Há males que vêm por bem, disseram-nos há poucos meses, quando tentaram convencer-nos de que a pandemia era uma grande oportunidade para a TAP ser nacionalizada. Isto de uma pandemia ter efeitos positivos na economia é ideia que só por si dá asneira. E, com a TAP, não era preciso ser-se génio para desconfiar de uma oportunidade que custaria 1,2 mil milhões de euros (e em 2021 um acréscimo insuficiente de 500 milhões) para salvar uma companhia aérea no contexto de uma crise que esvaziou aeroportos. Desde Junho que as cartas estavam todas na mesa: a economia ruía em troca da contenção da pandemia, o turismo travou a fundo e a aviação caiu a pique, e as contas públicas ficariam sujeitas longos anos a uma pressão imensa. Quem escolheu o caminho de puxar os prejuízos da TAP para os nossos bolsos, aumentando a participação do Estado, não pôde então alegar desconhecimento. Nem agora poderá esquivar-se da sua irresponsabilidade que, como um boomerang, foi-nos atirada com tanta convicção que cedo voltou para lhes acertar.
A TAP prepara-se para despedir 500 pilotos e baixar a sua massa salarial em 25%, estando os seus funcionários sob um clima de “terror” e de “coacção”. No global, estima-se que estejam 3600 trabalhadores da companhia aérea na porta de saída. Quem só se informar pelos ecos dos comunicados governamentais, certamente não entenderá o que se passa: então não se aumentou a participação do Estado na TAP precisamente para evitar despedimentos? Sim, foi o que nos garantiram. Mas, surpresa!, não foi bem assim que aconteceu: simplesmente não era possível, na situação actual, a TAP sobreviver sem uma restruturação agressiva, até porque não começou a gerar perdas nos dias da pandemia — e os prejuízos aceleram a galope. Era óbvio que aqui chegaríamos. Só não viu quem não quis.
Não quis e não viu quem TAPou os olhos — expressão tão em voga neste debate. Em 2014, quando o Governo PSD-CDS alinhava esforços para a privatização da companhia aérea, um manifesto com mais de 100 subscritores assegurou-nos que a solução era má para os interesses nacionais. Fomos alertados: com a privatização viriam “aumento de preços e pior serviço, despedimentos, lucros fantásticos para os accionistas, num mercado protegido pelo Estado através de impostos favoráveis”. Só que, nas mãos do Estado, foi precisamente isso o que aconteceu: os despedimentos estão em curso, os preços subiram, houve prémios apesar dos prejuízos, a estratégia da companhia só passa por Lisboa, os atrasos bateram recordes internacionais. Onde estão os subscritores que não queriam os olhos tapados? Agora, que a conta chegou, ficaram mudos.
O silêncio é mesmo um dos factos políticos mais relevantes do estado actual deste dossier. Num momento em que a TAP está a despedir às centenas, em que os prejuízos cavam um fosso sem fundo, em que a operação da empresa está em risco, não há partidos nem deputados a pedir contas ao Governo sobre o dinheiro injectado, não há cidadãos indignados, não há abaixo-assinados para apurar responsabilidades, não há protecção dos empregos. É o mundo ao contrário. E não é uma mera questão de hipocrisia ou oportunismo, é também de abandono: são os próprios tripulantes da companhia aérea quem se queixa da falta de solidariedade dos partidos que antes os apoiaram — prometeram-lhes o céu, deixaram-nos em terra. Ingenuidade a deles: a ideologia das nacionalizações reduz sempre os trabalhadores a argumentos de ocasião, com a flexibilidade de uma pastilha elástica: mastiga, deita fora — sem demora.
Chegados aqui, a conta ganha forma de um buraco sem fundo que, por enquanto, vai em 1700 milhões de euros. Dinheiro que faz falta noutros sítios, mas que o Governo optou por investir na TAP, como se não existissem mais companhias aéreas que ligassem Portugal ao mundo — por exemplo, é três vezes o orçamento do Ministério da Cultura, quatro vezes o investimento (adiado há anos) da Escola Digital para equipar escolas e alunos com computadores, 68 vezes o orçamento da (prometida) ala pediátrica do Hospital São João do Porto. São escolhas. E a escolha do Governo foi esta: acolher os prejuízos da empresa, sendo que uma TAP privatizada estaria agora, possivelmente, a fazer o mesmo tipo de reestruturação mas sem custar um cêntimo aos portugueses. Ora, enquanto pagamos o preço destas escolhas, talvez esteja na hora de responsabilizarmos quem tão mal geriu os nossos recursos públicos. E, porque não?, exibir indignação social por, enquanto uns têm fome, o Estado andar a brincar aos aviões.