconfinamento gradual, lento e progressivo, que durará o tempo que o Governo de António Costa quiser, e durante o qual continuarão em vigor medidas restritivas, ou mesmo suspensivas, dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses. O Primeiro-Ministro, aliás, parece ter mandado informar os Portugueses, através do jornal Expresso, que pretende «libertar-se dos decretos» e concentrar na sua augusta pessoa todo o poder necessário a essa empreitada. Por sua vez, Marcelo Rebelo de Sousa fez saber, pelo mesmo órgão de comunicação social, que «ficou surpreendido» com a situação que se prevê para o fim do estado de emergência, receando o que daí possa resultar, por se tratar de uma «questão juridicamente delicada». Como bom constitucionalista que sempre foi, não se quer envolver nisto. Pela primeira vez das muitas em que já decretou o estado de emergência não se dirigiu ao país, preferindo apanhar um avião para Roma, cidade dos Césares e dos Ditadores da velha República, para ir visitar o Papa.

A partir de 1 de Abril (nem de propósito), António Costa fará dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses, cuja redução ele considere necessária ao desconfinamento, o que bem entender. Por período não determinado por nenhuma lei, com as competências que desejar e que ficarão inteiramente dependentes da sua soberana vontade. O estado de emergência será, então, o Dr. António Costa.

A partir de 1 de Abril entraremos em ditadura.